O amor dos pais pelos filhos se manifesta de diversas formas, quer seja alimentado-os, mantendo-os saudáveis ou protegendo-os contra sua própria inexperiência. Ou brincando com eles, para quem se importa com seu desenvolvimento social. Quando vemos nossos vizinhos brincando e rindo com seus filhos no parque, não nos restam dúvidas de que os amam. Mas quando se trata dos animais, os biólogos mais céticos atribuem variadas manifestações de afeto a um mero conjunto de ações programadas, um reflexo desprovido de amor. Isso me parece arrogância. Especialmente quando me deparo com as ariranhas do Parque Estadual do Cantão.
O erro de Descartes?
Em meados de 1637, o filósofo René Descartes escreveu “O Discurso do Método”, um modelo até hoje da sistemática científica. Segundo Descartes, o mundo natural seria desprovido de inteligência e vazio de mentes, salvo, claro, a humanidade. Para ele, animais seriam incapazes de sentir verdadeiras emoções, uma vez que sentimentos são experiências mentais. Apenas repetem padrões e ações que nós, humanos, interpretamos falsamente como amor, melancolia, altruísmo, etc. Ao reconhecer comportamentos animais que indicam amor, solidariedade, senso de justiça, compaixão, os estudiosos estariam cometendo a heresia do antropomorfismo, a ação de projetar falsamente sobre um animal sentimentos e motivações que seriam “exclusivamente” humanos.
No século 19 Charles Darwin lançou uma luz esclarecedora sobre o assunto, defendendo a existência de estados emocionais e psicológicos na evolução humana e de outros animais, fruto de nossa história compartilhada: “Além de amor e solidariedade”, escreveu em A Expressão de Emoções no Homem e nos Animais (1872), os animais parecem possuir outras qualidades associadas a instintos sociais, equivalentes, nos humanos, à moral.”
A teoria de Darwin sobre a evolução foi amplamente aceita no âmbito da continuidade anatômica, dando origem ao estudo da genética. Porém, a evolução emocional, psicológica e mental dos animais, um conceito muito avançado para a época, foi ignorada, ou melhor, (desculpem o trocadilho proposital), foi “descartada”. Assim, a visão de animais como máquinas programadas passou aos séculos seguintes, e, por incrível que pareça, permeia até hoje nosso pensamento científico.
Muitos biólogos modernos ainda preferem ignorar a psique animal, concentrando seus esforços na análise fria do comportamento, focada em genes e taxa. Essa limitação, segundo Ronald Griffin, estudioso de comportamento animal da Universidade Rockefeller, “é um filtro de simplicidade que nos impede de ver outras possíveis complexidades”. Alguns romperam essa barreira, como Jane Goodall, que durante anos foi criticada por atribuir sentimentos “humanos” aos primatas que estudou.
Meu trabalho envolve ariranhas, um animal pacífico e sociável, mas tido pela opinião publica como um animal agressivo. As ariranhas quase foram extintas na década de 1970 por causa da caça à sua fina pele. Nos anos 80 estimava-se que existiam apenas 300 animais na natureza. No presente, a caça não e mais um problema, e de acordo com dados da UICN, estima-se que a população mundial, toda na América do Sul, esteja entre 3 a 5 mil indivíduos. Porém, ainda é considerada ameaçada de extinção por limitação de alimento, uma vez que os estoques de peixes vem diminuindo assustadoramente devido a sobrepesca comercial e a pesca ilegal. No Brasil, as maiores populações se encontram no Pantanal e em locais da Amazônia, com destaque especial ao Parque Estadual do Cantão, talvez por que os 850 lagos do Cantão são verdadeiros berçários de peixes da bacia do Araguaia, reconhecida como um dos locais mais piscosos do mundo.
Somente em nossas áreas de pesquisa, que correspondem a 10% dos 90 mil hectares do parque, foram identificadas ano passado 64 ariranhas, o maior número já reportado em uma unidade de conservação. Erroneamente, em muitos locais, pescadores as vêem como competidoras pelo peixe e costumam afugentá-las ou matá-las. Sendo pacatas, as ariranhas costumam fugir do perigo, mas também gritam e bufam para evitar que pessoas se aproximem, o que pode ser interpretado como um gesto agressivo. No entanto, nunca houve um caso de ataques gratuitos de ariranhas a pessoas na natureza.
O único caso reportado de ataque ocorreu no Zoológico de Brasilia, em 1979, quando um menino de sete anos caiu dentro do fosso das ariranhas. Um sargento militar atirou-se para salvá-lo, mas foi fatalmente ferido pelos animais. Este episódio isolado foi divulgado na mídia com grande repercussão e difamou as ariranhas.
Que o sargento foi um herói, ninguém discute. Mas as ariranhas foram professadas como perversas, ferozes e brutais, como se fossem “programadas” para agirem sempre assim. Entretanto, apenas defenderam seu pequeno território contra um invasor, como faz qualquer animal acuado.
Ver pra crer
Em campo, nas agradáveis horas em que compartilho o ambiente com as pacíficas ariranhas, observo seu comportamento com a mente racional de uma bióloga, mas me permito, sem preconceito, lançar sobre elas um olhar contemplativo. Em certo dia, deparei-me com um grupo de 7 ariranhas no Parque Estadual do Cantão: Helga, a matriarca, mais quatro adultos e dois juvenis nascidos no ano anterior. Eles descansavam em um pau caído sobre a água. Sentada na outra margem, fiquei a observá-los. Os jovens eram desengonçados, sem a destreza dos adultos. Brincavam com energia e ingenuidade infantil. Eles se alternavam sem parar entre a água e o pau, emitindo gritos alegres entremeados de um assobio ensurdecedor, chamando algum adulto para juntar-se a eles. Mas os adultos se encontravam confortavelmente acomodados no pau, sonolentos. Inconformado, um jovem subiu novamente no pau, dessa vez desalojando um grande macho chamado Zorro. È difícil para uma ariranha deitada levantar-se e caminhar sobre o pau, de forma que Zorro resolveu arrastar-se sobre os demais, desequilibrando a todos. Nesse momento o outro jovem saltou e mordeu o rabo de Zorro, que atirou-se à água, travando uma falsa batalha contra os jovens. Os três obviamente se divertiam.
Na outra margem do rio, eu também me divertia com essa comédia, atenta à expressão de amor por parte de Zorro. Não tenho a empáfia de achar que animais não são capazes de sentir emoções iguais as nossas. Ao contrário, as vezes acho que são mais sofisticados e sensíveis.
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Bela história, Silvana!! Mas confesso que fiquei na expectativa da continuidade…rsrsr…..mande mais!!!