Conama e os fora-da-lei V
De Guilherme José Purvin de FigueiredoPrezado Paulo Bessa,O seu artigo "Conama, um fora-da-lei" está muito bem redigido, como tudo o que você escreve, aliás. Você lembra com bastante pertinência o pecado original: a MP 2166-67. Eu e a prof. Márcia Dieguez Leuzinger escrevemos em parceria, na ocasião, um artigo sobre o uso indevido de medidas provisórias e o oportunismo na sua utilização naquela oportunidade por determinadas entidades da área do movimento ambientalista. O texto foi publicado na Rev. Direito Ambiental e, mais recentemente, republicado com atualizações na Revista de Direitos Difusos e reflextia o sentimento de um grande grupo de profissionais da área ambiental na época. Realmente, a tal MP produziu um pequeno monstro que, hoje, já mostra suas garras.No entanto, não concordo com as idéias que você ali desenvolve. Você afirma que o Código Florestal foi concebido para "disciplinar a produção industrial de madeira". Eu não diria isso: o Código Florestal foi concebido para corrigir uma série de vícios no setor agrário que vinham já sendo denunciados desde a época de José Bonifácio de Andrada e Silva. Vícios que sempre resultaram em graves prejuízos para o país: vide o fim do primeiro ciclo da cana-de-açúcar e do primeiro ciclo do café (Vale do Paraíba e "cidades mortas"), retratos históricos de uma utilização burra da terra.Na verdade, tanto o primeiro como o segundo Código Florestal constituem magníficos exemplos de aplicação vanguardista do principio da função social da propriedade. E, com o advento da consciência ambientalista, que só surgiria a partir do final da década de 1960, é evidente que esse diploma legal adquiriu uma nova dimensão. Isso significa simplesmente que o Direito tem vida, não é estático, muda de acordo com as transformações da própria sociedade.Assim, ante a inexistência, como você mesmo diz, "de uma legislação no Brasil que se voltasse para a `proteção ambiental' de áreas com significativo valor ecológico", é evidente que o diploma legal mais próximo dessa meta ambiental era o Código Florestal! Não há, portanto, nenhum demérito nisso e nenhuma surpresa em invocá-lo para a defesa de nossos depauperados ecossistemas, outrora tão ricos e hoje, como você mesmo diz, relegados à condição de "sub-bosque" ou "gramínea um pouco mais alentada". Não fosse o Código Florestal, nem sub-bosques teríamos!Quanto à utilização do Código Florestal em áreas urbanas, absolutamente não entendo como você possa considerar uma "verdadeira contradictio in adjecto", ainda mais em se tratando de um carioca! Lembre-se que Dom Pedro II foi o mais ilustre defensor da Floresta da Tijuca, a maior floresta em área urbana do mundo, ecossistema da maior importância para a sobrevivência de sua cidade! Aliás, fosse o nosso tão agredido e desrespeitado Código Florestal aplicado como se deve, na cidade de São Paulo, não teríamos o cenário desolador que são as áreas de proteção de mananciais ao redor das represas Billings e Guarapiranga, totalmente ocupadas por loteamentos clandestinos, nem a contínua devastação da Serra do Mar, ocupada por desvalidos na região de Santos, Cubatão e São Vicente. Acima de tudo, não teríamos essas enchentes medonhas, resultantes que são da permeabilização de áreas de preservação permanente nas margens dos rios (matas ciliares), topos de morros, encostas com inclinação superior a 45º etc. Conheci São Paulo numa época em que não havia enchentes, Paulo, assim como você deve ter conhecido o Rio de Janeiro na época em que Tom Jobim e Vinícius de Morais viam poesia no cenário de suas praias e morros.A Lei 4771/65, queiramos ou não, dispõe em seu art. 2º e parágrafo único sobre APPs pelo só efeito da lei. É evidente que determinadas situações carecem de regulamentação - e regulamentar lei é função do Poder Executivo, não do Congresso Nacional. Pessoalmente, entendo que melhor seria a edição de decreto regulamentando referido dispositivo mas, de qualquer forma, o CONAMA é uma instância privilegiada e muito mais próxima da meta da democracia participativa. E sua base legal é a Lei n. 6.938/81, art. 8º, inciso VII: "Compete ao CONAMA (...) estabelecer normas, critérios e padrões relativos ao controle e à manutenção da qualidade do meio ambiente com vistas ao uso racional dos recursos ambientais, principalmente os hídricos". Não há, portanto, oportunismo na defesa de determinada resolução do CONAMA e na crítica a outra. O parâmetro é muito bem definido: se as normas não são aptas à manutenção da qualidade do meio ambiente (caso do famigerado projeto de resolução das APPs, muito bem criticado pelo Procurador Geral de Justiça do Estado de São Paulo, em artigo publicado na Folha de São Paulo da semana passada), é claro que deverão ser impugnadas. E não há, aqui, nenhuma defesa de "meus interesses", nem dos interesses do Ministério Público ou de quem quer que seja. Há a defesa do meio ambiente ecologicamente equilibrado, como determina o art. 225 da Constituição Federal. Essa defesa, inclusive em instância política, é um dever de todos nós. Só não é dos proprietários de terras que insistem em utilizá-la em desacordo com a lei. Cordialmente,Resposta do autor:Prezado Guilherme Agradeço o longo comentário ao meu artigo. Ele existe para isto mesmo, suscitar debate. No âmbito de um espaço jornalístico não cabem maiores aprofundamentos. Sem dúvida, o direito é dinâmico e se transforma. O Código Florestal, por exemplo, se transformou de "florestal" para tudo que seja "verde". A sua utilização em áreas não florestais é a prova da inexistência de uma legislação mais geral para áreas urbanas e outras. Em 1965 quando o atual Código foi promulgado, o Brasil era um país majoritariamente agrário. O que não é hoje. A estória da "Floresta urbana" é algo inexplicável. O Major Archer e o seu grupo construíram a floresta da Tijuca dentro de uma ideologia que pretendia mostrar que o Brasil não era "selvagem" e que preservava as suas matas. Como o amigo sabe existem bons livros sobre o tema. Na minha opinião, o melhor é de Claudia Heynemann, editado pelo Arquivo Público da Cidade do Rio de Janeiro. Entretanto, a existência do Código Florestal não impediu que o Rio fosse favelizado, nem que os mananciais de São Paulo fossem ocupados. A questão não se retringe à existência de uma legislação, vai muito além.A existência de norma que possa atender às realidades urbanas é o que precisamos, para realidades urbanas. Recordo-me que há alguns anos, houve uma enorme polêmica sobre a substituição de árvores nas Avenidas Nossa Senhora de Copacabana e Barata Ribeiro. Invocava-se, então, o Código Florestal.Pessoalmente, considero o Código Florestal uma excelente lei e, por várias vezes, tenho me manifestado em defesa da Reserva Florestal Legal, do conceito de "interesse comum" e de outros institutos do Código, como é do teu conhecimento. De qualquer forma, grato pela atenção. Paulo Bessa →