O ICMBio lida com a questão de espécies ameaçadas elaborando Planos Nacionais de Ação e a partir daí busca parceiros para sua execução. Participei, em 2014, de uma reunião para o monitoramento do Plano de Ação Nacional para a Conservação do mutum-de-alagoas. Fomos convidados porque o Parque das Aves tem experiência na reprodução de vários cracídeos, inclusive de mutum-do-sudeste, espécie também ameaçada. O mutum-de-alagoas (ou mutum-do-nordeste) está extinto na natureza desde a década de 70. Ave endêmica da Mata Atlântica nordestina, sua distribuição original não é muito clara, e Alagoas é o local que tem registros confirmados da espécie.
Por conta do Proálcool, a Mata Atlântica no nordeste, que já sofria com o desmatamento, teve um ritmo de destruição acelerado, com florestas sendo substituídas por plantações de cana-de-açúcar. Somando-se a supressão das florestas à caça, esta espécie foi dizimada na natureza. A história é dramática. O criador Pedro Nardelli retirou as três últimas aves da natureza enquanto a floresta era literalmente cortada às suas costas. E assim teve início um programa de reprodução em cativeiro para tentar salvar esta espécie.
Atualmente existem 233 aves em cativeiro, que até o mês passado estavam distribuídas em três centros de reprodução em Minas Gerais: a CRAX, Sociedade de Pesquisa em Vida Silvestre, coordenada por Roberto Azeredo, que faz um trabalho fantástico reproduzindo esta espécie. Ele mantinha 199 mutuns-de-alagoas, e é capaz de olhar para um ovo e dizer basicamente a hora em que vai eclodir. Os outros dois centros são o Criadouro Científico Poços de Caldas, com 27 animais e o Criadouro Fazenda Cachoeira, com 7 animais.
Durante a reunião que participei foi discutida a necessidade do estabelecimento de novos centros de reprodução, principalmente porque a capacidade da CRAX de manter animais desta espécie já está no limite. Sem ajuda nenhuma do governo, Roberto Azeredo mantém o local com pouca ajuda financeira que recebe de parceiros. Só isso já daria outro texto: o governo querer salvar uma espécie extinta na natureza sem dar condições financeiras para que ela seja reproduzida em cativeiro. Para mim parece óbvio que se a única chance da espécie é a reprodução para futuras reintroduções, isso deveria ser uma prioridade do governo… né não?
Expectativa e preparativos
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Foi considerada então a possibilidade de os zoos integrarem o programa, e que Parque das Aves, Bauru e Sorocaba seriam inicialmente potenciais candidatos. Quando me perguntaram “quantas aves o Parque das Aves pode receber?”, nós discutimos internamente e fizemos uma proposta audaciosa: 20 aves inicialmente. Um desafio gigante e uma responsabilidade imensa. Até então, nenhum zoológico no mundo tinha recebido mutuns-de-alagoas. Se trabalhar com animais em cativeiro já nos coloca em uma “vitrine”, trabalhar com espécies ameaçadas aumenta muito nossa exposição e responsabilidade.
Escolhemos um local especial dentro do Parque das Aves para a construção de Centro de Reprodução dos mutuns-de-alagoas. Uma área isolada, em meio à mata, onde foram construídos viveiros para abrigar 12 casais, dentro das especificações do protocolo oficial.
Antes que o pessoal anti-zoo comece a espernear dizendo “ahá!!! Vocês construíram em área isolada porque eles não se reproduzem onde tem público!” , quero dizer que esta foi uma decisão mais diplomática do que técnica. Foi acordado durante a reunião que, como ainda não existe nenhuma ave da espécie em exposição em Alagoas, e existe uma grande expectativa da população em torno disto, só vamos exibir os mutuns no Parque das Aves quando eles também estiverem expostos em Alagoas. O argumento de que animais em exposição estão tão estressados pelos visitantes que não se reproduzem é uma bobagem sem tamanho.
Como eu já coloquei em outros textos, o que garante o bem-estar é um bom manejo, e não a ausência de público. Nossos mutuns-do-sudeste reproduzem muito bem, e estão em exibição. No futuro, seria realmente interessante que o público pudesse ver esta espécie, já que a conscientização da população é um dos fatores que influenciam a sobrevivência de espécies ameaçadas na natureza. Com cerca de 650 mil visitantes por ano, o Parque das Aves pode fazer um trabalho incrível de conscientização e mobilização.
No dia 18 de junho saí de Foz com uma equipe do Parque para buscar as aves. Preparamos um reboque especial para o transporte e caixas individuais com espuma no teto e palha no chão para evitar que se machucassem. Como todo transporte de animais envolve riscos, viajamos com uma super ansiedade e frio na barriga. Foram muitas horas de viagem, chegamos na CRAX dia 19. As aves foram acondicionadas nas caixas de transporte e foram checados os pareamentos. Em programas cooperativos de reprodução, todos os animais são tratados como uma única população. As aves foram geneticamente analisadas e os pareamentos são todos determinados por um Studbook Keeper (ou mantenedor do Livro de Registros Genealógicos). Esta função é do Mercival Roberto Francisco, da Universidade Federal de São Carlos.
Saímos da CRAX e dirigimos 22 horas seguidas até Foz, para que as aves permanecessem o menor tempo possível dentro das caixas e também para que a viagem fosse feita no período de temperatura mais amena.
Quando chegamos no Parque das Aves grande parte da nossa equipe estava nos aguardando, tão ansiosos quanto nós, uma instituição inteira unida no esforço de salvar uma espécie.
As aves chegaram bem, foram acomodadas nos recintos, e esta semana já começamos a abrir as portas que mantém os casais separados (para manejo em caso de agressão) e todos estão interagindo de forma harmônica. Temos um tratador designado apenas para este setor, que monitora as aves diariamente.
Agora é esperar o início da estação reprodutiva e torcer para que tenhamos muitos ovos e filhotes e possamos realmente ajudar esta espécie. Existe já um protocolo de reintrodução preparado que foi discutido na reunião. Talvez a liberação de aves na natureza tenha início em 2016, a critério do ICMBio.
O sucesso na recuperação desta espécie também depende da conservação dos remanescentes de Mata Atlântica em Alagoas, do envolvimento de pesquisadores, ONGs, usineiros e da população local. As ações locais são lideradas por Fernando Pinto do IPMA (Instituto de Preservação da Mata Atlântica). Elas buscam envolver usineiros e a população local com a questão da recuperação do mutum-de-alagoas. Para mim foi uma grata surpresa saber que eles estão usando a metodologia de envolvimento das comunidades que usamos no Projeto Ararinha-Azul, que eu coordenei por vários anos, quando ainda existia um indivíduo na natureza.
Desta forma, o Parque das Aves pretende não apenas colaborar reproduzindo mutuns-de-alagoas, mas investir tempo, recurso e expertise no programa de reintrodução.
É incrível olhar para estas aves, pensar que não existem mais na natureza e que temos uma chance concreta de salvar esta espécie. Uma grande responsabilidade para os zoológicos. E uma grande honra.
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Tenho certeza que vi uma dessa ontem na natureza em Buritis MG.