Um dos temas mais importantes e interessantes no estudo das onças é o conhecimento dos seus hábitos alimentares, ou ecologia alimentar. As técnicas que permitem a coleta de dados sobre esse aspecto envolvem desde a simples coleta de fezes (e a identificação de cada item encontrado nelas), à procura por carcaças e restos de animais abatidos (com o registro de todas as informações pertinentes), ao acompanhamento instantâneo de indivíduos aparelhados com rádio colares, através da telemetria VHF, em suas andanças à procura por alimento (quando possível mantendo uma distância em que se possam definir os tipos de habitats utilizados e possíveis preferências individuais por algumas espécies de presas). Nessa ultima técnica, com o uso de telemetria baseada em GPS, é possível definir os aglomerados de localizações dos indivíduos aparelhados onde, supostamente, possa ter ocorrido um ato de predação (mais sobre esse tema, abaixo).
Em alguns casos, até a técnica de armadilhas fotográficas tem produzido, com o aumento no seu uso, cada vez mais casos fortuitos com fotos extraordinárias, mostrando evidências de predação e alimentação, como na foto acima, em que uma onça-pintada aparece se alimentando de um tamanduá-bandeira, no Parque Nacional Grande Sertão Veredas (Foto: Instituto Biotrópicos, acima).
No primeiro estudo dos tigres, na Índia, o Dr. George Schaller (em The Deer and the Tiger, University of Chicago Press, 1967) deixava búfalos amarrados para atrair tigres e poder estudar técnicas de predação, alimentação e organização social. Dessa forma, ele conseguiu habituar uma fêmea com três filhotes subadultos, que ele observou repetidamente, em várias ocasiões, coletando dados extremamente interessantes de comportamento parental para a espécie, até então desconhecidos. Agora, as armadilhas fotográficas substituem, até certo ponto, esse monitoramento intensivo de carcaças, como o Fernando Tortato nos conta, logo abaixo.
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Em uma ocasião, enquanto o Dr. Schaller e eu estudávamos capivaras e jacarés entre meados de 1978 e 1979, ao longo da rodovia Transpantaneira, então ainda recém-construída, eu tive uma oportunidade interessante de acompanhar um incidente envolvendo a carcaça de um touro tucura (o gado tucura, do Pantanal, é uma variedade originária do gado ibérico, introduzido há mais de 220 anos e que se adaptou bem às condições extremas do ambiente. O gado se encontra atualmente em extinção, na planície pantaneira). Eu saí do nosso acampamento bem cedo, ainda escuro, para poder começar as observações de comportamento dos jacarés em uma das poças de estudo às 6 da manhã. Um touro tucura com mais de 500 kg havia sido atropelado por um caminhão, no dia anterior, e a carcaça havia ficado em cima do aterro da estrada. Com os faróis da Kombi acesos, eu procurava a carcaça do touro, quando me dei conta que ela já não estava na estrada. Curioso, eu parei o carro e vi que ela havia sido arrastada, descendo o barranco de uns 3 m do leito elevado da estrada, quebrando a vegetação arbustiva no trajeto. Achando isso estranho, eu procurei na estrada com a luz do farol e com minha lanterna, e logo encontrei pegadas de um macho grande de pintada, que certamente era o responsável pelo deslocamento da carcaça. Iluminando com a lanterna, vi que a carcaça tinha sido arrastada até uma cerca de arame liso, de quatro fios, que estava em processo de construção, justamente para evitar o acesso livre do gado à estrada, no seu lado oeste, dentro das terras da fazenda Jofre (à época, de propriedade de Geraldo Gouveia). Do outro lado da cerca havia um capão de mato, de onde a onça estava, com toda a certeza, me olhando naquele momento. Excitado e curioso, eu achei melhor voltar mais tarde, com a luz do dia, para coletar mais informações. Quando completei o turno de 6 horas de observação dos jacarés, voltei ali e pude ver melhor o que havia acontecido. Havia alguns urubus pousados em árvores próximas, mas como nenhum estava no chão, eu podia concluir que a onça se encontrava próxima. A carcaça já não estava na mesma posição, o predador tendo tentado arrastá-la por debaixo do ultimo fio de arame da cerca, a uns 40 cm do chão, no processo quebrando um dos chifres do touro – dava para imaginar a força necessária para isso! Uns 15 a 20 quilos de carne dos quartos dianteiros e peito já haviam sido consumidos. Como naquela época havia ainda pouco transito pela Transpantaneira, era bem evidente que o macho tinha se alimentado na carcaça ainda exposta, em plena luz do dia. No final da tarde, quando passei novamente no local, a onça havia conseguido passar aquela carcaça enorme por baixo da cerca, e a arrastado mais uns 15 m para oeste, para dentro do capão de mata, com isso criando um túnel pela vegetação emaranhada. Os urubus ainda estavam pousados nas árvores, e como já estava escurecendo, achei melhor não chegar mais perto. Parei novamente na manhã seguinte e como havia um ou dois urubus se arriscando a pousar no chão, pelo lado de fora do capão, eu cheguei até a entrada do túnel e forcei os olhos, tentando enxergar através das sombras, na penumbra do interior da mata. Mais para controlar o “frio na barriga” e o arrepio dos cabelos da nuca, comecei a conversar com a onça, caso ela estivesse por ali, em um tom baixo, tentando manter minha voz firme. À medida que ia fazendo perguntas que estavam me intrigando (O Sr. ainda está por aí? Não me leve a mal, mas eu gostaria que o Sr. me respondesse algumas perguntas… Não precisa se preocupar, eu não vou roubar a sua carcaça… Só quero saber quanto que o Sr. comeu, e quais as partes que o Sr. mais gosta…) eu ia chegando mais perto, metro a metro, batendo palmas de vez em quando. Pela tensão quase palpável que eu sentia no ar, tenho certeza que ele estava por ali! A carcaça estava a uns 10-12 metros mais para o centro da pequena ilha de mata e, esticando o pescoço, eu consegui ver que as vísceras haviam sido removidas e pelo menos mais uns 10 a 15 kg de carne comidos, avançando para a parte posterior do touro. Repeti a visita e os procedimentos ainda mais uma vez, tendo que voltar para Poconé, no dia seguinte, por compromissos assumidos. Mas ainda hoje me lembro dos momentos eletrizantes e extremamente proveitosos que essas circunstâncias me proporcionaram!
De olho no Urubu, por Fernando Tortato (com a colaboração de Rafael Hoogesteijn)
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Desde que comecei a trabalhar com pesquisas envolvendo as onças-pintadas, uma das atividades que mais gosto é monitorar carcaças de animais predados por elas. É praticamente uma ciência forense, onde no local do abate cada detalhe pode trazer informações importantes para elucidar o “caso”. Mas antes de se aproximar da carcaça, é necessário ter muita cautela, observando cuidadosamente os rastros e sinais no entorno, evitando o risco de encontrar a onça ainda na carcaça. Com o tempo ganha-se experiência, mas a cautela sempre é necessária. A busca por carcaças também é interessante, obviamente o primeiro sinal a se procurar são urubus em algum ponto da vasta planície que faz parte de qualquer fazenda inserida no Pantanal. Para isso, qualquer elevação do terreno, ou uma árvore boa de subir, um moirão de cerca, ou até mesmo a caçamba de uma camionete fornecem uma visão privilegiada, aumentando o horizonte, e permitem melhor localizar os urubus. Uma vez encontrado um urubu pousado ou uma aglomeração deles, a aproximação deve ser feita devagar e com cuidado, sempre buscando rastros de onça que podem estar próximas.
Um cuidado essencial é verificar se os urubus estão pousados no chão, perto da carcaça, ou nos galhos de árvores. Na maioria das vezes, a onça arrasta a carcaça para um local de vegetação densa, onde ela possa comer tranquila, e com isso, nem sempre é possível ter uma visão direta da carcaça. Por isso o comportamento dos urubus é a chave para saber se a onça está ou não junto à carcaça. Urubus estão sempre em alerta em relação às onças, pois se facilitarem, podem ser mortos. Portanto, se eles estiverem tranquilos na carcaça, é possível se aproximar para investigar o local e coletar as informações necessárias.
É importante descrever o local da predação, como a presa foi abatida, o método de abate (locais dos ferimentos e causa mortis), descobrir se foi onça-pintada ou onça-parda, se o animal foi arrastado e qual a distância, a idade estimada da presa, se presa nativa ou animal doméstico, presença de rastros, se o predador estava sozinho ou acompanhado (se fêmea com filhotes, casal em corte, irmãos subadultos, etc), tipo de habitat, distância de áreas florestadas e qualquer outra informação que possa ajudar a entender o evento como um todo.
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Recentemente, Rafael Hoogesteijn, veterinário venezuelano e administrador da fazenda São Bento e eu, em parceria com funcionários da fazenda, começamos a monitorar com armadilhas-fotográficas, sistematicamente, as carcaças de gado, tanto de animais abatidos por onças, como aquelas de animais mortos devido a outras causas, como doenças, acidentes ofídicos ou animais atolados no barro, durante a estação seca. Com a alta densidade de onças-pintadas que ocorre na área da fazenda, o objetivo é saber quem que está consumindo a carcaça e por quanto tempo permanece na área. Geralmente é instalada uma armadilha-fotográfica direcionada para a carcaça e, quando possível, outra no entorno, em alguma trilha ou estrada onde o predador possa passar. Em pouco mais de um ano de monitoramento, já temos mais de 20 carcaças monitoradas e com elas aprendemos que, na maioria delas, mais de uma onça-pintada consome a mesma carcaça. Há casos de até seis indivíduos indo e vindo, dividindo uma mesma carcaça, em uma mesma noite! Neste caso específico, as onças se alimentaram em horários distintos, com exceção de uma fêmea, que estava com seu filhote. O mais surpreendente, e um dos motivos pelo qual o Peter me convidou a escrever sobre o tema, foi o registro de sete onças-pintadas distintas consumindo a mesma carcaça no intervalo de 48 horas. A carcaça era uma vaca adulta que, diga-se de passagem, morreu por outras causas, nem foi morta por onça. O recurso representado pela carne na carcaça acabou originando um verdadeiro rodízio, não de carnes, mas de onças! Nesta ocasião, foram tiradas mais de 500 fotos de onças! As fotos mostraram que houve situações de dois animais se alimentando ao mesmo tempo, cada um em uma extremidade da carcaça. A primeira interação foi entre um macho subadulto e o macho adulto dominante da área. É possível deduzir, pela sequencia de fotos, que o animal mais jovem se mostrou submisso, enquanto o dominante consumia tranquilamente a carcaça, mas permaneceu a uma distância de no máximo três metros. Em uma segunda interação, uma fêmea adulta dividiu a carcaça com outro macho adulto, e na terceira, esta mesma fêmea compartilhou a carcaça com o macho subadulto que, horas antes, havia estado com o macho dominante. Este macho subadulto havia sido o primeiro a encontrar a carcaça e foi capturado em um laço armado ao lado da carcaça. No fim, esse animal não foi aparelhado com um rádio-colar por não ser uma das prioridades imediatas do estudo. O interessante, no entanto, foi que apesar da captura, envolvendo anestesia e biometria, ele permaneceu próximo a carcaça durante praticamente todo período monitorado com a armadilha-fotográfica, demonstrando que todo o processo da captura pouco interferiu em sua rotina. Além das fotos tiradas, ele foi visto várias vezes por pessoas que passavam próximas, na estrada interna da fazenda. Embora a espécie tenha sido sempre descrita como solitária, novos estudos de campo tem mostrado que essas interações são mais frequentes do que antes se imaginava. É importante salientar que já foram coletadas amostras de sangue de cinco dos sete animais registrados nesta carcaça. Com isso, é bem possível que, através de análises genéticas, possamos em um futuro próximo, desvendar o grau de parentesco destas onças e, desta forma, poder entender melhor as relações entre indivíduos.
Os fatores que levam a estas interações, com sinais claros de sociabilidade com hierarquia entre os animais, é algo que me fascina e me leva a querer entender cada vez mais a vida social destes grandes felinos. Em 2009, a pesquisadora Sandra Cavalcanti já havia mostrado em seus estudos no sul do Pantanal que as onças-pintadas são mais sociáveis do que se imaginava. Desta forma, esperamos que, somando as informações coletadas com o monitoramento das carcaças aos dados obtidos com a telemetria, através dos colares de GPS, já discutidos aqui recentemente, poderemos vir a entender melhor o grau de sociabilidade das onças-pintadas, no Pantanal.
Como as onças caçam – por Allison Devlin
Nós estudamos a dieta da onça-pintada para procurar entender o seu papel na comunidade ecológica em que ela vive e em conflitos com os humanos, quando as onças predam o gado e outros animais domésticos. Essa informação nos permite saber o que é necessário para que uma onça sobreviva em uma determinada área e como podemos melhorar as condições em áreas de conflito. Uma vez que mais de 95% do Pantanal é utilizado para a pecuária, é de se esperar que muitas das presas que as onças encontram naturalmente é gado.
Como diagnosticar a causa da morte de uma determinado animal – ou como saber se foi uma onça-parda ou onça-pintada que matou o animal? Quando uma carcaça é encontrada, nós fazemos uma necropsia detalhada, para determinar a causa da morte. Frequentemente, as presas (incluindo o gado) podem ter morrido por doença, acidentes, fraqueza por má-nutrição, ou mordidas de serpentes peçonhentas. No entanto, quando um animal foi morto por um predador, são deixados alguns sinais óbvios, que permitem a identificação.
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Uma onça-parda mata a sua presa com uma mordida na garganta, começando a comer pelos quartos traseiros. A onça-pintada, no entanto, utiliza uma técnica que difere de todos os outros grandes felinos. Seu nome em inglês, jaguar, é however, derivado da palavra tupi-guarani “yaguara”, que significa “aquele que mata sua presa em um pulo”. A onça-pintada caça por emboscada, tipicamente se aproximando sorrateiramente de sua presa, aproveitando qualquer vegetação para se mimetizar no ambiente, até uma distância em que possa deslanchar um ataque de surpresa. As suas mandíbulas são extremamente potentes caracterizam a sua mordida como a de maior força, dentre todos os felinos. A onça pintada mata as suas presas como uma mordida na cabeça, quebrando ossos no processo. Depois, consome preferencialmente os quartos dianteiros da carcaça. Eu vi a evidência da força da sua mordida quando um fazendeiro me mostrou o crânio de uma de suas vacas premiadas, morta por uma onça-pintada (ver foto acima).
Uma das minhas memórias favoritas relacionadas com o estudo de carcaças aconteceu em outubro de 2013. Os funcionários da fazenda São Bento me avisaram que um bezerro havia sido morto em um campo próximo da sede da fazenda. A chuva breve da noite anterior havia deixado a estrada coberta com uma fina camada de barro, e nela estava escrita a história do ataque ao bezerro. A estrada estava coberta de pegadas e marcas de arrasto. Eu havia achado as pegadas da onça ao lado das marcas iniciais de arrasto, exatamente como os peões haviam descrito. No entanto, a marca logo se perdeu no capim. Comecei a procurar, primeiro pelas marcas óbvias deixadas pela carcaça sendo arrastada, depois lentamente andando em círculos, fazendo uma espiral cobrindo uma área de aproximadamente 100 metros da marca inicial. Achei marcas de barro sobre o capim, amassados em uma mesma direção. Segui essa trilha por mais uns 50m, encontrando algumas pegadas da onça no trajeto por baixo do capim amassado, que me levou a um pequeno capão de vegetação emaranhada. Eu olhei para as árvores e vi uns 12 urubus pousados. A onça ainda estava ali. Eu marquei a trilha e a localização no meu GPS, e decidi voltar no dia seguinte, quando a onça já tivesse saído de perto.
Na manhã seguinte, eu falei para o Fernando sobre a existência da carcaça.
Nós voltamos juntos ao local e vimos que os urubus já estavam no chão – um sinal de que a onça não se encontrava ali. Nós abrimos uma picada para dentro do capão e logo encontramos os restos ainda frescos de um bezerro de cerca de 4 meses de idade, com 5 urubus se alimentando.
Espantamos as aves e fizemos uma necropsia no animal. O crânio mostrava as perfurações características da mordida de uma onça-pintada confirmando que o bezerro havia sido predado. Nós anotamos todas as informações, que se somaram ao que conhecemos sobre os hábitos alimentares das onças na fazenda. E assim segue o nosso trabalho com as onças no Pantanal…
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