A ilha de Florianópolis (SC) vive um embate crucial sobre suas unidades de conservação. Um relatório preliminar da Câmara municipal local propõe extinguir 11 dessas áreas, medida considerada um retrocesso sem precedentes e contestada por pesquisadores, políticos e pela própria Prefeitura.
Tornando tudo ainda mais grave, esse embate ocorre num território onde as UCs preservam trechos valiosos de Mata Atlântica, restingas e manguezais, garantindo não apenas biodiversidade, mas também a identidade cultural e o potencial turístico para a cidade.
Além de reservas privadas e terras indígenas, Florianópolis cria unidades de conservação desde os anos 1980 e, recentemente, decretou os 51 ha do Monumento Natural da Ilha do Campeche como área protegida. O local já era tombado pelo IPHAN por reunir a maior concentração de gravuras rupestres e oficinas líticas do litoral brasileiro.
Apesar dessa relevância, um relatório aprovado semana passada por vereadores simpáticos à especulação imobiliária pode resultar num retrocesso inédito: a extinção de 140 km² de áreas protegidas numa tacada só. Para ser apreciado, o texto precisa ser convertido num projeto de lei.
É nesse cenário que lideranças como a vereadora Ingrid Sateré-Mawé se destacam, rebatendo as teses do relatório e chamando atenção para os riscos de se usar a pressão imobiliária como justificativa para enfraquecer a proteção ambiental.
“Não se pode permitir que interesses particulares se sobreponham ao bem coletivo e à proteção da natureza”, ressaltou.
Ela é bióloga, professora e militante indígena. Natural de Manaus (AM) e radicada em Santa Catarina há 17 anos, foi eleita pelo PSOL como a primeira mulher indígena vereadora de Florianópolis. Antes, atuou como assessora parlamentar e foi candidata ao governo catarinense em 2018.

Mais vozes de resistência
Consultada por ((o))eco, a Prefeitura de Florianópolis — sob a batuta de Topázio Silveira Neto (PSD) — enfatizou que as unidades de conservação não serão eliminadas. “Não haverá retrocessos ambientais e nenhum órgão ambiental do município permitirá qualquer tipo de perda nesse sentido”.
Entre as supostas irregularidades listadas no insuspeito relatório, estão UCs criadas por decretos do Executivo — sem aval Legislativo —, a falta de estudos técnicos e de viabilidade econômica, falta de notificações formais a proprietários atingidos e de orçamento para desapropriações e indenizações.
Esse último ponto se assemelha, por exemplo, ao proposto em 2015 pelo então deputado federal Toninho Pinheiro (PP-MG), cujo projeto previa sustar a criação de UCs cujas terras não fossem indenizadas em até 5 anos aos legítimos proprietários.
Sobre o relatório, Ingrid pediu vistas e desmontou os principais argumentos, apontando ausência de base legal e vícios de inconstitucionalidade. “Todas as contestações feitas pelo relator foram respondidas com base em leis federais, decretos e na própria Lei da Mata Atlântica”, explica.
Engrossando o coro para manter as unidades de conservação, especialistas contestam inúmeros pontos do relatório.
Conforme análise de cientistas ligados ao Grupo de Pesquisa em Direito Ambiental e Ecologia Política na Sociedade de Risco (GPDA) da UFSC, o documento erra feio ao apontar como ilegal criar UCs por decreto. A legislação federal e até decisões do Supremo Tribunal Federal confirmam a validade desse instrumento.
O relatório é criticado também por taxar as UCs como entraves econômicos, fazer vista grossa à sua importância para a biodiversidade, a adaptação climática e o cumprimento de metas internacionais. “Proteger a Mata Atlântica não é apenas uma obrigação local, é uma contribuição global”, acrescentou Ingrid.
A vereadora lembrou igualmente que só leis podem reduzir unidades de conservação, e não decretos, como sugerido no relatório da Comissão Especial da Câmara Legislativa. Ela também critica a falta de transparência, já que o documento não foi divulgado à população, impedindo a participação de interessados no debate.

Polimentos na conservação
Outro pente-fino no relatório foi assinado por João de Deus Medeiros, biólogo, doutor em Botânica e professor na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
De acordo com o documento, os vereadores pró-loteamento de áreas preservadas colocaram o direito de propriedade acima do direito difuso ao ambiente preservado. A Constituição, porém, determina que cabe ao poder público criar e manter áreas protegidas, conciliando o uso da propriedade com objetivos de preservação.
Além disso, a análise destaca que estudos técnicos e consultas públicas foram feitos na criação das UCs, cujas áreas estão georreferenciadas em plataformas oficiais. Tais áreas compõem, inclusive, a Zona Núcleo da Reserva da Biosfera da Mata Atlântica, reconhecida pelas Nações Unidas.
Ao mesmo tempo, a vereadora Ingrid reconhece demandas legítimas de moradores nos limites das UCs, como isenção de IPTU em terras sem possibilidade de construção. “O risco é inverter o processo e usar a pressão imobiliária como justificativa para extinguir áreas de preservação”, advertiu.
Outra demanda apontada por ela é agilizar a publicação dos planos de manejo de todas as unidades de conservação. Isso, para a parlamentar, evitaria contradições. “A gestão municipal divulga trilhas e áreas sem plano de manejo nas redes sociais, descumprindo a própria legislação”, criticou.
Quanto a isso, a Prefeitura de Florianópolis informou que seis unidades já estão em pré-publicação de planos, que devem ser concluídos até o próximo dia 31 de janeiro. O município disse priorizar a transparência, participação popular e a resolução de conflitos fundiários nesse processo.
Diante disso tudo, extinguir as unidades de conservação significaria não apenas arriscar a perda de florestas e de animais silvestres, mas também comprometer a memória, a identidade e as possibilidades de um futuro sustentável para Florianópolis.
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