Reportagens

“Queremos que a voz da África siga as prioridades da África”

O ministro do Meio Ambiente de Madagascar, Max Fontaine, fala com ((o))eco sobre a importância de investir no desenvolvimento social do país para garantir a proteção da natureza

Duda Menegassi ·
21 de agosto de 2025

Responsável por uma biodiversidade única, Madagascar abriga lêmures, camaleões, fossas e uma paisagem que mistura florestas úmidas e secas com montanhas e praias. Parte desse patrimônio natural, entretanto, já foi perdida e outra grande parte está ameaçada. A quarta maior ilha do mundo tem ainda desafios de ordem social, com o 10º pior Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do planeta e mais de dois terços da população vivendo na pobreza, de acordo com o Banco Mundial.

Aos 29 anos, o ministro do Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável de Madagascar, Max Andonirina Fontaine encara os desafios sociais como uma peça-chave na garantia da proteção ambiental. “Enquanto as pessoas não comerem três vezes por dia, é difícil pedir para que eles não cortem árvores”, conta o ministro em conversa exclusiva com ((o))eco.

Fontaine, que assumiu a pasta em janeiro de 2024, afirma ainda a importância da África definir suas próprias prioridades, considerando que os países africanos, de modo geral, estão entre os que menos contribuíram com as emissões do planeta, mas estão entre os que mais sofrem as consequências do aquecimento do planeta, como a desertificação. “Queremos que a voz da África siga as prioridades da África”, destaca Fontaine.

O ministro esteve presente nas cerimônias de abertura e encerramento do International Primatological Society (IPS) Congress – o congresso internacional de primatologia – realizado em Antananarivo, capital de Madagascar, no final de julho, e conversou com ((o))eco sobre os desafios da conservação na ilha. O país abriga a segunda maior diversidade de primatas do mundo, atrás apenas do Brasil. Em seu discurso, enalteceu a ciência e o trabalho dos pesquisadores. “Acho que, se tivéssemos ouvido os cientistas há 50 anos, o mundo não estaria nessa situação”, ele me disse quando elogiei seu discurso, antes de começamos nossa entrevista, realizada em inglês em seu escritório na capital.

Confira a entrevista completa:

Você está no seu segundo ano como ministro. Quais são algumas das suas prioridades no governo e os principais desafios pelo caminho?

Max Fontaine: Bem, tudo é prioridade e esse é o problema. É preciso definir prioridades, mas tudo é importante para um país como Madagascar, que depende muito de seus recursos naturais. Por exemplo, mesmo no turismo, a maioria das pessoas que vem a Madagascar não vem pela gastronomia, pelos museus ou pelos pontos culturais. Nós temos tudo isso, mas não é por isso que alguém sai do Japão ou da Califórnia, nos Estados Unidos, para nos visitar.

Eles vêm para ver os baobás, os lêmures, as baleias e coisas assim. Por isso, preservar nosso capital natural, nosso patrimônio natural, é uma prioridade real. O grande desafio é equilibrar isso com o desenvolvimento. Sempre que vou às COPs [Conferências das Partes] ou a reuniões sobre o tema, todos dizem: “A biodiversidade de Madagascar é incrível, precisamos preservá-la”, etc. Mas esquecem que, dentro dessa biodiversidade, vivem 29 milhões de pessoas. Eu sei que no Brasil vocês têm o mesmo dilema com a soja, com a agropecuária.

Por isso, o nome do meu ministério não é apenas Ministério do Meio Ambiente, e sim Ministério do Meio Ambiente e do Desenvolvimento Sustentável. A questão é: como promover o desenvolvimento? Como torná-lo sustentável preservando nosso capital natural? Essa é uma prioridade enorme.

Na antessala do pequeno prédio do Ministério do Meio Ambiente, exibem-se os nomes e rostos que já lideraram a pasta abaixo da foto do atual presidente, Andry Rajoelina. Em destaque na foto colorida, o atual ministro, Max Fontaine. Foto: Duda Menegassi

E como isso inclui a gestão das áreas protegidas?

A gestão das nossas áreas protegidas também é um desafio. Faltam recursos. Madagascar é enorme – não tanto quanto o Brasil – mas é a maior ilha da África e a quarta maior do mundo, com áreas-chave de biodiversidade espalhadas por todo o país. E há comunidades vivendo em volta de todas essas áreas-chave de biodiversidade, então precisamos encontrar formas de preservá-las enquanto desenvolvemos a população. Não culpo ninguém, mas acredito que o problema é que, nos últimos 50 anos, a conservação foi encarada apenas como bloqueio total a qualquer atividade nas áreas protegidas. O resultado está aí: na maioria dos países em desenvolvimento, áreas protegidas estão morrendo ou desaparecendo.

Estamos tentando criar um novo modelo. Disse isso em Cali, na CDB [Convenção sobre Diversidade Biológica, realizada em fevereiro, na Colômbia], para onde fui convidado pela WCS [Wildlife Conservation Society], que administra uma das maiores áreas protegidas de Madagascar. Comentei que, hoje, talvez 80% dos recursos vão para ações puramente ecológicas, como monitoramento e proteção. Mas, se pelo menos 50% desse dinheiro fosse para melhorar as condições de vida das comunidades, como investir na melhoria da vida de agricultores, você veria as coisas melhorarem. As pessoas não destroem o meio ambiente por prazer. Quem queima o mato ou derruba árvores não é, em sua maioria, um incendiário ou más pessoas. São pessoas como nós, tentando sobreviver e alimentar suas famílias.

Por isso, em vez de apenas reprimir, precisamos trabalhar junto com elas. E esse é um desafio enorme. Pedi que todos os gestores de áreas protegidas contratem especialistas em geração de renda. Como criar negócios nessas regiões? Como desenvolver a pesca? Para garantir que as pessoas tenham dinheiro. Quando se tem dinheiro, a dependência dos recursos naturais diminui. Todos os nossos projetos e ações caminham nessa direção.

O lêmure-de-cauda-anelada (Lemur catta), uma das mais de 100 espécies de lêmures encontrados apenas em Madagascar. Foto: Duda Menegassi

Também exigi que os gestores adotem tecnologias como drones e Starlink, já que muitas áreas são isoladas. Quando ocorre um incêndio florestal, muitas vezes é numa zona sem cobertura de rede. Precisamos ser mais eficientes no combate a incêndios, que são um grande problema no país. A prática de “corte e queima” [burn and slash] destrói grandes áreas de floresta.

Outro ponto crítico é como conseguimos uma forma sustentável de financiar essas áreas. Nosso orçamento é muito baixo para áreas protegidas. Foi por isso que criamos o “Lemur Bond” junto com o Banco Mundial, o FMI [Fundo Monetário Internacional] e o GEF [Fundo Global para o Meio Ambiente].

O “Lemur Bond é uma iniciativa aprovada em junho de 2025 pelo GEF que visa apoiar a manutenção e gestão das paisagens naturais, terrestres e marinhas, em Madagascar, assim como espécies ameaçadas, impulsionando a vida nas comunidades e a resiliência climática nas áreas protegidas e seu entorno. 

O país foi afetado pelos cortes dos EUA?

Sim, muito. Para nós, a migração climática é um problema sério. Muitos migrantes climáticos ocupam florestas primárias e derrubam baobás para plantar milho. E há muitos conflitos sociais. A USAID tinha um grande projeto para dar terras, infraestrutura e atividades de geração de renda a essas pessoas, mas o projeto foi interrompido. Nós tínhamos assinado o projeto há apenas oito meses e agora todos foram demitidos. Isso prejudica muito, pois a população se sente traída mais uma vez, e o frágil vínculo de confiança que nós tínhamos com eles se quebra. Infelizmente, não temos controle sobre isso. Agora, o governo está tentando retomar a iniciativa, mas era um investimento pesado vindo dos EUA [o investimento total previsto era de 22,1 milhões de dólares].

Os países africanos recentemente se reuniram para definir as prioridades ambientais para o continente para 2025 – 2027 (“Tripoli Declaration on Environmental Action in Africa: Reflecting on the Past and Imagining the Future”). Como vê essa posição conjunta dos países africanos?

É uma conferência ampla, que não se limita à biodiversidade ou conservação. Nós também falamos de energia, poluição, mudanças climáticas etc. A principal mensagem que passamos é que devemos definir nossa agenda, baseada nas nossas prioridades. Nós não podemos apenas seguir as regras da COP.

A transição energética é um bom exemplo. É claro que queremos ter 100% de energia renovável. Precisamos disso. Mas não podemos ser obrigados a usar nosso dinheiro doméstico, fazer uma prioridade no nosso orçamento o abandono aos combustíveis fósseis para energia renovável. Porque em primeiro lugar, e nós sempre repetimos isso, mas é verdade, a África não contribuiu em nada para as mudanças climáticas. Se você olhar para a emissão de gases de efeito estufa, nós contribuímos com cerca de 3% das emissões históricas. 

Então, por que teríamos que fazer todo esse esforço para seguir à risca a visão dos grandes países sobre energia renovável? Queremos, sim, adotar renováveis. O presidente tem investido nisso e com recursos próprios. É dinheiro que não colocamos nas áreas protegidas, na educação, no sistema de saúde, na indústria.

Queremos que a voz da África siga as prioridades da África. Respeitamos e agradecemos os parceiros, pois temos muitos projetos financiados por países ocidentais, mas todos precisam entender que é legítimo ter prioridades diferentes.

Madagascar já perdeu mais de 80% das suas áreas naturais. Agropecuária, extração de madeira e incêndios estão entre principais motores do desmatamento. Foto: Duda Menegassi

E quais suas expectativas para a próxima COP, no Brasil? E como vê a ligação entre a crise da biodiversidade e as mudanças climáticas?

São crises interligadas. Por isso, valorizamos muito a nova iniciativa do “Rio Trio” [esforço conjunto das Convenções sobre Biodiversidade, Clima e Combate à Desertificação]. Nós realmente admiramos isso. Porque mesmo internamente, no meu ministério, eu pedi que as equipes das três convenções trabalhassem juntas: mudanças climáticas, biodiversidade e desertificação. Madagascar é muito afetada nesses três tópicos.

Nossa expectativa, como toda COP, é realista. Não acreditamos que o mundo vá mudar depois de Belém. Seria ingenuidade pensar que as COPs são capazes de resolver os problemas do mundo. Nós tentamos fazer a nossa parte, com foco nas prioridades de Madagascar. Nosso objetivo é mostrar aos parceiros nossos esforços, reformas e projetos que estão prontos, para tentar servir de exemplo. 

Criamos, em Baku, a Coalizão G-Zero, reunindo os quatro países carbono negativo: Madagascar, Suriname, Panamá e Butão. Vamos manter esse compromisso para mostrar que é possível, em 2025, ser carbono negativo.

Mas temos que ser realistas, as COPs não vão mudar o mundo. As COPs são imperfeitas, mas por que eu continuo participando? Porque é o único espaço onde todos se reúnem para falar de clima. E, se cada país fizer o melhor para si, a soma dos esforços poderá ter impacto global.

Os representantes do Panamá, Butão, Suriname e Madagascar no lançamento da inicitiva G-Zero. Foto: Kuensel

Madagascar assumiu o compromisso de restaurar 4 milhões de hectares até 2030. Como está esse trabalho?

A prioridade não é a restauração. A prioridade é a conservação das florestas primárias. Nós precisamos proteger essas últimas florestas primárias porque uma vez destruídas, podemos restaurar toda a ilha [de Madagascar], mas nunca iremos compensar essa destruição. Então a prioridade é conservar. Mas diante de tantas áreas já degradadas, de certa forma é tarde demais só para isso. Há um provérbio chinês que diz que existem dois bons momentos para plantar uma árvore. O primeiro foi há 20 anos. O último é hoje. Nós não podemos esperar mais. Nós precisamos desse esforço de restauração e o próprio presidente pressiona e investe nessa agenda. Mudamos várias leis para atrair investimentos privados para restauração. 

Madagascar se comprometeu a restaurar 4 milhões de hectares de terras degradadas até 2030. A última avaliação foi em 2019 e estávamos com 1,5 milhão de hectares de terras degradadas restauradas com os parceiros, o setor privado, os estados e recursos domésticos. 

Madagascar sediará a reunião dessa iniciativa de restauração, a AFR 100, porque a meta é que a África restaure 100 milhões de hectares de terras degradadas e a parte de Madagascar é de 4 milhões. E Madagascar sediará a cúpula este ano com todos os ministros africanos para fazer a avaliação e ver onde cada país está [no cumprimento da meta]. E Madagascar já está fazendo seu relatório, então saberemos muito em breve quantos hectares restauramos até agora. Mas tenho certeza de que deveríamos ter alcançado facilmente mais de 2,5 ou 2,7 [milhões de hectares]. 

Voltando a falar de biodiversidade: o país tem a maior população endêmica de primatas, os lêmures, mas cerca de 95% estão sob risco de extinção. O que está sendo feito?

A maioria está ameaçada pela perda de habitat. E isso também é consequência da pobreza. Por isso, para realmente preservá-los. Eu acredito que não devemos ter uma estratégia focada apenas nos lêmures. Nós fazemos isso e apoiamos o trabalho de todos os primatólogos e do IPS, mas nossos esforços serão em vão se tentarmos apenas proteger os lêmures. Nós precisamos de uma abordagem mais ampla. Se nós desenvolvermos as comunidades, nós iremos proteger os lêmures. É por isso que eu digo que precisamos melhorar as condições de vida das populações no entorno [das áreas protegidas]. 

Eu estive com o presidente no último mês em Mônaco e Nice, para a Conferência dos Oceanos. Ninguém derruba árvores em Mônaco ou Nice porque as pessoas comem três vezes por dia. Enquanto as pessoas não comerem três vezes por dia, é difícil pedir para que eles não cortem árvores. Existem caçadores ilegais, mas são poucos, e normalmente ligados ao tráfico ilegal. E nós somos muito sérios no combate ao tráfico, com muitos esforços e programas. Mas, no geral, é uma estratégia holística.

O indri (Indri indri), maior espécie de lêmure existente em Madagascar e em perigo crítico de extinção. Foto: Duda Menegassi

E você acredita que o turismo pode ajudar na conservação?

Sim, o turismo e o ecoturismo. No ano passado, tomamos uma decisão corajosa e decidimos que seis parques participarão de um projeto piloto para concessão da operação ecoturística em áreas protegidas ao setor privado. As empresas serão escolhidas com base em vários critérios e irão operar hotéis dentro das áreas protegidas para obrigá-las a criar empregos na comunidade. E também gerar fluxo dentro dos parques, o que dificulta a ação de caçadores e traficantes. Vai trazer receita para dentro das comunidades, para artesãos e para os agricultores que fornecem comida aos hotéis.

Estamos confiantes que o turismo pode ajudar, por isso estamos criando uma narrativa sobre como os lêmures e o turismo estão ligados, porque a maioria das pessoas vem para Madagascar para ver lêmures. E as pessoas devem saber sobre eles. Por isso ficamos orgulhosos de sediar o congresso da IPS, porque vai fazer Madagascar brilhar na cena internacional. Todos vocês, quando voltarem para casa, vocês viram lêmures e vão contar para seus amigos e talvez alguns deles venham visitar Madagascar também e assim por diante. O turismo pode realmente ajudar. É parte de uma estratégia maior, mas é um componente importante.

  • Duda Menegassi

    Jornalista ambiental especializada em unidades de conservação, montanhismo e divulgação científica.

Leia também

Reportagens
16 de agosto de 2023

Contra desertificação e crise climática, África aposta na restauração

Ao todo 34 países já se comprometeram com um total de 130 milhões de hectares de terras degradadas e desmatadas a serem restaurados no continente africano até 2030

Notícias
8 de julho de 2024

Pesquisadores lideram projeto para proteger chimpanzés na Uganda

Vítimas colaterais, chimpanzés são feridos e até mutilados pelas arapucas de caçadores. Projeto investe na remoção das armadilhas para salvá-los

Reportagens
11 de setembro de 2023

A volta do dançarino dos desertos

Iniciativa de reintrodução em área protegida no norte do Chade, na África, traz de volta o avestruz-norte-africano ao Deserto do Saara

Mais de ((o))eco

Deixe uma resposta

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Saiba como seus dados em comentários são processados.