Reportagens

Índios no pedaço

Dois grupos da mesma tribo estão acampados em áreas protegidas no Rio Grande do Sul. Um foi para as dunas ganhar uns trocados, o outro quer morar num Parque.

Renan Antunes de Oliveira ·
11 de março de 2005 · 20 anos atrás


O bando light ocupou dunas na praia de Tramandaí (foto),
ameaçando a sobrevivência dos tuco-tucos, roedores do bem que têm seu habitat no litoral. O grupo barra pesada se encarapitou no alto do Morro do Osso, parque natural em área nobre de Porto Alegre, enfrentando a ira de ambientalistas pró-parque e de especuladores pró-bolso.

Os de Tramandaí, sob o comando do cacique Vitório, fincam pé na areia em condições de higiene piores do que as do minizôo da capital gaúcha, onde os bichos têm jaulas limpas e água abundante. O objetivo é ganhar uns trocados no verão, vendendo artesanato aos turistas argentinos.


A origem dos dois bandos é a mesma. Vieram da reserva de Nonoai, nos grotões do Rio Grande do Sul. Os de Tramandaí estão lá desde antes do Natal – chegaram num caminhão velho, carregando apenas roupas e alguns utensílios de cozinha. São 60, a maioria crianças. O cacique Vitório é um homem baixinho, atarracado, cabelos desgrenhados, sempre com uma cuia de chimarrão nas mãos. O acampamento nas dunas fica na beira de uma rodovia e é sazonal. No final de março os índios voltam para sua aldeia.

E os tuco-tucos? Se encontram algum, vai para a panela. Para abastecer as 60 bocas, a aldeia tem apenas uma mangueira com água potável. É de plástico, preta, sai da areia, roubando o líquido de alguma tubulação da cidade. Não tem torneira. Os índios dobram a mangueira para evitar o desperdício.


Para a Funai e o Governo do Estado, está tudo ok. O Ministério Público entrou na jogada, exigindo da Prefeitura que pelo menos melhore a vida deles. E uma recomendação às autoridades envolvidas: “Orientar as crianças para não mendigarem desacompanhadas nos centros urbanos”. Acompanhadas, pelo visto, estão liberadas.


A turma conseguiu atingir foi um terceiro objetivo: revelou que o parque, originalmente previsto para ocupar 114 hectares, foi invadido por especuladores imobiliários. Criado em 1979, só resta a metade da área que deveria ser preservada. A dificuldade do governo é indenizar os milionários do pedaço. As encostas têm um visual privilegiado do Rio Guaíba. Um lote no pé do morro já vale 400 mil reais.

A presença dos índios incomoda mais por ter atraído atenção para o problema do que pelo tamanho da nova aldeia: ela é o caos num lote de 24m por 30m, onde cabem apenas 12 barracas de plástico. As ocas são abastecidas de energia por um gato, servidas de esgoto por uma cabine tipo pipi-room e de água por um tanque de plástico. O centro da aldeia tem sofás sem pernas na calçada, fogões improvisados, cães vadios e galinhas soltas, tudo emoldurado por muito lixo.


Defensores da causa indígena, Prefeitura, Governo do Estado, Funai, vereadores, sociólogos de plantão, empresários do ramo imobiliário, ecologistas, associações de moradores e juristas estão agora debruçados sobre uma questão de proporções quase metafísicas: se eles são mesmo índios ou espertalhões querendo terra sem pagar. Pela cara, não dá para saber se são caingangues, apaches ou astecas. Só é evidente que nenhum tem traços de italiano nem de alemão, as etnias mais comuns entre os gaúchos.

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