No início dos anos 1980, dois jovens com muita energia e o sonho de trabalhar com conservação da natureza não poderiam imaginar que, 40 anos depois, teriam estampado diversas reportagens e um documentário que conta a história da organização que fundaram na época para dar forma ao sonho: a Sociedade de Pesquisa em Vida Selvagem e Educação Ambiental (SPVS). Pode-se dizer que o casal é hoje a “cara” da SPVS e integra a lista dos nomes mais respeitados no Brasil quando o assunto é conservação. A jornada não foi fácil. Se mesmo hoje falar de meio ambiente requer coragem, resiliência e determinação, ao longo destas quatro décadas não faltaram desafios.
Tanto Mônica Borges quanto Clóvis Borges sempre souberam, desde a adolescência, que queriam trabalhar “com bichos” e conservação. Os caminhos dos então estudantes de biologia e veterinária se cruzaram no Museu de História Natural de Curitiba, onde estagiaram juntos, parte de um grupo de jovens capitaneados por Pedro Scherer Neto, engenheiro agrônomo, mestre em zoologia e um dos mais renomados ornitólogos do Brasil. “Pedro abriu as portas do museu para muitos estudantes, um grupo com muita energia, para fazer pesquisa em fauna, flora e educação ambiental. Foi ali que nasceu uma paixão, no meu segundo ano de graduação”, lembra a bióloga.
O museu, entretanto, não seria capaz de absorver profissionalmente todo o grupo, que queria permanecer unido. Foi então que, munidos apenas da vontade de mudar o mundo (ou pelo menos uma parte dele), e de uma máquina de escrever, um telefone e uma lista telefônica, os jovens esboçaram um estatuto e começaram a ligar para instituições em busca de trabalhos. Nascia um sonho pela conservação da natureza, oficialmente homologado em 1984, ano da fundação da SPVS. Mas logo a realidade bateu à porta – ou melhor, ninguém bateu.
Na pequena sala emprestada para o projeto, onde trabalharam por seis anos, a recém-criada instituição ia se frustrando com a falta de interessados em seus serviços. “Ao longo do tempo, principalmente depois da fundação da SPVS, a ideia mais lúdica, mais lírica de que seria um trabalho com condições adequadas para pesquisa e conservação de áreas foi dando lugar à dureza da realidade e os enfrentamentos necessários para buscar condições de trabalho que não existem”, lembra Clóvis, acrescentando que grande parte das dificuldades ainda perduram nos dias de hoje.
Até que em 1985, um gerente da Petrobras procurou o museu para obter ajuda na restauração de florestas em áreas degradadas por exploração de xisto – a empresa se limitava aos plantios de pinus e eucalipto na época, espécies exóticas e invasoras que não fazem parte da biodiversidade nativa da Mata Atlântica. A indicação foi certeira: procure aquele grupo de jovens que trabalha logo ali, naquela portinha. Eles saberão o que fazer.
Assim que nasceu o primeiro projeto da SPVS. Promoveram, além do plantio de árvores nativas, ações de educação ambiental com mais de 400 crianças. O trabalho com a estatal se estendeu por mais cinco anos, e muitos outros projetos se seguiram, para instituições e empresas como Itaipu, Ibama/ICMBio (na época IBDF – Instituto Brasileiro do Desenvolvimento Florestal) e Alcoa. O grupo também empreendia ações como o Verão Ecológico, com limpeza de praias no litoral paranaense.
Depois de um tempo, apenas quatro pessoas da formação original permaneceram. O casal, Clóvis e Mônica, é até hoje um dos principais pilares da SPVS. “Clóvis era a mente inovadora, então ficou como diretor, e eu acabei voltando para a área de atuação que aprendi com a minha família empreendedora de Santa Catarina, a administração. Hoje atuo na gestão institucional, na captação de recursos, parcerias e na parte financeira e de auditorias”, conta Mônica, que ocupa o cargo de gerente de parcerias estratégicas. A transparência é um dos seus lemas mais importantes: “Um real tem que ser tratado com a mesma transparência que 100 mil reais”.
O casamento de Clóvis e Mônica acabou acontecendo de forma paralela e, ao mesmo tempo, intrínseca à história da SPVS. Duas histórias que se confundem. “Temos companheirismo, respeito, propósito comum. Mas houve momentos em que nos perguntamos se era possível seguir conciliando esta carreira em comum e relacionamento, porque o que escolhemos fazer traz muitos desafios”, ela relembra. O casal superou cada dificuldade e segue até hoje inspirando novas gerações. O orgulho de Mônica é que seus dois filhos adultos, Ricardo e Daniela, também trabalham com meio ambiente: ele como engenheiro florestal e coordenador da Grande Reserva Mata Atlântica, ela atuando no Pnuma (Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente). “Quando os filhos acreditam na profissão dos pais, é porque o trabalho que realizamos é sério”, declara.
Reservas Naturais: o carro-chefe da SPVS
Entre o final dos anos 1980 e início da década seguinte que aconteceu uma das grandes viradas da história da SPVS e que iria definir para sempre seu legado: a compra de uma área de cerca de 19 mil hectares de fazendas onde se criavam búfalos, cuja terra estava severamente devastada, com o intuito de recriar florestas. Mais de 20 anos depois, as três reservas naturais mantidas pela SPVS na região litorânea do Paraná – Reserva Natural das Águas, Reserva Natural Guaricica e Reserva Natural Papagaio-de-cara-roxa – integram uma área de suma importância para a preservação da biodiversidade: a Grande Reserva Mata Atlântica, com 2 milhões de hectares que compõem o maior contínuo deste bioma, uma área que abrange Santa Catarina, Paraná e São Paulo.
O trabalho de plantio e monitoramento, realizado com o auxílio das equipes e da tecnologia (como o GPS utilizado para acompanhar as áreas reflorestadas), assegura a recuperação e proteção de centenas de espécies de fauna e flora. Os serviços ecossistêmicos são inegáveis, como o fornecimento de água limpa e potável para toda a cidade de Antonina (PR) e arredores, além do ICMS ecológico, que rendeu quase 40 milhões de reais ao longo de 17 anos à prefeitura da cidade devido à conservação das reservas.
O ousado e bem-sucedido empreendimento foi possível por um conjunto de fatores. A organização The Nature Conservancy procurava um projeto para investir na América Latina que aliasse os temas da conservação da biodiversidade e mudanças climáticas. Assim, um aporte milionário foi feito por três empresas (American Electric Power, General Motors e Chevron), que queriam investir em ações de mitigação climática a partir de manutenção de estoque de carbono. A escolha das mais de 40 fazendas foi criteriosamente conduzida por Mônica, sempre atenta aos detalhes legais e de respeito aos direitos das pessoas que já viviam na região. Apesar dos cuidados, houve setores da sociedade que contestaram a idoneidade da SPVS e Clóvis precisou, inclusive, dar depoimentos em uma CPI que apurava denúncias de irregularidades supostamente praticadas por ONGs.
Todo o esforço valeu a pena e hoje as reservas são o grande orgulho do casal. “O maior legado é mudar a história de uma região, resgatar seu potencial natural. Não existe maior legado que áreas naturais conservadas”, ela conta, com um brilho no olhar. “A SPVS muda a narrativa: a conservação sai de fim para meio. Conservação traz benefícios para as pessoas e para a natureza, traz serviços ecossistêmicos”, completa.
As cerca de 30 pessoas que hoje trabalham em campo são, a maior parte, oriundas da época das fazendas. Quando a SPVS chegou, nos idos dos anos 2000, foram céticos em relação ao reflorestamento. Hoje, contudo, são entusiastas da conservação e celebram as mudanças em suas vidas: direitos trabalhistas respeitados, acesso à saúde e educação, e tempo para viver com dignidade.
Atualmente o portfólio de projetos da SPVS vai muito além das três reservas. Destacam-se o Projeto de Conservação do Papagaio-de-cara-roxa, o Programa de Conservação do Mico-leão-da-cara-preta, o Programa Papagaios do Brasil e o Conexão Araucária, além de programas de educação ambiental e ecoturismo de base comunitária. “O legado da SPVS vem, em especial, de ações inovadoras capazes de se tornar políticas públicas e gerar mudanças de cenário. Está em um conjunto de iniciativas que, além dos resultados pontuais, apontam para a necessidade de uma maior integração da sociedade em torno de uma agenda ambiental fundamental para a manutenção de negócios e qualidade de vida”, explica Clóvis.
Apesar de quatro décadas de trajetória, de todas as transformações realizadas e reconhecidas por mais de 20 prêmios – incluindo Melhores ONGs em 2017, concedido pelo Instituto Doar e a Revista Época –, Mônica reconhece o desafio que ainda se coloca à sociedade para “colocar as pessoas como parte do cenário”. A “chave” ainda não virou, diz ela, para a maior parte da população, que não entende o valor intrínseco da natureza. “As pessoas têm que se posicionar, a partir do voto, das escolhas na hora de fazer compras. Para um jovem hoje eu diria: não seja comodista, não perca a esperança. Trabalhar com conservação é uma luta pesada, o que a natureza levou milhares de anos a gente destruiu, mas estar na SPVS é acreditar numa mola propulsora no fundo do poço. As pessoas precisam de natureza”.
Clóvis acrescenta que, enquanto os jovens vivem com uma grande angústia em relação ao futuro – o que já ganhou até nome na ciência: ecoansiedade – este mesmo sentimento pode criar uma abertura para contestar o cenário negativo que já existe e nos atinge de forma “brutal” para somar forças com iniciativas de conservação da natureza e de transformação social. “Atuar no terceiro setor, atuar como alguém que queira efetivamente mudar o mundo para melhor, pensando no próximo e na sociedade como um todo, exercendo a cidadania”.
Ele é também bastante incisivo quando afirma que não temos mais tempo a perder no que tange à preservação do meio ambiente e do enfrentamento da crise climática. “A SPVS hoje é uma referência, com seu passado de realizações, para ir à frente e continuar insistindo com a sociedade em prol das ações, que ainda não são suficientes, para reverter o processo de perda de biodiversidade e mudança do clima”, destaca.
“A busca por estratégias mais efetivas, a perspectiva de avanços a partir de técnicas que aproximem atores, que façam com que haja mais atratividade nos investimentos em conservação da natureza, certamente é o caminho que deve ser tomado nos próximos anos”.
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