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O futuro das baleias e o teatro do absurdo

Reunião bianual da Comissão Internacional da Baleia começa às voltas com pautas anacrônicas e sumiço do Brasil nos primeiros dias do encontro.

15 de setembro de 2014 · 10 anos atrás
  • José Truda Palazzo, Jr.

    José Truda é jardineiro, escritor, consultor em meio ambiente especializado em conservação marinha e tratados internacionais, e indignado.

Truda

A pacata cidadezinha costeira de Portoroz, na Eslovênia, é um inusitado palco para o desenrolar de uma das batalhas mais esperadas, ainda que mais previsíveis, do calendário ambiental internacional: a reunião bianual da Comissão Internacional da Baleia (CIB), o organismo que preside sobre o destino de alguns dos mamíferos mais ameaçados do planeta, de grandes a pequenos. Explicarei, mas antes peço um minuto de silêncio em minha homenagem: cumprem-se exatos trinta anos que compareço a este bizarro convescote, coisa que não recomenda ninguém quanto ao quesito sanidade mental. Chove em Portoroz, ademais. Sigam-me, que a história é complexa, porém interessante.

Criada em 1946 como um clube exclusivo de países baleeiros, preocupados em dividir sem conflitos entre si o então riquíssimo butim representado pelo massacre no atacado das grandes baleias, não tardou muito para que ao menos parte dos interessados no tema se desse conta de que a caça à baleia não era uma atividade sustentável; muito ao contrário, a combinação da baixa taxa reprodutiva das espécies e de uma verdadeira mineração das baleias pelos caçadores, sem qualquer preocupação efetiva com a sustentabilidade (que em décadas mais recentes se provaria ser inatingível) das capturas comerciais, quase levou à extinção a maioria das espécies de grandes cetáceos.

Proteção à força

“Grandes países baleeiros históricos dos séculos XVIII a XIX – Inglaterra, Estados Unidos, França – já haviam há muito abandonado a prática, menos por consciência do que pela… falta de baleias.”

Na década de 1970, mesmo em um mundo ainda carente de grandes ferramentas de comunicação internacional ágil, a campanha para acabar com esse genocídio criminoso ganhou caráter global. A esta altura, os grandes países baleeiros históricos dos séculos XVIII a XIX – Inglaterra, Estados Unidos, França – já haviam há muito abandonado a prática, menos por consciência do que pela… falta de baleias. A destruição sistemática das populações erodiu os lucros dessa indústria da morte a ponto de que já às portas da II Guerra Mundial pouco restava no mundo das outrora imensas populações de baleias azuis, jubartes e cachalotes, entre outras.

Dos milicos americanos pós-II Guerra Mundial muito pouco se pode dizer de bom. Aplica-se a regra ao general MacArthur, virtual vice-rei do Japão nos meses pós-bomba de Hiroshima. Tendo de alimentar um povo esfomeado pelo desastre da tara militarista do governo imperial japonês, MacArthur tomou inter alia uma decisão que entraria para os anais dos grandes vacilos da humanidade: reconstruiu e vitaminou a frota baleeira industrial japonesa. Os japoneses, que já haviam dizimado as baleias de suas próprias águas há tempos, gostaram da ideia, e se transformaram em poucas décadas nos maiores assassinos de baleias do planeta. As poucas populações e espécies que se haviam recuperado começaram a ser perseguidas feroz, voraz e sistematicamente pelos japoneses, e também pelas frotas baleeiras da União Soviética. Além dos milhares de baleias trucidadas “oficialmente” pelos registros da CIB, há indícios de que ambos países fraudaram os registros de caça para acobertar a matança de espécies já protegidas, abuso de quotas, invasão de áreas de proibição e outros “pequenos deslizes” que jamais receberam qualquer punição pela Comissão, que nunca teve poder de fiscalizar ou sancionar infrações.

Pressão da sociedade civil

“Tamanho foi o sucesso do convencimento feito por um pequeno grupo de ONGs da região junto aos governos (…) que os países latinos na CIB constituem-se hoje numa força política essencial à defesa das baleias”

A onda de indignação contra essa matança pegou os baleeiros em cheio. Nos anos 70, os países “de verdade” como Estados Unidos, Austrália e outros encerraram em definitivo suas atividades de caça comercial. As republiquetas bananeiras como Brasil, Peru e Chile mantinham estações baleeiras-satélites para o Japão em suas costas, mas isso foi suprimido pelo levante da sociedade civil (sim, tínhamos uma!) nos anos 80. Um a um os países latinos foram aderindo à tese de que as baleias valem muito mais vivas do que mortas, passando a gerar emprego e renda com atividades de turismo de observação das espécies que, graças a uma moratória global da matança comercial aprovada pela Comissão e implementada a partir de 1986, vêm se recuperando muito lenta, porém seguramente. Tamanho foi o sucesso do convencimento feito por um pequeno grupo de ONGs da região junto aos governos, apoiado à época por uma militância forte, hoje desaparecida, do Greenpeace no tema, que os países latinos na CIB constituem-se hoje numa força política essencial à defesa das baleias contra a volta da caça, o chamado Grupo Buenos Aires.

A complementar a moratória, em 1994 a CIB aprovou a criação de um Santuário de Baleias do Oceano Austral, abrangendo todas as águas antárticas onde se concentram as áreas de alimentação da maioria das espécies de grandes cetáceos, o que, combinado com a proteção das áreas de acasalamento e criação de filhotes próximo a ilhas e costas continentais – portanto dentro de jurisdições nacionais, na maioria de países pró-conservação no hemisfério sul – asseguraria a continuidade do processo de recuperação das espécies.

Acontece que a matança não parou de todo, como bem sabemos. O Japão, cuja agência pesqueira é um poço de corrupção notório, capaz mesmo de ameaçar as políticas de gestão de pequenos países pobres com a compra de seus votos na CIB e outros organismos, vem há anos lançando mão de um artigo da Convenção de 1946 que regulamenta a caça à baleia para realizar “capturas científicas” à razão de milhares de animais. Eles acabam no mercado de carne e gordura e não em museus ou publicações científicas críveis – e a maior parte dessas baleias vêm do Santuário antártico, onde deveriam estar protegidas de todo tipo de caça. Noruega e Islândia mantém respectivamente uma “objeção” e uma “reserva” à moratória, aberrações da realpolitik dos tratados que permitem a esses países estar imunes às decisões. Para engrossar o caldo, Estados Unidos, Rússia e Groenlândia/Dinamarca, além do país-títere do Japão de St. Vincent & Grenadines no Caribe, mantém “capturas aborígenes” permitidas pela mesma Convenção. Ora, em 1946 havia “aborígenes” no Círculo Ártico necessitando dessa fonte de alimento; hoje, trata-se de populações absolutamente integradas à modernidade, e na Dinamarca a carne de seus “esquimós coitadinhos” vem parando cada vez mais nos supermercados de Copenhague e em restaurantes para turistas

Contra a “caça científica”

“Uma decisão da Corte Internacional de Justiça em Haia, provocada por uma demanda australiana contra o Japão, pôs termo às barbaridades japonesas, declarando ilegal sua “caça científica”

Este ano, entretanto, uma decisão da Corte Internacional de Justiça em Haia, provocada por uma demanda australiana contra o Japão, pôs termo às barbaridades japonesas, declarando ilegal sua “caça científica” e determinando que qualquer atividade similar no futuro seja objeto de profundo e detalhado escrutínio científico antes de ser implementada. Seria de se esperar que os ditos países pró-conservação aqui na CIB, que supostamente incluem, além dos latinos, a União Europeia, os Estados Unidos, África do Sul, Austrália e Nova Zelândia, aproveitassem o enorme peso jurídico e político para, nessa sua 65ª. Reunião, tornar ainda mais fortes as medidas de conservação dos cetáceos e tornar bem mais difícil a vida dos baleeiros recalcitrantes.

A chance do santuário no Atlântico Sul

Mas não é o que estamos vendo. Bem, os pepinos domésticos primeiro. O Brasil há anos vem propondo à CIB, com apoio de Argentina, Uruguai e África do Sul, a adoção de um Santuário de Baleias do Atlântico Sul, uma medida que necessita de ¾ dos votos dos países-membros para ser aprovada e é habitualmente bloqueada pela minoria dos paisecos comprados pelo Japão para fazer-lhe coro pró-caça. Na última votação, ocorrida na reunião do Panamá em 2012, obtivemos 65% dos votos – a maior votação favorável já alcançada. Bingo! Era hora de correr atrás e conseguir os poucos votos faltantes com um trabalho diplomático e técnico vigoroso. O então Comissário do Brasil na CIB foi à luta com apoio total das ONGs brasileiras e latinas envolvidas no tema. Estratégias foram traçadas em uma reunião entre Itamaraty, Ministério do Meio Ambiente, ICMBio e sociedade civil. Recursos foram buscados junto a empresas e instituições internacionais. Um Simpósio Internacional foi organizado na Bahia este ano para ajudar a convencer alguns dos países do bloco japonês mais simpáticos ao Brasil. Tudo parecia bem encaminhado.

Claro, era esperar demais de um regime que já deixou bastante claro sua aversão a qualquer coisa que cheire a gestão ambiental progressiva. As gestões de altíssimo nível necessárias simplesmente não foram feitas, porque o tema bate na Secretaria-Geral do Itamaraty e não chega ao Ministro Figueiredo, sempre mais ocupado em manter a “diplomacia” de compadrio com caudilhos lunáticos e irrelevantes ditada pelo Palácio do Planalto do que inserir de maneira positiva o Brasil nos grandes temas contemporâneos de meio ambiente. O MMA, por sua vez, “esqueceu” de revisar adequadamente o documento técnico da proposta do Santuário que deveria ser apreciado pela CIB, de última hora fazendo um “copy-paste” naquele que tínhamos ainda em 2005 – o que não passou despercebido nas discussões desta semana que passou nas reuniões preparatórias da Plenária da Comissão. Por fim, e em meio a uma chuva de releases midiáticos totalmente alheios à realidade, o (des)governo vinha retardando seu pagamento anual à Comissão, arriscando-se a chegar sem voto à 65ª. Reunião. Apenas após uma gritaria pública sobre o tema o pagamento finalmente saiu, há dias do início dos trabalhos na Eslovênia.

Brasil omisso e ausente

ballena-jubart

“Nossos diligentes burocratas não apareceram para as discussões iniciais do Santuário (…), deixando muita gente perplexa com a ausência notável de um país que por décadas vinha construindo um protagonismo ativo na Comissão”

Por fim, nossos diligentes burocratas não apareceram para as discussões iniciais do Santuário (e de outros temas relevantes para o futuro das baleias), deixando muita gente perplexa com a ausência notável de um país que por décadas vinha construindo um protagonismo ativo na Comissão em todos os níveis. E isso por que a embaixada do Brasil fica a meros 100 km do local da reunião; podiam ao menos ter mandado um porteiro com instruções. Enfim, está chegando o Secretário Nacional de Biodiversidade do MMA, Roberto Cavalcanti, pra tentar reverter esse quadro, mas temo que a esta altura a pobre e bela Inês esteja, para todos os efeitos, morta. Vejamos o que, juntos apesar das diferenças, poderemos fazer aqui nesta semana que resta.

A não-aprovação do Santuário do Atlântico Sul talvez seja, não obstante, o menor dos problemas que as baleias enfrentam nessa reunião. A Groenlândia está expandindo ilegalmente sua matança pseudo-aborígene de baleias, inclusive de jubartes que são utilizadas para turismo de observação na República Dominicana e outros países, e a falsamente “conservacionista” União Européia está pressionando para aprovar formalmente essa caça comercial disfarçada. Uma tia gordinha que representa a União anda pelos corredores metendo o terror nos delegados dos países europeus para que não se metam a votar a favor da conservação. Isso tudo com apoio entusiástico dos Estados Unidos, onde não há Obama que encare o poder político dos “pobres esquimós” cuja base eleitoral do Alasca parece ser mais importante que as centenas de milhões de dólares que este e outros estados fazem com o whale watching (observação de baleias).

Já aqui pelo sul a situação não é melhor, com os governos de extrema-direita da Nova Zelândia e, tristemente agora, da Austrália (com o apoio, claro, dos Estados Unidos também) tentando fazer com que a Comissão aprove “regras” para avaliar futuros programas de “caça científica” japonesa, não fazendo qualquer menção à necessidade óbvia de proibir essa prática daninha nos Santuários da própria CIB.

O chamado Grupo de Buenos Aires resiste

“A questão é até quando os latinos resistirão à pressão. Outra questão, fundamental, é se vale a pena que nossos países fiquem dando prestígio e dinheiro a essa Comissão anacrônica”

Contra esses retrocessos absurdos seguem firmes os votinhos do Grupo Buenos Aires, último bastião efetivo de defesa das baleias frente a esse bando de falsos moralistas que vêm aqui fazer, meramente, diplomacia ornamental enquanto negociam tratados comerciais com o Japão e acesso aos recursos minerais do Ártico com a Dinamarca. A questão é até quando os latinos resistirão à pressão. Outra questão, fundamental, é se vale a pena que nossos países fiquem dando prestígio e dinheiro a essa Comissão anacrônica, corrompida pelas propinas japonesas e de pouca capacidade de impor suas decisões, ainda mais se seguirem ocorrendo retrocessos de conservação em suas deliberações. Talvez seja hora de criar um organismo regional de conservação dos cetáceos?

Temas aos quais voltaremos ainda esta semana. Nesta segunda-feira abre a Plenária da CIB, terminando na sexta, quando então nos encontraremos novamente no ((o))eco para avaliar se o futuro das baleias será ou não comprometido pelo teatro do absurdo que é a diplomacia das conveniências, dos interesses de curto prazo, e do descaso total para com o planeta que estamos vendo por aqui.

 

*Artigo editado em 16/09/2014 às 16h44.

 

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