Análises

Bird ‘sugere’ licenciamento submisso aos investidores

Para professor da Federal de Rondônia, estudo do Banco Mundial contratado pelo Ministério de Minas e Energia defende que licenciamento seja como “uma linha de montagem”.

Luis Fernando Novoa Garzon ·
7 de abril de 2008 · 17 anos atrás

Finalmente foram trazidos a público os resultados do estudo empreendido pelo Banco Mundial (BIRD) por solicitação do Ministério de Minas e Energia, intitulado “Licenciamento ambiental de empreendimentos hidrelétricos no Brasil: uma contribuição para o debate”. O estudo torna explícita a estratégia de desmonte da regulamentação ambiental do país, propugnada pelo governo federal, pelos conglomerados privados nacionais e estrangeiros, assim como pelas Instituições Financeiras Internacionais (IFIS).

O Banco Mundial, com seu caixa e gestão controlados pelos países centrais, e pelos grupos econômicos hegemônicos nestes, tem como missão multiplicar oportunidades de negócios mundo afora, o que automaticamente, na visão liberal pretensamente única, significaria democratização do acesso aos benefícios da civilização. Seus financiamentos devem ser “inteligentes”, arquitetados para amaciar estruturas protecionistas e desanuviar contextos desfavoráveis aos investimentos. Os empréstimos são apenas o meio, o BIRD – assim como as outras IFIS (BID, BEI, CAF etc.) – tem como finalidade última a produção de conhecimento e de capacidades institucionais que dêem suporte ao avanço das forças de mercado.

Este estudo sobre a “eficácia” do licenciamento de usinas hidroelétricas faz parte de uma assistência técnica que o BIRD vem dando ao governo brasileiro desde 2004, nos marcos do programa SAL (Structural Adjustment Loan) – TAL (Technical Assistance Loan), que concede créditos vinculados a reformas nas políticas ambientais e de recursos naturais do país. Especificamente junto ao Ministério de Minas e Energia, o Banco Mundial firmou o projeto ESTAL (Energy Sector Technical Assistance Loan). Entre as metas e indicadores da assistência técnica do Banco, em comum acordo com o “cliente” governamental, estão o desenvolvimento de novos mercados, de marcos regulatórios afins e de instrumentos de planejamento de expansão da geração. Para tanto, a reforma da estrutura ambiental do país, de seu gerenciamento e dos procedimentos de licenciamento, seria indispensável.

O estudo em questão já tinha sido parcialmente divulgado em 2007 pelo MME e pela Casa Civil, quando se discutia a reestruturação do IBAMA, em meio à grita generalizada do setor privado contra o “atraso” do licenciamento prévio de duas usinas hidroelétricas no rio Madeira, na região amazônica. Também por meio do programa ESTAL, foi contratado o consultor internacional Sultan Alan para “resolver” as últimas pendências técnicas do licenciamento dessas mesmas usinas com um diligente e providencial parecer técnico, referente à dinâmica dos sedimentos após a construção.

A premissa do obstáculo

Compreende-se perfeitamente por que o foco do estudo do Banco Mundial seja o “obstáculo” do licenciamento ambiental, a “demora” de seu processamento e os custos “significativos” envolvidos nele. Basta considerar as perguntas/hipóteses iniciais do setor responsável pelo estudo, a Unidade de Direito Ambiental & Internacional vinculada à vice-presidência jurídica do Banco Mundial:

a) “A ausência de prazos específicos por parte dos órgãos licenciadores para manifestações e esclarecimentos não acaba afetando a eficácia do licenciamento ambiental?”

b) “Em que medida a intervenção do Judiciário na suspensão e interrupção dos procedimentos de licenciamento ambiental, sem que esses tenham oportunidade de serem concluídos na esfera administrativa, afeta a credibilidade e interfere na segurança jurídica dos empreendimentos?”

c) “O Poder Público está capacitado tecnicamente para atender à demanda dos licenciamentos ambientais? Tem condições técnicas de dar respostas adequadas às solicitações do setor privado?”

d) “As regras de compensação ambiental previstas em lei são nítidas o suficiente para conferir segurança jurídica e financeira aos projetos de energia? A destinação dos recursos da compensação é eficaz para a proteção ambiental?”

e) “Com quem e como se estabelecem as relações de negociação com as comunidades afetadas? Como estas afetam a expedição do processo? Em que fase do processo de licenciamento a atuação das ONGs tem sido mais presente?”

f) “Se fosse possível indicar apenas um ator responsável por obstáculos ao processo de licenciamento quem seria este, em que fase estes obstáculos emergeriam de forma mais aguda e por quê?”

g) “Uma vez que haja o envolvimento do Ministério Público, o que poderia ser alterado para que a participação deste não gerasse atrasos ou a percepção da duplicação de funções (MP versus papel revisor do órgão licenciador)?”

Eficácia do licenciamento ou governança empresarial?

O produto final do estudo mensura os “atrasos médios” na emissão das licenças, como se estivéssemos lidando com uma linha de montagem industrial. Definidas as metas de produtividade, estabelecem-se os instrumentos e sistemas operacionais. O estudo sugere a emissão de licenças únicas por bacia hidrográfica, um sinal verde para a produção de usinas em série. A corrida ao ouro é a corrida para que entrem em operação novas usinas hidroelétricas. A ABDIB, que reúne os conglomerados privados no país voltados para o setor, há muito faz campanha por uma redução de 25% do timing do licenciamento ambiental. Em sintonia, o estudo identifica que o tempo médio para entrada em operação de usinas hidroelétricas no Brasil é de seis anos e meio, 30% a mais do que se observa nos Estados Unidos.

Mais sensato que medir a eficácia do licenciamento seria avaliar a eficácia do sistema de agregação de interesses que permitiu que tal pergunta fosse feita. O que dizer de um processo político-decisório que define metas de expansão da geração em função da oferta de negócios de baixo risco a monopólios privados enquanto a população prossegue sub-atendida e arcando com pesadas tarifas residenciais?

Energia disponível e barata não depende necessariamente de um boom de novos megaprojetos hídricos, como faz crer o lobby dos próprios interessados, dentro do qual o estudo do Banco Mundial se inscreve. O que é estandarte antes das liberações, “energia para os pobres”, depois da aprovação vira migalha e protelação. O setor elétrico nacional, vazado, flexibilizado e amplamente privatizado, tornou-se refém de clusters setoriais e territoriais, vinculados aos mercados mundiais, sem quaisquer compromissos com a nação e seu povo.

Antes de perguntarmos se o governo tem condições de responder à demanda energética (e de licenciamentos) do setor privado, devemos questionar a validade de tal demanda, a que e a quem se refere. Falar em crescimento e desenvolvimento em geral não vale. Quem quer a destruição de ecossistemas e modos de vida íntegros e integrados, verdadeiros patrimônios ambientais e culturais de valor infinito para subsidiar a exportação de aço, alumínio, celulose? É justo que essas indústrias retenham, a baixo custo, ¼ de toda a energia produzida no país e ainda com diminuta retribuição social e tecnológica, além de enorme impacto ambiental?

Para as empresas ainda é pouco, agora querem minimizar os níveis máximos das compensações ambientais. Incerteza regulatória e margem de lucro inferior ou igual à média internacional não atraem investidores, reza a chantagem na forma de estudo “técnico”. Por isso as negociações com as comunidades afetadas, movimentos e ONGs, intermediadas pelo Ministério Público, preocupam o Banco Mundial e os clientes de seu estudo. Querem saber como impedir que o Ministério Público se interponha como revisor técnico do processo de licenciamento, para além da verificação de sua conformidade legal. Mas onde já se viu técnica indiferente ou acima da lei? Os procedimentos técnicos, os critérios e metodologias que garantem fidedignidade e confiabilidade das informações levantadas no licenciamento inscrevem-se na legislação.

Ao Ministério Público cabe, em qualquer fase do licenciamento, agir no sentido da reparação da legalidade, pleiteando se necessário a anulação de ato lesivo, ou tendencialmente lesivo, aos direitos individuais e coletivos. O estudo considera sem paralelo a “independência ilimitada” conferida aos procuradores brasileiros. Mas sem paralelo é esta intromissão, travestida de “recomendação técnica”, da vice-presidência jurídica do Banco Mundial em assuntos afeitos ao ordenamento constitucional brasileiro. A Constituição de 1988 conferiu soberanamente lugar destacado ao Ministério Público como garantidor objetivo dos direitos nela previstos. A autonomia funcional e administrativa do Ministério Público corresponde à autonomia que deve ter o Estado de Direito contra arbítrios de qualquer ordem. Antídoto certo contra reversões ditatoriais que não casualmente incomoda hoje o poder econômico auto-erigido enquanto poder de exceção.

A nação contém ou está contida?

O estudo do Banco Mundial parte do pressuposto de que as normativas sócio-ambientais é que devem se submeter às exigências dos investidores e não o contrário. Na decisão de barramento de um rio pesam interesses, temporalidades e vínculos que não cabem em balancetes e planilhas. Em nome do interesse público – essa somatória mínima do que pode nos manter convivendo lado a lado com o mínimo de isonomia – projetos, especialmente os de grande escala, podem e devem ser corrigidos, podem e devem ser recusados, caso não se demonstre que os eventuais benefícios das obras superam seus impactos encadeados e suas seqüelas. Não basta declarar a opção por uma fonte energética aparentemente de menor impacto e ponto final. Há que se processar o balanço rigoroso de efeitos positivos e negativos, caso a caso, projeto a projeto. Aos empreendedores o ônus da prova.

É somente do preenchimento estrito dos requisitos institucionais, sociais e ambientais que nasce o direito à licença ambiental. Indecorosa, portanto, qualquer proposta que coloque o rebaixamento desses requisitos como condição para a viabilização de novos empreendimentos hidroelétricos no país. De Washington, e sem nenhum pudor, o estudo nos brinda um caminho de mão única. Na “falta de alternativas energéticas a médio prazo, a segurança energética e o aquecimento global tornam imperativa a mobilização do enorme potencial hidrelétrico do Brasil, muito do qual se encontra na Amazônia”.

Em primeiro lugar, a ausência de alternativas energéticas denota antes a ausência de investimentos substantivos em pesquisa e desenvolvimento nessas mesmas alternativas. Em segundo, é evidente que nos marcos do modelo ofertista em vigor, em que excedentes energéticos são disponibilizados como fator de atração dos investimentos privados, não pode haver outra alternativa, senão aumentar a oferta. Terceiro, o uso do aquecimento global para colocar a Amazônia em uma encruzilhada só pode ser uma pilhéria do Banco Mundial, pois todos sabemos que a evolução do fenômeno dependerá fortemente da capacidade do Brasil e dos países vizinhos de deter intervenções desarticuladoras, a exemplo dos megaprojetos hidroelétricos pretendidos para a região.

O estudo faz declarada apologia da desarticulação do bioma amazônico ao apontar o licenciamento ambiental como “uma dificuldade adicional para o Brasil aproveitar completamente o potencial hidroelétrico da região amazônica”. “Completamente”, no caso, quer dizer transformar todos os afluentes das margens esquerda e direita do Amazonas em uma sucessão de reservatórios com águas lênticas, estéreis e insalubres, em detrimento da mais portentosa bacia do planeta, da biodiversidade regional e do modo de vida singular de suas populações. Daí a “dificuldade” do licenciamento. Daí porque salvaguardá-lo.

Luis Fernando Novoa Garzon, membro da ATTAC/REDE BRASIL/REBRIP, é professor da Universidade Federal de Rondônia

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