Um mega-empreendimento para criar camarão entre os municípios de Caravelas e Nova Viçosa, litoral sul da Bahia, está criando embate entre a Secretaria Estadual de Meio Ambiente, o Ibama e ongs ambientais. O projeto fica na área do estuário do Parque Nacional de Abrolhos, região que virou recentemente zona de amortecimento. Ou seja, é área que deve ser mantida mais ou menos como está, sob pena de causar impactos ambientais para o parque.
A região, chamada de Ilha de Cassurubá, é área de manguezal, com vegetação de restinga, onde se encontram lagoas costeiras, braços de mar e nascentes. Neste cenário, a Cooperativa de Criadores de Camarão do Extremo Sul da Bahia, Coopex, pretende ocupar uma área de 1.517 hectares, num investimento de 60 milhões de reais. Serão 900 hectares para instalação de 26 tanques de tamanhos variados, 800 deles em área de restinga. E para isso eles terão, evidentemente, que ser desmatados.
Segundo dados da ong Conservation International (CI), essa região fica próxima o suficiente para causar impactos indiretos no maior arrecife do Brasil, o Parcel das Paredes, a sete quilômetros da costa e no Parque Nacional de Abrolhos, a 70 quilômetros da costa. “Diariamente, 880 mil m3 de água limpa, carregada de organismos marinhos como larvas de peixes e mariscos, serão captadas para a criação de camarões e devolvidas ao mar cheias de dejetos orgânicos e produtos químicos”, argumenta Guilherme Dutra, diretor do Programa Marinho da CI.
Isso afeta diretamente a vida marinha, altera o eqüilíbrio entre água salgada e doce e traz problemas para o manguezal. “O mangue é o berçário da vida marinha. É onde espécies de peixes, crustáceos e moluscos passam boa parte de sua vida, especialmente na fase inicial. Ali dentro, as relações biológicas são muito grandes”, alerta Guilherme. A CI faz parte de um grupo de nove ongs que luta pela preservação do parque e contra a implantação do empreendimento, a Coalizão SOS Abrolhos: Pescadores e manguezais ameaçados.
Renato Cunha é coordenador da Rede de Ongs da Mata Atlântica e da ong Grupo de Ambientalista da Bahia, o Gambá, que integra a coalização. Segundo ele, a área afetada é de importante biodiversidade e a criação de camarão prevista pelo empreendimento da Coopex comprometeria o estuário e afetaria as atividades das 300 famílias que vivem da pesca e mariscagem na região. “A dúvida científica sobre se esse empreendimento causaria maiores impactos para o parque é grande. E na dúvida, devemos optar pelo meio ambiente”, afirma Renato.
A coalizão apontou outros possíveis impactos, como a disseminação de doenças entre os crustáceos, que pode contaminar o ecossistema local. “As águas soltas desses tanques de criação são ricas em fungicidas, algicidas e restos de ração em fermentação, além de produtos químicos. Isso vai matando outros organismos”, revela Geraldo Machado Pereira, do Centro de Pesquisa e Gestão de Recursos Pesqueiros do Litoral Nordeste.
Posições contrárias
Após o recolhimento de 1.500 assinaturas da população do estuário de Caravelas, reinvindicando a criação de uma unidade de conservação naquela região, o Ibama do estado começou os estudos para a implantação de uma Reserva Extrativista, a Resex de Cassurubá. O projeto prevê uma área para coleta artezanal de caranguejo, siri, ostra, camarão e lambreta apenas pela comunidade comprovada tradicional da região.
Esses estudos foram atropelados pelo processo de licenciamento do empreendimento. No final de abril, quando foi realizada a última audiência pública antes da votação do projeto da Coopex, o Ibama reivindicou um prazo maior com o argumento de que pretendia dar continuidade ao plano da Resex. Esse pedido não foi atendido pelo orgão ambiental estadual responsável pelo processo de licenciamento, o Centro de Recursos Ambientais (CRA). A votação da licença prévia aconteceu na última sexta-feira, dia 19, em reunião do Conselho Estadual de Meio Ambiente (CEPRAM) e o projeto para a criação de camarões na região foi aprovado.
Mas não vale nada. Um dia antes, na quinta-feira, foi emitida uma portaria do Ministério do Meio Ambiente, publicada no Diário Oficial, que decretou a Zona de Amortecimento do Parque de Abrolhos. Ela delimita uma área no entorno do parque para protegê-lo de possíveis impactos ambientais. Dentro desta área, não pode existir nenhuma atividade potencialmente poluidora. E como ela diz respeito ao parque, tudo que acontece nesta zona está sob a responsabilidade do Ibama. Ou seja, do governo federal.
Como o empreendimento da Coopex será instalado dentro da zona de amortecimento, só uma autorização especial do Ibama poderá licenciar a obra. “A prioridade é a implantação da Resex. Vamos nos esforçar ao máximo para que isso aconteça. A região é prioritária e muito vulnerável”, diz José Augusto Tosato, superintendente do Ibama em Eunápolis. Ainda assim, o Ibama irá analisar o projeto da Coopex.
Expectativas
No começo do mês, membros do Conselho de Meio Ambiente, o CEPRAM, e técnicos do CRA estiveram no local para fazer uma avaliação. “Vimos os pontos de lançamento de efluentes, os locais da captação de água, a quantidade e localização dos viveiros e concluimos que, do ponto de vista técnico, eles não trariam problemas”, explica Emanuel Mendonça, coordenador do conselho. “Está previsto que cada viveiro vá ter um sistema de tratamento para reduzir a demanda bioquímica de oxigênio, a DBO”. Na prática, isso significa redução dos malefícios causados pelos efluentes orgânicos. Isso implica fiscalização constante, que Mendonça promete. Quanto aos impactos no parque, a resposta não é tão promissora: “Não há certeza se o empreendimento causaria impactos na região do parque de Abrolhos”, diz o coordenador.
Dutra, da CI, vê aí o maior problema. “Eles argumentam que os impactos são locais. Isso significa que só estão pensando nos impactos diretos, como o desmatamento da restinga. Ninguém está pensando nos impactos indiretos, que recairiam sobre a região do parque”, explica Guilherme. Deny César, secretário de meio ambiente de Caravelas, discorda: “Se tem uma lei que regula a atividade e o projeto se adequa a ela, nós do orgão público devemos nos pautar pela lei”. A promessa da Coopex de criar três mil empregos para a região parece estar atraindo o apoio do governo e da população para a carcinicultura. A empresa ainda terá que apresentar, no entanto, a complementação para seu Estudo de Impacto Ambiental. “Alguns itens exigiram estudos complementares, como a questão dos efluentes”, revela Ruy Muricy, do CRA.
Especialistas divididos
No mundo acadêmico, a carcinicultura gera polêmica. “Fazer esse empreendimento funcionar com menor impacto ambiental é possível, mas vai exigir severa fiscalização do governo e sair mais caro para a empresa”, afirma Eric Arthur Bastos Routledge, Coordenador Geral de Incentivo à Pesca da Presidência da República. Na opinião de Roberto Villaça, da Universidade Federal Fluminense, é difícil saber se as empresas de carcinicultura seguem mesmo o protocolo exigido em seus Eia/Rimas. “Caravelas é um município isolado, com população de baixíssimo grau de instrução. Ninguém vai reclamar caso perceba situação irregular”, comenta. Mas Roberto Bianchini, do Laboratório de Camarões Marinhos da Universidade Federal de Santa Catarina, alega que a carcinicultura gera empregos e divisas para o país. “Concordo que ela traga impactos para o meio ambiente, mas estamos estudando métodos para diminuir esse problema”, ele diz.
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