Reportagens

Angela Kuczach: “Precisamos das UCs para existir”

Em entrevista a ((o))eco, a diretora da Rede Pró Unidades de Conservação defende vigilância permanente para garantir nossas áreas protegidas.

Eduardo Pegurier ·
3 de fevereiro de 2015 · 10 anos atrás

A bióloga Angela Kuczach, diretora-executiva da Rede Pró Unidades de Conservação. Foto: Rede Pró-UC
A bióloga Angela Kuczach, diretora-executiva da Rede Pró Unidades de Conservação. Foto: Rede Pró-UC

Dona de um temperamento forte e apaixonada pelas áreas protegidas do Brasil, a bióloga Angela Kuczach conseguiu o trabalho certo. Ela é a diretora-executiva da Rede Pró Unidades de Conservação, uma pequena mas tradicional ONG, fundada em 1998 por um grupo seleto de conservacionistas, que inclui o recém-falecido Almirante Ibsen Gusmão de Câmara, considerado por muitos o principal decano do movimento no país. A Rede, como é carinhosamente abreviada, também criou o CBUC (Congresso Brasileiro de Unidades de Conservação). O objetivo de Angela se alinha perfeitamente com o da sua organização: lutar com todas as forças para que grupos de interesse políticos e empresariais não desmantelem as áreas protegidas que já temos e estimular a criação de outras novas. Esse trabalho inclui denunciar e chamar a atenção da mídia para ameaças e divulgar à população a relevância das Unidades de Conservação em preservar a biodiversidade e prover serviços ambientais tão essenciais quanto o ar e a água. A Rede Pró UC tem outro diferencial do qual Angela pretende se valer. Quando necessário, vai processar na justiça parques, pessoas ou empresas que infrinjam a Lei do SNUC (Sistema Nacional de Unidades de Conservação). Formada na Universidade Federal do Paraná, em 2007, já fez pesquisas com grandes felinos, participou do programa de trainee da Fundação Boticário e foi responsável pelo projeto Empreendedores da Conservação, da ONG SPVS. Na edição de fim de ano da revista Época, Angela foi escolhida como uma das 100 personalidades mais influentes do país. Em Curitiba, onde mora, ela concedeu a ((o))eco a seguinte entrevista.

((o))eco — Hoje, qual é o cenário das Unidades de Conservação no Brasil?

A situação é talvez a mais difícil da história do país. Vivemos um período de forte ataque às Unidades de Conservação (UCs), que obtêm cada vez menos recursos e sofrem com tentativas recorrentes de enfraquecimento da legislação. Meio ambiente só é pauta na iminência de alguma crise, como a da água, que está acontecendo agora. Porém, o descaso sofrido pelas UCs é ainda pouco percebido pela população. Me recuso a ser pessimista. Prefiro dizer que daqui em diante teremos um desafio cada vez maior para defender nossas UCs, o que implica em levar informação e mobilizar as pessoas sobre porquê precisamos dessas áreas. A resposta é: para continuarmos existindo.

((o))eco — Por que é preciso uma ONG especializada em lutar pelas Unidades de Conservação do Brasil?

O Brasil tem uma ótima legislação que regulamenta as UCs, a Lei do SNUC (9.985/2000). Destaco com orgulho o papel histórico da Rede Pró UC em debater essa lei e se mobilizar para aprová-la. No entanto, na prática, a aplicação das leis brasileiras não é simples. Entre 2000 e 2010, a situação era melhor. Os governo de FHC e Lula, criaram cada um cerca de 25 milhões de hectares de novas UCs. Em 2007, surgiu o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), que apesar da polêmica em torno do desmembramento do IBAMA é um órgão dedicado a gestão de UCs. Quer dizer, havia uma perspectiva não ideal, mas positiva para as Unidades de Conservação. Nesse período, a Rede Pró UC passou um período mais calmo. Retomamos uma atividade intensa ao fim de 2013, pois o cenário mudou vertiginosamente e voltaram os riscos às UCs. É um momento que precisa da atuação firme de uma instituição com o perfil advocacy e ativista como o nosso, que resguarde, fiscalize e auxilie no cumprimento da lei do SNUC, e lute pelo direito da nossa sociedade de manter a biodiversidade preservada em amostras representativas e bem manejadas em cada um dos biomas do país.

((o))eco — Como surgiu a Rede Pró UC?

“Há um Projeto de Lei que pretende dividir o Parque Nacional da Canastra em quatro partes”

A Rede Pró UC foi fundada em 1998 pela necessidade de aprovar a própria lei do SNUC. Na época, havia um projeto de lei (PL) no Congresso Nacional há quase 10 anos, cujas bases remontam ao final da década de 70. No início da década de 1990, esse PL passou a tramitar na Câmara e congelou, não ia para a votação… Naquele momento, a sociedade civil ambientalista passou a pressionar em várias frentes e alguns dos grandes conservacionistas do país, como Almirante Ibsen de Gusmão Câmara, Miguel Milano e Maria Tereza Jorge Pádua, consideraram estratégica a formação de uma instituição com a nossa. Um dos diferenciais da Rede Pró UC é ser formada por instituições ambientalistas espalhadas pelo país e que representam os seus vários biomas. Um dos nossos pontos fortes é sermos capazes de usar essa rede para reunir informações sobre o que ocorre nas UCs, e assim nos articularmos e fortalecermos nossas ações. Um dos principais passos nisso tudo foi a realização do Congresso brasileiro de unidades de Conservação, o CBUC, em parceria com a Fundação O Boticário, que mais tarde veio a assumir a organização do evento. Mas as primeiras três edições foram realizações da Rede Pró UC. Aliás, o primeiro CBUC precedeu a criação formal da Rede, mas foi a semente para criá-la.

Vista do região do Boqueirão da Onça, na Bahia. Angela defende que o parque nacional planejado para a área já deveria ter sido criado há  anos. Foto: Angela Kuczach
Vista do região do Boqueirão da Onça, na Bahia. Angela defende que o parque nacional planejado para a área já deveria ter sido criado há anos. Foto: Angela Kuczach

((o))eco — Quais são as ameaças principais?

O ponto mais grave hoje é a posição do legislativo e do executivo frente às UCs. Estima-se que haja em tramitação no Brasil algo como 300 PLs (Projetos de Lei) para alterar UCs de alguma forma negativa. Alguns são mais específicos, como o PL 7.123/2010, que propõe a reabertura da Estrada do Colono no Parque Nacional do Iguaçu. ou o PL que propõe a fragmentação do Parque Nacional da Serra da Canastra em 4 partes, ao criar uma APA, um Monumento Natural e reduzir a área do Parque Nacional em 25%. Outros são mais genéricos e atingem não uma, mas todas as UCs, como o PL 3682/2012, que pretende liberar atividades de mineração em até 10% da área de UCs de proteção integral.

((o))eco — Que ações vocês planejam?

O primeiro ponto é o monitorar o que acontece no Congresso Nacional, observar os PLs que estão em tramitação, os grupos de interesse envolvidos e que força têm para votar e aprovar essas legislações. O Congresso recém eleito tem a maior bancada ruralista da história, com 143 deputados, cuja intenção explícita é continuar a enfraquecer a legislação ambiental, a despeito do sucesso que já obtiveram em alterar o Código Florestal. Vamos também denunciar essas ameaças e levá-las até os canais de grande mídia ou especializada, como é o caso do ((o))eco.

((o))eco — Existe intenção de atuar diretamente sobre os congressistas?

“(…) a essência o SNUC é muito boa e respaldada pelo Artigo 225 da Constituição, única no mundo, que garante o direito dessa e das futuras gerações a um meio ambiente ecologicamente equilibrado”

A bancada ruralista é bem organizada e tem recursos. Soma-se a ela os deputados que representam interesses da mineração, de grandes obras de infraestrutura e estamos frente a um grupo grande que ganha quando a legislação ambiental se enfraquece. Para que tenhamos sucesso é preciso unir forças com outros setores. Além das ONGs conservacionistas, precisamos trabalhar com o Ministério Público, pois este é um poder que funciona bem no Brasil. É ele que costuma cumprir o papel de colocar as coisas em ordem. Um exemplo disso foi o painel em 2014, promovido pelo Ministério Público Federal, para discutir formas de como usar recursos já existentes na regularização fundiária, um problema que afeta a maioria das UCs do Brasil. Em casos específicos, podemos agir através de ações jurídicas, e para isso contamos com um parceiro importante, o Instituto de Justiça Ambiental (IJA), do Rio Grande do Sul. Em 2009, por meio de uma articulação da Rede Pró UC, o IJA acionou o Parque Nacional do Iguaçu contra o trânsito ilegal de veículos dentro da rodovia das cataratas, o quê, na época, ocasionou a morte por atropelamento de uma onça-pintada. O IJA ganhou a ação, foi um caso bem-sucedido que forçou o parque a cumprir a legislação. Faremos ações semelhantes em 2015, mas não posso citá-las para não perder o efeito surpresa.

((o))eco — O SNUC deve ser mantido como está ou pode ser aperfeiçoado?

Qualquer lei pode ser melhorada, porém a essência o SNUC é muito boa e respaldada pelo Artigo 225 da Constituição, única no mundo, que garante o direito dessa e das futuras gerações a um meio ambiente ecologicamente equilibrado. As 12 categorias de UCs do SNUC vão desde Estação Ecológica, Reserva Biológica, as mais restritivas, passam por Parque Nacional e Monumentos Natural, até chegar às APAs, as menos restritas. Sob a perspectiva de um sistema de UCs é fantástico, pois é possível ter uma UC mais restritiva ladeada a outra no entorno de uso direto, que serve de zona de amortecimento para ajudar na proteção.

((o))eco — Há planos de propor novas UCs ou nova legislação?

A rede apoia a criação de novas UCs, principalmente de proteção integral, que são o nosso foco, embora hoje, dados os riscos, estejamos enfatizando a defesa das que já existem. Acreditamos que Unidade de Conservação é a forma mais eficiente de preservar o patrimônio natural.

( (o))eco —Mesmo que sejam parques de papel?

Ao conservar a natureza não se pode levar em conta apenas o tempo humano. Ao se criar uma UC é claro que o melhor é que ela seja implementada de maneira rápida. No entanto, frente ao que acontece no Brasil, onde a maioria dos biomas já está profundamente alterada, é melhor um parque de papel do que nada. Pense na Amazônia… no arco do desmatamento. São as UCs que seguram o avanço da fronteira agrícola. Existem problemas dentro das UCs? Sim, e de sobra. Eles incluem desmatamento, extração de recursos, caça, pesca, retirada de madeira, etc… Mas o decreto de criação de uma UC dá ao governo a responsabilidade de proteger aquela área. A retirada de recursos ali configura um crime. Então, eu prefiro que se crie o parque hoje e busque-se recursos para manejá-lo em seguida, em vez dessa área ficar vulnerável e possa ser utilizada para, por exemplo, grilagem, que poderá ser perdoada mais tarde, como acontece com frequência nos lugares mais distantes do Brasil. Essa postura atual do governo de não criar UCs porque não tem recursos é um tiro no pé. Temos rodovias, ferrovias, usinas hidrelétricas, projetos de expansão de plantio, agropecuária, mineração, uma infinidade de empreendimentos entrando o tempo todo nos biomas., O que é que vai sobrar daqui há 20, 30 ou 40 anos? As UCs, mesmo que hoje algumas sejam só de papel.

((o))eco — Será que tentar criar mais UCs não significa tratar pior todas elas, pois os recursos já escassos serão diluídos?

Acho na verdade que é exatamente isso o que se espera dessa tentativa de sucateamento: enfraquecer, sucatear, diminuir os recursos para a conservação. Neste ano de 2015, haverá o menor repasse de recursos da história na esfera federal. Assim, justifica-se a falta de criação de novas áreas protegidas. De novo é uma questão de escala de tempo. Os nossos netos e bisnetos tem alguma responsabilidade porque o governo atual não investiu o suficiente na conservação de áreas naturais? Merecem receber como herança solos pobres, áreas desertificadas, escassez de água e alimento? Acredito que o ponto de partida precisa ser o contrário: maiores recursos investidos nas preservação do patrimônio natural.

((o))eco — Qual é o caminho para obter mais recursos para a conservação?

Inserir-se no sistema econômico é um bom começo. As UCs precisam passar a ser vistas como ativos econômicos, e não como custo. De onde vem o ar, a água, o solo fértil? Das áreas naturais. Por esse prisma, estamos devendo. Há um bom número de UCs na Amazônia, mas outros biomas são paupérrimos. Só 2% da área da Caatinga são cobertos por UCs de proteção integral. No caso do ambiente marinho, esse percentual não chega a 1,5% somando tudo, as de proteção integral e de uso direto. No final das contas, com o aumento da população, dos empreendimentos, cidades crescendo, o país crescendo, o que sobra são os locais onde existem UCs é que serão preservados a longo prazo. Onde não tem… esqueça. No mar, os estoques pesqueiros estão indo embora, e aí a gente vê uma briga sem fim de pescador dizendo que tem direito a pescar espécie ameaçada de extinção, caso que ocorreu neste início de janeiro em Itajaí. Na verdade, se não preservar não há razão para briga, porque o recurso vai acabar. No ambiente marinho, a carência é grande, desde estudos sobre o estado de conservação dessas áreas à criação de UCs que já estão para sair há tempos, como o Parque Nacional Marinho de Alcatrazes.

Para a Caatinga, defendo a criação imediata do Parque Nacional do Boqueirão da Onça, que já devia existir há anos. A última grande área conservada do sertão, com mais de 1 milhão de hectares, lar da segunda maior população de onças-pintadas daquele bioma e a única área onde restam poucos indivíduos de arara-azul-de-lear fora da região de Canudos. A cada novo licenciamento de parque eólico na região, esses animais estão mais ameaçados. Não estou afirmando que a culpa é das eólicas. Os primeiros estudos para a criação do Parque Nacional aconteceram ainda em 2006 e as eólicas chegaram à região depois disso. Estou dizendo que esta é uma área rica, que pede conservação urgente. Não há justificativa para o Parque Nacional do Boqueirão da Onça ainda não ter sido decretado.

((o))eco — Além das ameaças imediatas, como consolidar uma cultura de valorização e de boa gestão das UCs no país?

No Brasil, precisamos que as UCs sejam vistas como oportunidades. O país ainda olha para elas como espaços que impedem o desenvolvimento. Isto está errado. Enquanto essa visão prevalecer na cabeça das pessoas e dos líderes políticos, as UCs estarão ameaçadas. Em geral, o brasileiro tem orgulho da sua natureza, mas precisa conhecê-la melhor, ser educado sobre a importância do patrimônio natural. Para isso, as Unidades de Conservação precisam estar preparadas para receber visitantes, pois o uso público é o maior mobilizador para a conservação. Afinal de contas, nossos parques nacionais existem para que as pessoas também desfrutem deles. Hoje, não há condições para que isso aconteça.

 

 

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  • Eduardo Pegurier

    Mestre em Economia, é professor da PUC-Rio e conselheiro de ((o))eco. Faz fé que podemos ser prósperos, justos e proteger a biodiversidade.

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