Reportagens

Obra em unidade de conservação sacrifica árvores ameaçadas no RJ

Duplicação da rodovia RJ-085, que corta a APA Alto Iguaçu, gera impactos ambientais; até árvore em perigo crítico foi derrubada "por engano", diz morador

Gabriel Tussini ·
1 de agosto de 2023

Uma área tranquila e bucólica da Baixada Fluminense, em meio à Área de Proteção Ambiental (APA) Alto Iguaçu – um refúgio de espécies ameaçadas de fauna e flora da Mata Atlântica –, tem tido sua paz perturbada. Localizada na divisa entre os municípios de Belford Roxo e Duque de Caxias, na região metropolitana do Rio de Janeiro, moradores relatam descaso com o ecossistema local nas obras da rodovia RJ-085, no trecho que liga as duas cidades, próximo à fronteira tríplice com o município de Nova Iguaçu.

A obra foi proposta pela prefeitura de Duque de Caxias – à época comandada pelo atual secretário estadual de Transportes, Washington Reis –, contratada pela Secretaria de Estado de Infraestrutura e Cidades (SECID) e tocada pela construtora Alberto Couto Alves Brasil (ACA Brasil). O projeto prevê duplicar a rodovia, instalar iluminação pública e duas pontes metálicas ao longo do trecho de quase 6 km que liga os bairros Recantus, em Belford Roxo, e Xerém, em Duque de Caxias, ao custo de pouco mais de R$ 52 milhões. A empreitada é parte do Pacto RJ, programa de obras públicas financiado, em grande parte, pelo dinheiro do leilão de privatização dos serviços de distribuição de água e saneamento básico da Companhia Estadual de Águas e Esgotos do Rio de Janeiro (CEDAE).

Trecho em reformas. Imagem: Google Earth

O trecho, porém, se encontra numa região sensível. A APA Alto Iguaçu é um importante refúgio de espécies animais e vegetais da Mata Atlântica, cercada por regiões densamente povoadas. Árvores raras ocorrem no local, inclusive no caminho da duplicação. 

Nos documentos relacionados à obra protocolados no Sistema Eletrônico de Informações (SEI) do governo estadual, constam apenas duas licenças ambientais (uma Prévia e outra de Instalação) para o empreendimento, emitidas pela Secretaria de Meio Ambiente e Proteção Animal de Duque de Caxias. Para o trecho em Belford Roxo, porém, não consta nada. A reportagem entrou em contato com o Instituto Estadual do Ambiente (INEA), que administra a área de proteção estadual, questionando, entre outras coisas, se havia licença para intervenções na estrada em Belford Roxo. Ainda não há resposta.

Desmatamento de espécies ameaçadas

Em Belford Roxo, no trecho rural da avenida Nova Aurora – entre o bairro Recantus e a ponte do Outeiro, que marca a fronteira com Duque de Caxias –, sítios e áreas de floresta densa dominam a paisagem. Uma das propriedades na beira da estrada, o Sítio do Japonês, está abandonado desde a morte do antigo dono, último membro de sua família, há “mais de 20 anos”, como lembrou o servidor público Marcelino Araújo, morador da região. Desde então, a flora nativa retomava o local.

Isso até recentemente, quando funcionários da obra desmataram a área para a duplicação, até perceberem que estavam na margem errada na estrada – suprimiram uma faixa de 300 metros de vegetação no lado esquerdo de quem segue no sentido Duque de Caxias, quando deveria ser no lado direito, segundo Marcelino. 

“Os caras ficaram uma semana desmatando no lado esquerdo da avenida Nova Aurora. Derrubaram todas as capoeiras [vegetação secundária que cresce naturalmente após a derrubada da vegetação original; as capoeiras do sítio estavam em estágio avançado de sucessão, crescendo há 20 anos] que protegiam a lateral do Sítio do Japonês até perceberem que estava errado”, relata o morador. Segundo ele, restam apenas as maiores árvores, “que a máquina não conseguiu derrubar”. “Os caras não fizeram nem um apanhado do que ocorre lá em termos de flora e fauna. Um descaso”, lamentou.

Entre as árvores que vivam no local, estavam espécies como guapuruvu (Schizolobium parahyba), açoita-cavalo (Luehea divaricata), carobinha (Jacaranda puberula), quaresmeira (Pleroma granulosum) e um tipo raro e ameaçado de camboatá, a Cupania schizoneura, exclusiva do estado do Rio de Janeiro e classificada como Criticamente Ameaçada na última lista oficial de espécies da flora ameaçadas de extinção divulgada pelo Ministério do Meio Ambiente (MMA).

Parte da faixa desmatada no Sítio do Japonês. Foto: Marcelino Araújo

A derrubada das espécies, principalmente a Cupania schizoneura, vai de encontro às normas da APA Alto Iguaçu. Segundo o artigo 5º do Decreto Estadual 44.032/13, que criou a área protegida, não são permitidos o “desmatamento, extração de madeira, retirada de material vegetal ou espécies vegetais nativas e promoção de queimadas” e “atividades que ameacem as espécies raras, endêmicas, vulneráveis e ameaçadas da biota nativa regional”. O contrato entre SECID e ACA Brasil também fala que “os serviços deverão ser executados em conformidade com as orientações e normas voltadas para a sustentabilidade ambiental”.

Perguntada sobre esse incidente, a Secretaria de Infraestrutura e Cidades afirmou que a área desmatada “era ocupada por casas e plantações que não estão ligadas ao bioma local” (resposta completa abaixo), embora todas sejam espécies típicas da Mata Atlântica, porém não respondeu sobre a área ter sido desmatada por engano. A secretaria afirmou ainda que “não houve intervenção em área de proteção ambiental”, apesar da área estar dentro da APA Alto Iguaçu, e que “foi feito o Relatório de Impacto Ambiental, assim como todas as licenças já foram obtidas”. Pedimos acesso ao relatório, o que ainda não foi respondido. A ACA Brasil não retornou o contato.

Área da APA Alto Iguaçu, com destaque para a região dos acontecimentos em Belford Roxo (em azul). Fonte: INEA

Já o Relatório de Impacto Ambiental – apresentado junto a um Estudo de Impacto Ambiental, compondo o conjunto conhecido como EIA-RIMA – que a secretaria afirmou ter é alvo de questionamento no Judiciário. Uma denúncia (que virou inquérito) protocolada por Marcelino junto ao Ministério Público Federal questiona exatamente a falta deste relatório, obrigatório para obras em estradas com duas ou mais pistas segundo a legislação estadual.

O servidor apontou ainda a falta de ações de proteção da fauna – como passagens subterrâneas, travessias aéreas e grades de proteção – para pedir a intervenção do MPF na obra, já que o local é também área de amortecimento da Reserva Biológica Federal (REBIO) do Tinguá, na vizinha Nova Iguaçu.

Outras árvores ameaçadas na mira do trator

Marcelino, que é posseiro na região e possui um viveiro e banco de sementes de espécies nativas próximo à divisa com Duque de Caxias, denuncia outra situação de descaso com espécies ameaçadas: seis espécimes de jacarandá-da-bahia (Dalbergia nigra), classificada como Vulnerável na última lista de espécies ameaçadas do MMA, devem ser derrubadas para o andamento das obras. As árvores estão na área de seu viveiro, na beira da estrada.

Jacarandás-da-bahia (Dalbergia nigra) ameaçados diretamente pela obra. Foto: Marcelino Araujo

“A empresa [a construtora ACA Brasil] quer arrancar, pediram minha permissão para transplante para outro local. Não dou, pois sei que não vão resistir à mudança”, garante, apontando a falta de pessoal especializado em manejo de árvores entre os profissionais da construtora e dizendo que um sabiazeiro (Mimosa caesalpiniaefolia) replantado pelos profissionais da obra está dando sinais de que não sobreviverá. “Se fosse em Portugal, sede da empresa, fariam um desvio no projeto para poupar as árvores”, lamentou.

“Estive na secretaria de Meio Ambiente da cidade, e a informação que tive é de que as árvores vão ter que sair. Ou extraídas, ou replantadas, e neste caso replantar é comigo”, relatou o servidor público. “Não tenho expertise para replantar. Assim sendo, as árvores estão condenadas”, alertou.

A reportagem entrou em contato com a secretaria de Infraestrutura e Cidades, o INEA e a ACA Brasil para saber se medidas estão sendo tomadas para compensar ou diminuir o impacto da retirada de árvores na unidade de conservação. O órgão ambiental e a construtora não responderam. O espaço segue aberto. Por sua vez, a SECID não abordou diretamente a pergunta e se limitou a dizer que “não houve intervenção em área de proteção ambiental”, o que, segundo o mapa da APA Alto Iguaçu disponibilizado publicamente pelo INEA e pelas diversas provas de intervenções realizadas no ecossistema da área, não é verdade.

Outras árvores na beira da estrada também estão com seus dias contados. Vídeo: Marcelino Araújo

Com a palavra, os envolvidos

SECID: A Secretaria de Estado de Infraestrutura e Cidades (SEIC) esclarece que não houve intervenção em área de proteção ambiental e a área de 300 metros citada era ocupada por casas e plantações que não estão ligadas ao bioma local. Foi feito o Relatório de Impacto Ambiental, assim como todas as licenças já foram obtidas e não haverá qualquer impacto hidrológico na bacia do Rio Iguaçu.

  • Gabriel Tussini

    Estudante de jornalismo na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), redator em ((o))eco e interessado em meio ambiente, política e no que não está nos holofotes ao redor do mundo.

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Comentários 1

  1. Patty diz:

    O Inea está tomado de agentes que destroem a natureza aí invés de proteger. Há concessão de permissões de obras semelhantes espalhadas pelo Rio de Janeiro inteiro. n