A BR-101 é uma das mais movimentas rodovias do Brasil, ligando as regiões sul e sudeste ao nordeste do país. No Estado do Espírito Santo, essa rodovia foi implantada durante a década 70, à revelia da legislação ambiental da época, cortando uma das mais importantes paisagens de Floresta Atlântica de Tabuleiros, o complexo florestal de “Sooretama”, nome que em tupi-guarani significa “terra e refúgio dos animais da mata”.
Desde a década de 40, muitos anos antes da BR-101 ser implantada, a área foi destinada à conservação da biodiversidade, com a criação das duas Unidades de Conservação mais antigas do Espírito Santo e do Brasil: a Reserva Florestal Estadual de Barra Seca e o Parque de Refúgio de Animais Silvestres Sooretama. Em 1981, as duas unidades foram unidas na Reserva Biológica de Sooretama. Outras reservas importantes também foram estabelecidas na área, como a Reserva Natural Vale, a RPPN Mutum-Preto e a RPPN Recanto das Antas.
Hoje, a área possui aproximadamente 50 mil hectares de floresta protegida, entretanto, cortada por um intruso trecho de 25 km da BR-101, que diariamente mata dezenas de animais por atropelamento e fragmenta as populações silvestres. A presença da BR-101 em um dos últimos remanescentes de Floresta Atlântica de Tabuleiros, legalmente protegido, é um grave conflito na conservação da biodiversidade. Esta situação será agravada devido ao processo de ampliação e duplicação desse trecho, dentro do contrato de concessão da rodovia para a administração privada, até 2025. No momento, a ampliação está em fase de estudo de impacto ambiental.
O complexo florestal de Sooretama é uma área de extrema prioridade para a conservação da Mata Atlântica, tombada como patrimônio natural da humanidade pela UNESCO e é o último refúgio, no Estado, para a onça-pintada e também para o tatu-canastra. A anta, o maior mamífero terrestre brasileiro, também encontra na região um de seus últimos refúgios.
Este ano, em um intervalo de quatro meses, duas antas adultas foram atropeladas neste trecho da BR-101. A primeira, um macho, morreu na noite do dia 30 de junho, atropelada por um caminhão. A segunda, uma fêmea adulta jovem, morreu na noite do dia 24 de outubro, atropelada por um carro de passeio. A fêmea estava prenhe de outra vítima, um machinho que já estava bem formado. Três vidas atropeladas que representam perdas irreparáveis para a biodiversidade, pois trata-se de uma das espécies mais ameaçadas de extinção na Mata Atlântica. Algumas características, como um longo período de gestação (13 a 14 meses), o nascimento de apenas um filhote e o longo tempo de cuidado com a cria tornam as antas ainda mais suscetíveis à extinção, principalmente quando são associadas a ameaças tão impactantes quanto os atropelamentos. Não foram perdidas apenas estas três antas, mas também muitas outras que poderiam nascer nos próximos anos. Antes mesmo de conhecermos a quantidade de antas que existe na região, já se conta o número de vítimas.
Em ambos os acidentes, a alta velocidade dos veículos se revela pela violência do impacto. Os animais tiveram fraturas múltiplas de costelas, ossos das pernas e ruptura de diversos órgãos internos como coração, pulmão, fígado e intestinos. O impacto foi grande o suficiente para fazer com que o conteúdo do estômago fosse parar junto com os pulmões na cavidade torácica, através do rompimento do diafragma. O feto encontrado teve a coluna vertebral completamente fraturada e ruptura do abdômen, com exposição das vísceras (veja galeria de fotos).
Atenção! A galeria abaixo contém imagens fortes!
Por que animais como a anta atravessam as estradas? Na verdade, são as estradas que atravessam as áreas naturais desses animais, utilizadas por eles há milhares de anos. A probabilidade de atropelamento de animais é grande, principalmente em uma via com alto fluxo de veículos em alta velocidade e totalmente despreparada para evitar a tragédia anunciada, como é o caso da BR-101, em Sooretama. Muitos outros casos de atropelamento ocorrem também porque as estradas atravessam as rotas de migração dos animais ou porque as vias acabam atraindo os bichos devido a algum recurso alimentar disponível, como alimentos caídos na pista durante o transporte, insetos atraídos pela luz ou carniça de outros animais atropelados.
O atropelamento é a maior causa humana direta de morte de animais silvestres no mundo. No Brasil, estima-se que mais de 475 milhões animais silvestres são atropelados por ano. Esse número é 10 mil vezes maior que a quantidade de pessoas mortas por ano em acidentes de trânsito no país, sendo que vários desses acidentes com vítima humana fatal são causados pela colisão de veículos com animais silvestres de grande porte, como a anta. O problema não é um atentado somente à vida dos animais, mas também à vida das pessoas. Por sorte, nos acidentes em Sooretama, não houve vítima humana.
Apesar de muito preocupante, o atropelamento de fauna é apenas a ponta do “iceberg”, uma vez que as estradas têm uma série de outros efeitos negativos. Funcionam como barreiras físicas para o movimento dos animais, impedindo o acesso dos mesmos aos recursos ecológicos, como comida e parceiros sexuais, isolando as populações e impedindo o fluxo genético. Por outro lado, funcionam como acesso para introdução de espécies exóticas e domésticas de animais e plantas em ecossistemas preservados. Estes, por sua vez, competem com as espécies nativas locais por alimento e espaço, além de transmitirem doenças potencialmente fatais. Além disso, a implantação de uma estrada em uma paisagem natural leva a uma perda de habitat maior do que apenas a área coberta pela própria estrada, pois promove uma extensa e inevitável perda de qualidade da floresta a partir da borda da estrada, devido a maior incidência de luz solar, calor, poluição sonora, do ar, do solo e da água. Pelas vias de escoamento de águas pluviais, por exemplo, os contaminantes tóxicos das estradas, como metais pesados dos automóveis, entram na paisagem de forma mais ampla e permanecem no meio ambiente, interagindo com a vida silvestre. Os organismos são sensíveis a essas alterações em seus ambientes. Todos esses fatores aumentam os riscos de extinção das populações de espécies silvestres, agravando a atual crise global da biodiversidade.
As estradas são empreendimentos sociais, mas não podem ser um atentado contra os últimos refúgios da biodiversidade, principalmente as áreas protegidas em um dos biomas mais ameaçados do mundo, a Mata Atlântica. Visto que estes remanescentes naturais, para além do papel na conservação, também cumprem importante papel social, como fornecedores de serviços ambientais indispensáveis às atividades humanas e garantia de sustentabilidade global.
O Estado Brasileiro, o setor produtivo e a sociedade civil têm que assumir esse grave problema da BR-101 em Sooretama de forma responsável. O ideal é que a rodovia seja realocada, ou seja, desviada da Rebio de Sooretama e seu entorno. Sooretama nunca foi lugar para estrada, sempre foi a terra e o refúgio dos animais da mata.
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