O International Council for Local Environmental Initiatives (ICLEI) vai realizar dias 25 e 26 de fevereiro de 2006 seu quinto congresso mundial na Cidade do Cabo. O órgão é uma espécie de ONU ambiental das cidades. Discute a saúde das metrópoles e busca soluções sustentáveis para um mundo crescentemente urbanizado. Entre os membros brasileiros do ICLEI estão as cidades de Porto Alegre, São Paulo e Rio de Janeiro. Com efeito, a capital carioca empresta tanta relevância ao ICLEI que, em 1999, apresentou candidatura bem sucedida à sede latino-americana do órgão. Alfredo Sirkis e Maurício Lobo, secretários municipais de meio ambiente em duas administrações diferentes (César Maia e Luiz Paulo Conde), foram membros do Comitê de Administração do ICLEI, sua instância decisória máxima.
Às vésperas da conferência, dias 23 e 24 de fevereiro de 2006, também na Cidade do Cabo, outra organização de peso, a União Internacional para a Conservação da Natureza (UICN) estará organizando, em parceria com o ICLEI, uma oficina sobre Cidades e Áreas Protegidas. É percepção corrente nos dois órgãos que não há sobrevivência possível para o meio ambiente sem o apoio dos habitantes das áreas urbanas. De fato, mais da metade da população mundial vive em cidades, aproximadamente 3 bilhões de pessoas. Nelas moram os tomadores de decisão, ali estão localizados os Parlamentos, os Governos, as grandes redes de rádio e televisão. Nas cidades é que são decididos os orçamentos e as políticas públicas. Assim, se os habitantes das cidades não forem sensibilizados para os problemas das áreas protegidas, nossos Parques Nacionais continuarão à míngua financeira, sendo invadidos, desmatados e grilados.
Para a UICN isso está tão claro, que o órgão montou uma equipe apenas para cuidar do tema, sob a batuta do americano Ted Trizna. Não foi ato súbito ou extemporâneo. Foi uma decisão amadurecida e bem pensada. Levou alguns anos para ser tomada e, entre outras coisas, baseou-se em experiências de campo executadas em diversos países, todas consideradas de grande valor para a causa ambiental. Uma delas foi a criação de um Parque Nacional na própria Cidade do Cabo; iniciativa improvável, que juntou 27 pedaços de terra de mais de uma dezena de órgãos diferentes, pertencentes às três esferas de Governo e a agentes privados, para formar uma única unidade de conservação contínua, social e ambientalmente relevante: o Parque Nacional da Montanha da Mesa. Outra foi a Gestão Compartilhada do Parque Nacional da Tijuca, cuja defunta cooperação entre a Prefeitura do Rio de Janeiro e o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) era vista como modelo a ser seguido mundo afora. Uma terceira foi o manejo integrado das Unidades de Conservação Urbanas na Austrália, que está produzindo cidades mais verdes e angariando crescente apoio público para a criação e manejo de áreas protegidas pelo país afora.
Hoje, o Parque Nacional da Montanha da Mesa progrediu tanto, que já conseguiu unir em um só território cerca de 30 mil hectares. Apesar de inserido em uma das maiores aglomerações urbanas da África, protege tanto o ambiente terrestre quanto o marinho. Recentemente, recebeu o significativo título de Patrimônio Mundial da Humanidade. Vamos tratar dessa experiência exitosa em coluna futura. A Gestão Compartilhada da Tijuca, por outro lado, como se sabe, esboroou-se ao sabor amargo dos ventos da política brasileira. Tratamos desse tema em três colunas recentes. Sobre o modelo australiano também já escrevemos brevemente aqui em O Eco, acerca de Brisbane. Hoje vamos tecer alguns comentários sobre outra cidade da Austrália, Sydney, cuja experiência é muito valiosa e digna de emulação.
Embora não se ufane disto, Sydney provavelmente alberga a maior floresta urbana do mundo (certamente é maior do que a Floresta da Tijuca ou do que o do que o Parque Estadual da Pedra Branca). Somente o Parque Nacional Royal (fotos), no limite sul da cidade, tem 15 mil hectares; o Ku-rin-gay Chase, no limite norte, tem outros 15 mil; Heathcote, à sudoeste, cobre mais 2.670; Berowra, à noroeste, protege 3.870. Completam a lista, rasgando a cidade pelo meio, os Parques Nacionais de Georges River, de 335 hectares, Lane Cove, de 601 hectares, Garigal, de 3.200 hectares, Baía de Botany, com 458 hectares, e Sydney Harbour com 393 hectares.
Mas a lista não fica por aí. Ao contrário das grandes metrópoles brasileiras, Sydney conseguiu proteger a maior parte de seu litoral, tanto o marítimo, quanto a orla da sua formosa baía. Além disso, logrou manter intactas as matas ciliares das dezenas de pequenos córregos que drenam a cidade. Essas últimas áreas formam um mosaico descontínuo de pequeninos blocos de vegetação, cuja área individual às vezes é de meros dois ou três hectares e raramente supera os 100 hectares.
Assim era. Não é mais. Por incrível que pareça, o que já era bom, está ficando melhor. Esforço coordenado entre o Serviço de Parques Nacionais e as diversas prefeituras da área metropolitana da Grande Sydney, vem preenchendo os buracos que separam os Parques Nacionais de Sydney. A estratégia é simples. Os governos federal, estadual e municipais mapearam os espaços verdes da Grande Sydney e verificaram as possibilidades de interligá-los. A idéia é aumentar a área útil das unidades de conservação da cidade por meio de corredores de vegetação nativa, que viabilizem rotas migratórias para pássaros e pequenos mamíferos e permitam assim maior troca genética à fauna de Sydney.
Tudo foi inventariado. Parques infantis, terrenos baldios, jardins públicos, campos de futebol e de golfe, mananciais, áreas de recreação de escolas públicas e privadas, estacionamentos de fábricas e de entidades do governo, margens de rodovias, jardins de casas particulares etc.
Uma vez concluído este trabalho, as três esferas de Governo partiram para estabelecer os corredores mais fáceis. O Governo estadual, responsável pela gestão dos Parques Nacionais, fez a sua parte. Adicionou aos Parques Nacionais áreas públicas previamente separadas para expansão de moradias. Com isso, alargou o Parque Nacional de Garigal e assegurou sua conectividade com o Parque Nacional de Kurin-gay ao norte e com o Parque Nacional da Baía de Sydney ao Sul.
Na orla da baía, investiu milhões de dólares para revegetar sítios antes ocupados por terminais marítimos e seus armazéns, garantindo uma contínua faixa verde ao longo da costa. Nesse meio tempo, fundos especialmente alocados pelo Governo federal permitiram que os diversos municípios da Grande Sydney comprassem frações de campos de golfe e de terrenos baldios. Além disso, terrenos públicos municipais foram transformados em áreas protegidas e parques infantis e campos de esportes tiveram suas bordas modificadas com o plantio de espécies nativas da flora australiana. De modo a garantir a relevância ambiental do projeto, cada uma das prefeituras envolvidas empregou um batalhão de funcionários e voluntários na labuta diária de erradicar espécies exóticas e substituí-las por árvores nativas.
Para ganhar o apoio da população, outros dois projetos estruturantes têm se mostrado impressionantemente efetivos. Trata-se da implementação, com fundos das três esferas de governo, de duas trilhas de longo curso cortando Sydney ao meio. A primeira delas, a Great North Walk, foi implantada em 1988. É uma senhora trilha. Tem 250 quilômetros de extensão e liga Sydney a Newcastle. Em ambas as pontas serve de coluna cervical para a formação de corredores ecológicos dentro das duas maiores cidades do estado da Nova Gales do Sul. A trilha, sempre verde e natural, atravessa os parques nacionais de Sydney, mas também cruza campos de futebol, jardins de escolas e campos de golfe. À medida que foi sendo sinalizada e divulgada para os excursionistas australianos, sua freqüência aumentou, chegando a perto de 1 milhão de usuários por ano em suas várias seções. Tamanho uso também resultou em aumento da pressão para que os pequenos trechos não naturais da trilha fossem progressivamente comprados pelo poder público e reflorestados. Hoje, quase 20 anos depois de inaugurada, a Great North Walk já mudou substancialmente sua rota original, de modo a incorporar a maior parcela possível de áreas verdes. O resultado é um corredor cada vez mais contínuo e íntegro, ligando os diversos parques nacionais de Sydney.
A outra trilha, a Harbour to Hawkesbury, de 80 quilômetros de extensão, também é muito relevante. Recentemente completada (em 2004), ela começa em Manly, na margem norte da baía de Sydney e vai se juntar à Great North Walk em Berowra, já nos limites externos da área metropolitana da maior cidade da Oceania. Juntos, os traçados de ambas as picadas incorporam morros, praias, margens de rios, manguezais, florestas úmidas e matas secas de eucaliptos. O colunista percorreu a totalidade de ambas as trilhas entre 2001 e 2003 e ficou muito bem impressionado com o que viu. Em alguns pontos, sobretudo quando atravessa os Parques Nacionais, o excursionista se sente completamente imerso na natureza. Até aí nada demais. Na Floresta da Tijuca, no Parque Nacional de Brasília ou no Parque das Dunas em Natal também é possível se sentir assim.
O que impressiona na GNW e na HtoH é o trabalho feito nos corredores. Muitas vezes a trilha de ligação entre dois grandes parques avança por longo quilômetro, com meros 100 metros de largura – ruas ou casas dos dois lados. Mesmo assim, o trilheiro jamais tem a impressão de estar caminhando pelo asfalto ou em meio a uma metrópole de 5 milhões de habitantes, que é população de Sydney. Esse também parece ser o sentimento da fauna. Ao longo das duas trilhas é evidente a apropriação de seus trechos por espécimes nativos. Mesmo em seções estreitas, é possível verificar a presença de revoadas de cacatuas e cookaburras, bem como pequenos lagartos, cobras e até mesmo a furtiva équidna. Nas áreas mais largas também é comum ver o wallaby, pequena espécie marsupial, aparentada ao canguru.
Nos parques e pequenos corredores estabelecidos pelas prefeituras corriqueiro encontrar grupos de voluntários arrancando espécies invasoras e plantando a flora nativa em seu lugar. O resultado, observável em comparações fotográficas do tipo “antes e depois”, é impressionante. Áreas que há escassos cinco anos estavam completamente degradadas ou tomadas por espécies invasoras como a lantana, hoje já tem a aparência saudável do ecossistema original australiano. Enfim, o resultado é tão positivo que já deu filhotes. Agora o Governo está replicando a iniciativa na orla oceânica de Sydney, onde está implantando uma trilha contínua ao longo de todas as suas praias e penhascos marítimos. É projeto para uma década, mas vale a pena. Cape Town, de olho nos bons resultados da iniciativa de Sydney, já está dando seus primeiros passos e planeja em breve inaugurar sua própria trilha urbana de longo curso, a Hoerikwaggo Trail, que quando pronta, vai exigir seis dias de caminhada para ser percorrida e cortará a cidade do Cabo de norte a sul.
Enquanto isso no Brasil, seguimos o caminho inverso do bom senso. No Rio de Janeiro a gestão integrada dos Parques Nacional da Tijuca e Estadual da Pedra Branca, que previa o estabelecimento de um corredor a ligar as duas Unidades de Conservação mais importantes da Cidade, embora acordada por memorando de Intenções firmado em 1999, até hoje adormece no papel. A Trilha Circular do Parque Nacional da Tijuca, com 61 km sinalizados, está abandonada à própria sorte. De fato, o Parque lançou um guia oficial de trilhas em 2004 e sequer mencionou sua existência. É pena, a picada que atende pelo nome de Major Archer, foi planejada para ser o miolo estruturante de uma trilha ainda maior- de 250 km- atravessando todo o município do Rio de Janeiro. Ao ser completada, ligaria por corredores os Parques já mencionados ao Parque Lage, Parque da Cidade, Sítio Burle Max, Morro da Urca, Morro de São João e Pão de Açúcar entre outros. Como está, só liga a Floresta ao que há de mais atrasado em termos de políticas de manejo de Parques Nacionais em todo o mundo. É pena.
Semana que vem conto como a prefeitura de Willlouhby, na grande Sydney, está transformando seu quinhão de cidade em uma área verde de fazer inveja a muito Parque Nacional.
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