Pesquisadores, Ministério Público, empresa e governo estadual podem alterar os padrões de instalação e de licenciamento de redes elétricas e reduzir de vez os choques mortais à arara-azul-de-lear, espécie exclusiva da Caatinga. O número de aves mortas nesses acidentes pode ser maior que o estimado.
A eletrificação dos interiores nacionais avança há duas décadas com o “Luz para todos”. No início dos anos 2000, mais de 10 milhões de brasileiros não podiam ligar uma lâmpada ou manter alimentos na geladeira. Mas, parte dos milhares de quilômetros de postes e fios instalados são fatais à vida selvagem.
Desde suas tocas em paredões de arenito vermelho, a arara-azul-de-lear (Anodorhynchus leari) viaja até 80 km diários buscando comida em mais de 30 espécies vegetais, para si ou famintos filhotes. Nesses voos, a curiosa ave pousa em árvores, arbustos, postes e fios. Em certos casos, pela última vez.
Cerca de 100 dessas aves ameaçadas de extinção morrem anualmente eletrocutadas, mostram registros de ongs, de moradores e um estudo publicado em 2022 na revista Ibis – International Journal of Avian Science. Mas as perdas podem ser ainda maiores.
“As carcaças podem ser devoradas rapidamente por outros animais e falta um esforço científico maior para levantar o número real de aves mortas”, diz o biólogo Thiago Filadelfo, mestre em Ecologia pela Universidade de Brasília (UnB) e parte de um time de pesquisadores focados na conservação da arara-de-lear.
As perdas da espécie se concentram no Raso da Catarina, entre municípios do nordeste da Bahia como Canudos, Paulo Afonso, Jeremoaba e Rodelas. Parte da região é abrigada numa estação ecológica, num parque nacional e numa terra indígena. Mas isso não ameniza os riscos ao futuro da arara-de-lear.
Afinal, seus no máximo 2 filhotes anuais enfrentam predadores e a aridez sertaneja. Além disso, há pouco mais de 2,3 mil aves contadas na natureza. “Qualquer perda é um absurdo com uma população tão reduzida”, alerta Filadelfo. “A gente deve lutar pela coexistência, encontrar um meio para que a energia chegue de forma segura para ambientes e espécies”, indica.
Isso pode se tornar realidade graças à pressão de pesquisadores ecoada em inquéritos e ações do Ministério Público Estadual da Bahia (MPE/BA) e da Neoenergia. A empresa pertence ao grupo espanhol Iberdrola, que assumiu em 1997 a Companhia de Eletricidade da Bahia (Coelba), junto com o Banco do Brasil e o fundo de pensão de seus empregados, o Previ.
A promotora de Justiça Luciana Khoury adianta que este semestre deve ser firmado um Termo de Ajuste de Conduta (TAC) para que a companhia troque mais fios e postes para conter as mortes de araras-de-lear. “Não deve demorar muito”, aposta. “Estão sendo pactuadas questões como o limite das ações, que envolvem áreas enormes. Queremos ampliar o máximo a cobertura para a troca de equipamentos”, explica.
O acordo é baseado nas mudanças em mais de 1.800 postes no Raso da Catarina que a Neoenergia afirma ter feito desde 2020. “A alteração das estruturas foi uma iniciativa imediata após a realização de estudos comportamentais das aves e pesquisas de engenharia a nível nacional e internacional, com o apoio de ONG locais e Ministério Público da Bahia”, afirma a Assessoria de Imprensa da Neoenergia.
A empresa também apoia pesquisas, educação ambiental, agroecologia e o plantio de licuris, fruto muito apreciado pelas araras-de-lear. Os trabalhos são coordenados pelo Instituto Avançado de Tecnologia e Inovação (IATI), de Recife (PE). “As iniciativas têm investimento superior a R$ 20 milhões”, detalha a Neoenergia.
As modificações nos postes incluem inverter e reposicionar isoladores elétricos, bem como aumentar a distância entre os fios. Isso reduz as chances de choques das aves. “A eficácia da ação já foi comprovada e garante a segurança das araras que sobrevoam em torno dos postes modificados”, diz a Neoenergia (Veja vídeo no fim da matéria).
“Como abrindo as asas as araras tem quase um metro, foi necessário fazer um afastamento da fiação e também isoladores maiores”, agrega a promotora Luciana Khoury. “Onde cobramos as alterações, as araras estão vivendo sem nenhum dano”, assegura.
Já para Thiago Filadelfo, as medidas precisam ser aceleradas para resguardar o máximo possível de araras-de-lear. “As primeiras ações da empresa foram tarde demais. Têm que acelerar e ampliar essas medidas”, destaca o mestre em Ecologia pela Universidade de Brasília (UnB).
Cientistas, ongs e ativistas esperam que as melhorias virem um padrão para licenciar a transmissão de energia onde vivem espécies ameaçadas como a arara-de-lear, mas o Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Inema), órgão público do governo da Bahia, não retornou nossos pedidos de entrevista e não explicou como reforçará a proteção da ave.
Sucesso ameaçado
O Raso da Catarina abriga nove em cada dez araras-de-lear na natureza. Outro pequeno grupo sobreviveria entre os municípios baianos de Campo Formoso e de Sento Sé, sugerindo que a ave ocupou no passado uma área bem maior que a atual. Enquanto isso, um grande esforço de conservação vem recuperando parte de suas populações.
Entre 60 e 200 aves voavam livres em 1990. Duas décadas depois, foram contadas 1.125 araras. As estimadas 2.273 araras em 2022 representam um salto de 3.700% nos piores números passados.
“Essa recuperação espetacular resulta de várias ações, desde a proteção direta das áreas reprodutivas até o envolvimento das comunidades locais”, destaca o biólogo especializado na conservação de aves Paulo Zuquim Antas, doutor em Ecologia pela Universidade de Brasília (UnB). Todavia, ainda não há bonança para a arara-de-lear.
Além dos choques mortais na rede elétrica, a ave é vítima do tráfico e pode sofrer baixas com usinas eólicas. Aves traficadas são flagradas desde meados do ano passado em países como Suriname (América do Sul), Bangladesh (Ásia) e Togo (África). A situação foi alertada no boletim de dezembro passado da Sociedade Brasileira de Ornitologia.
“Trata-se do ‘andar de cima’ do tráfico de animais. Dinheiro grosso financia essas ações e uma máfia bem estruturada para lidar com tantas realidades locais diferentes, inclusive na questão das propinas para esquentar a passagem dos animais”, avalia Zuquim Antas.
Outro fantasma é a instalação de aerogeradores perto das moradas e rotas de voo da arara-de-lear e outras espécies. Em setembro passado, o Tribunal Regional Federal da 1ª Região autorizou a retomada de uma usina eólica em Canudos, cuja licença estadual havia sido suspensa pela Justiça Federal.
“Não sabemos como será a interação da arara-de-lear com esses complexos. São novos desafios para a sobrevivência da espécie”, alerta o biólogo e pesquisador Thiago Filadelfo, mestre em Ecologia pela Universidade de Brasília (UnB).
Para Paulo Zuquim Antas, só ações concretas e urgentes evitarão a extinção da arara-de-lear na natureza, assim como ocorreu com a ararinha-azul (Cyanopsitta spixi), hoje em reintrodução na mesma Caatinga baiana. “Até quando a arara-de-lear suportará tamanhas pressões humanas?”, indaga o pesquisador.
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