“Quantas cientistas negras você conhece nas áreas de ecologia, evolução ou ciências marinhas? Quantas dessas mergulham, orientam, assinam artigos científicos? E por que ainda precisamos fazer essas perguntas?”
Foi com essas provocações que começou o workshop “A Maré Está Virando”, realizado em dezembro de 2024 no litoral de Tamandaré, em Pernambuco. O encontro reuniu dezenas de mulheres negras de todas as regiões do Brasil — e também convidadas internacionais — com um objetivo comum: ocupar, com pertencimento e potência, os espaços ainda restritos da ciência brasileira.

Quando o futuro é negro e feminino
Organizado por integrantes do Grupo de Trabalho de Mulheres Negras da Liga das Mulheres pelo Oceano, com apoio do Instituto Yandê Educação Cultura e Meio Ambiente e financiamento da Organização internacional BWEEMS (Black Women in Ecology, Evolution, and Marine Science), o evento foi um marco. Pela primeira vez no País, um espaço inteiro foi dedicado a destacar as vozes, saberes e produções científicas de mulheres negras das áreas de ecologia, evolução e ciências marinhas.
“Ali, fui acolhida como nunca antes na comunidade científica. Éramos todas mulheres, pesquisadoras, grandes potências”, disse Kai Lima do Nascimento, estudante negra, nordestina e trans, ao compartilhar sua experiência no encontro.
Em um país onde o racismo estrutural ainda marginaliza corpos negros e femininos no meio acadêmico, essa representatividade não é apenas simbólica: é urgente e transformadora.

Ciência, afeto e resistência
Ao longo de três dias de atividades, as participantes compartilharam seus projetos científicos, histórias de vida e estratégias de enfrentamento diante das violências institucionais. Foram 21 trabalhos apresentados, abordando desde a conservação de recifes de coral e análise de microfósseis até a pesca comunitária e a percepção ambiental de estudantes da rede pública.
A maioria das pesquisas era liderada ou coautorada por mulheres negras, revelando um panorama sólido de excelência científica que raramente ganha destaque nos grandes congressos. Palestras marcantes como a da Dra. Rosy Isaias (UFMG), primeira pesquisadora autodeclarada negra a atingir nível 1A do CNPq; da pescadora Madalena Santos, presidente da Colônia de Pesca Z5 em Tamandaré; da oceanógrafa moçambicana Ceiça Choize; da fundadora da BWEEMS, a Dra. Nikki Traylor-Knowles, entre tantas outras, enalteceram o evento. Ao romper com a invisibilidade, o evento também ajudou a consolidar redes de afeto, troca e mentoria — fundamentais para a permanência e o florescimento dessas cientistas.
“Fazer ciência sendo uma mulher negra é, por si só, um ato político de existência. Estar aqui é resistir e construir um outro futuro”, resumiu Lays Nascimento, engenheira de Pesca alagoana, durante uma roda de conversa.

Mergulhar como quem reivindica o oceano
Outro momento simbólico do evento foi a certificação de algumas participantes em mergulho autônomo. Em um país onde o acesso ao mar — inclusive para fins de pesquisa — ainda é elitizado e excludente, a conquista do direito de mergulhar é também um ato de reivindicação de espaço.
“Me tornar mergulhadora durante o evento foi a realização de um sonho. Desde então, minha vida se transformou”, compartilhou uma das pesquisadoras. “Não sou apenas pesquisadora, sou parte de uma família de mulheres incríveis.”
Essa “família” científica que se formou no evento vai muito além do campo acadêmico. Ela aponta para um novo modelo de ciência — colaborativa, diversa, afetiva e comprometida com a justiça.

Ciência que transforma e pertence
O workshop também promoveu discussões sobre racismo ambiental, epistemologias negras, justiça climática e inclusão de pessoas LGBTQIAPN+ nas ciências naturais. Palestras como a da Dra. Dandara Dornelles (UFRGS), trazendo um depoimento potente de como o impacto da emergência climática afetou as comunidades negras no Rio Grande do Sul e a da bióloga e influenciadora Jessy Alves, sobre sua participação na COP29 em Baku, foram emocionantes e inspiradoras. Assim como a presença de Kai, mulher trans e nordestina, foi um marco. Mais uma de suas falas emocionadas foi um chamado à ação:
“Espero que nas próximas edições, mais mulheres trans e LGBTQIAPN+ estejam presentes, porque esse espaço também é nosso.”
A construção de espaços seguros, interseccionais e acolhedores se revelou essencial para a criação de uma comunidade científica mais justa. E também para inspirar futuras gerações que hoje não se veem representadas nas capas de revistas científicas, nos laboratórios ou nos barcos de pesquisa.
Atravessar fronteiras — geográficas e simbólicas
A potência do encontro não terminou em Tamandaré. Dezenove das cientistas participantes foram selecionadas para representar o Brasil na segunda Conferência Internacional da BWEEMS, que acontece em maio de 2025 na Universidade Duke, na Carolina do Norte, Estados Unidos da América. O evento será um reencontro de histórias e uma oportunidade de ampliar a visibilidade da ciência feita por mulheres negras do Sul Global.
Elas foram agraciadas com passagem, hospedagem e alimentação, porém muitas delas sequer tinham passaporte. Os gastos com esses documentos, com o visto americano, seguro de viagem, entre outros, não foram cobertos com o prêmio. E para cobrir esses custos elas estão fazendo uma campanha de financiamento coletivo, e toda contribuição é bem vinda!
Cada uma dessas pesquisadoras carrega não só sua trajetória acadêmica, mas também as marcas de um caminho que muitas vezes é solitário. A ampliação dessas vozes é urgente. Em tempos de cortes na ciência, ataques à diversidade e retrocessos sociais, seguir produzindo conhecimento como mulher negra é um ato radical de resistência.

O mar é delas
O workshop reforçou que não basta promover eventos pontuais. É preciso consolidar políticas institucionais e mecanismos de fomento que reconheçam o valor da diversidade racial e de gênero na ciência brasileira. O fortalecimento das pesquisadoras negras exige investimento contínuo em formação, mentoria, visibilidade e acesso a recursos. E mais: exige que as estruturas acadêmicas — ainda majoritariamente brancas e masculinas — estejam dispostas a ceder espaço, escutar e reconfigurar suas práticas.
A maré, de fato, está virando. “E é pelas mãos, cabeças e corações dessas mulheres negras que um novo oceano se abre — mais inclusivo, mais justo e muito mais potente”, destaca Bárbara Pinheiro, idealizadora e coordenadora do evento e do grupo de trabalho de mulheres negras da Liga das Mulheres pelo Oceano.
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