Em 1907, meu tataravô, Hilmar Werner adquiriu a área batizada de Fazenda do Carmo, na região serrana do Rio de Janeiro. Na época, mais de um século atrás, a ideia que meu antepassado tinha sobre o valor dessa área era para abertura de pasto e retirada das madeiras de maior valor – uma visão compartilhada por tantos outros em seu tempo, que puseram a Mata Atlântica abaixo sem hesitação. Hoje, 104 anos, algumas gerações e muitas transformações depois, a floresta ganha uma nova chance sobre os morros da região, agora convertida na Reserva Ecológica de Guapiaçu, mais conhecida simplesmente como REGUA.
Localizada a duas horas do Rio de Janeiro, no município de Cachoeiras de Macacu, a REGUA foi fundada oficialmente como uma ONG ambientalista em 2001. Sua missão institucional é preservar esse grande remanescente florestal que sobreviveu aos ciclos econômicos da região, aos pés das escarpas montanhosas da Serra do Mar, e com alta biodiversidade.
Atualmente, a REGUA possui uma área total de 7.559 hectares, com 75% de sobreposição com o Parque Estadual dos Três Picos (criado posteriormente, em 2002), maior Unidade de Conservação estadual; e 10% estabelecida como Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN), uma unidade de conservação de gestão privada.
O Brasil está localizado em um dos “hotspots” mundiais prioritários para a conservação devido ao seu alto grau de endemismo (espécies que só ocorrem aqui) e de distribuição de fauna e flora, ambos sob forte pressão antrópica. E a Mata Atlântica, apesar de reduzida a um quarto da sua cobertura original nos últimos séculos, continua sendo uma importante área na elaboração de projetos, esforços e políticas de conservação globais, e reconhecida pelas autoridades mundiais em meio ambiente como prioritária nos programas de conservação e restauração.
A própria área onde é hoje a Reserva Ecológica vivenciou inúmeras transformações nos últimos séculos. Desde o desmatamento em si, que começou junto com a ocupação da região, no fim do século XIV, até o desvio de rios, formação de açudes e o consequente desaparecimento das áreas alagadas e de brejo típicas da região.
Nesse contexto, a REGUA conseguiu “dar o pontapé inicial” na restauração florestal e se tornar uma referência local através da reversão da drenagem, para recriar as áreas alagadas que existiam originalmente e que são um habitat para diversas espécies; e do plantio de mudas nativas a partir de sementes coletadas nas florestas próximas para recomposição florestal.
Para aumentar a área protegida e ganhar escala na restauração, desde 2001 a REGUA vem adquirindo tanto fragmentos florestais remanescentes quanto áreas de pastagens degradadas para recuperação por meio de reflorestamento. A partir da conversão de áreas degradadas, as ilhas de fragmentos florestais aos poucos se conectam e criam-se grandes corredores ecológicos para garantir o fluxo genético das espécies encontradas apenas nesses habitats.
Hoje, os pilares do trabalho de conservação da REGUA são a aquisição e monitoramento de áreas para preservação, o incentivo à pesquisa científica, a reintrodução de espécies da fauna e flora nativas, a restauração florestal, o desenvolvimento de programas de educação ambiental e o turismo sustentável; sempre com foco na conservação da bacia hidrográfica Guapiaçu.
Conservação e recuperação
O rio Guapiaçu nasce em terras pertencentes e protegidas pela REGUA, nas florestas montanas de altitude da Serra dos Órgãos, uma faixa crucial da Serra do Mar, que atinge mais de 2.300 m de altitude, e que se estende na direção sudeste por 100 km, até a Baía de Guanabara e a cidade do Rio de Janeiro. O rio Guapiaçu, junto ao rio Macacu, forma uma das seis bacias que deságuam na Baía de Guanabara, e que ajudam a abastecer o Sistema Imunana-Laranjal que fornece água potável para mais de 2,5 milhões de habitantes da região Metropolitana leste do Rio de Janeiro. Por esse motivo, a bacia hidrográfica Guapi-Macacu é estrategicamente prioritária na sua conservação.
A bacia do Rio Guapiaçu também serve de refúgio para flora nativa e abriga espécies ameaçadas de extinção, como o jequitibá-rosa (Cariniana legalis), considerada a maior espécie arbórea da Mata Atlântica;
Embora grande parte das florestas em pé estejam dentro dos limites do Parque Nacional da Serra dos Órgãos e do Parque Estadual dos Três Picos, parte significativa dessas terras permanecem em propriedades particulares. Isso não tem evitado, entretanto, a ocupação irregular de algumas áreas, assim como a caça e outros usos extrativistas da floresta que causam desequilíbrio ecológico.
Historicamente, a fragmentação do habitat e a caça reduziram muitas populações de grandes mamíferos e aves na Mata Atlântica. Na REGUA – e na floresta adjacente ao Parque Estadual dos Três Picos – , algumas delas ainda sobrevivem, como o muriqui-do-sul (Brachyteles arachnoides), o maior primata das Américas, e uma espécie altamente ameaçada que praticamente desapareceu do resto do estado. Esta espécie tem uma população total estimada em menos de 1.500 indivíduos e requer grandes áreas de floresta intacta para sobreviver – entre 485 e 1.200 m acima do nível do mar. Cerca de 10% desta população sobrevive na região da REGUA, onde já foram identificados pelo menos quatro grupos do primata. Uma dos objetivos da reserva é fornecer uma área cada vez mais protegida para esta espécie e garantir sua conservação no longo prazo.
A bacia do Rio Guapiaçu também serve de refúgio para flora nativa e abriga espécies ameaçadas de extinção, como a garapa (Apuleia leiocarpa); o jequitibá-rosa (Cariniana legalis), considerada a maior espécie arbórea da Mata Atlântica; o cedro-rosa (Cedrela fissilis); a guapeba (Chrysophyllum imperiale); a canudo-de-pito (Couratari pyramidata), que ocorre apenas na Mata Atlântica do estado do Rio de Janeiro; o jacarandá-da-Bahia (Dalbergia nigra); a palmeira juçara (Euterpe edulis); o emblemático pau-brasil (Paubrasilia echinata) e o cupã (Pouteria butyrocarpa), conforme censo realizado pelo Centro Nacional de Conservação da Flora do Jardim Botânico.
A zona de amortecimento em ambos os parques vizinhos à REGUA está ocupada com agricultura, pastagens, plantação de eucalipto e construções, o que resulta no empobrecimento da qualidade do habitat, isolamento de cobertura vegetal ou fragmentação pela pressão constante das bordas. Nas encostas mais íngremes, o desmatamento causa ainda erosão e perda de solo, e consequentemente também afeta a qualidade de água das nascentes nessas áreas protegidas. Prevê-se que esses problemas piorem à medida que as mudanças climáticas tornem as tempestades e as chuvas mais severas. Assim, a conversão de pastagens degradadas das encostas mais íngremes em florestas traz vários benefícios para o ecossistema e para a região como um todo.
A agenda de conservação e restauração ecológica é, portanto, uma iniciativa que ajuda a garantir a segurança hídrica da região, evitar deslizamentos e prover outros serviços ecossistêmicos essenciais para nossa própria qualidade de vida.
Na REGUA nosso objetivo é oferecer um modelo alternativo de conservação sustentável a longo prazo. Isso envolve desde a aquisição de propriedades na bacia, a restauração e o patrulhamento florestal, até a criação de RPPNs, que permitam a consolidação de uma grande área contígua – e protegida – de floresta.
Desde 2004, a instituição tem investido em ações ambientais como a restauração florestal e a educação ambiental. Tanto com a recuperação de áreas degradadas de encostas e de baixadas, quanto com a restauração de ecossistemas florestais e úmidos originais em Áreas de Preservação Permanente (APPs), como nascentes, beiras de rio, topos de morro e brejos.
Para isso, contamos com importantes parceiros como a World Land Trust, Petrobras Socioambiental, SOS Mata Atlântica, WWF, Iniciativa Verde, Ecosia, INEA e CEDAE.
A partir de 2013, as ações de restauração ecológica do Projeto Guapiaçu, executado pela REGUA com patrocínio do Programa Petrobras Socioambiental, priorizaram a criação de corredores ecológicos e ocorreram em três etapas: preparação da área para o plantio, plantio das mudas e manutenção das áreas.
Para garantir o sucesso no projeto, todas as ações foram realizadas mediante planejamento prévio, levando-se em consideração as características ambientais das áreas que receberam a intervenção e indicando as espécies e os procedimentos técnicos adequados para o plantio, manutenção e proteção ao desenvolvimento das áreas manejadas. Em médio e longo prazo, deve haver o restabelecimento da estrutura, produtividade e diversidade, a fim de alcançar o máximo possível da semelhança com o que era a floresta originalmente. Para isso, é necessário considerar a alta biodiversidade e a variabilidade na estrutura e funcionamento dos processos ecológicos, que irão nos indicar os resultados e o sucesso da restauração.
A metodologia adotada no projeto foi adaptada do guia técnico elaborado pelo Pacto Pela Restauração da Mata Atlântica, com a maior parte feita como plantio em área total, ou seja, com o plantio de mudas de espécies arbóreas em toda a área a ser restaurada. Em menor escala também foram utilizadas técnicas de enriquecimento – método usado nas áreas que já possuem vegetação nativa, mas com baixa diversidade florística – e de condução da regeneração natural, sobretudo em áreas de difícil acesso – feita através do controle periódico, químico ou mecânico, de plantas invasoras para facilitar que a vegetação nativa retome, naturalmente, seu espaço.
Para levar a cabo o programa de restauração ecológica da REGUA, é utilizada mão-de-obra local, como uma oportunidade não apenas de reverter recursos para as comunidades do entorno, mas também de sensibilizá-la para a causa ambiental. Toda esta atividade capacita e gera empregos, contribui para a satisfação da comunidade, estimula pesquisas, alavanca o turismo na bacia do Guapiaçu, e serve como modelo de gestão integrada no bioma.
Os frutos da recuperação da floresta
A REGUA é hoje uma das maiores restauradoras de ecossistemas florestais do estado do Rio de Janeiro, com 447 hectares de áreas restauradas e 670 mil mudas plantadas, com uma diversidade de mais de 500 espécies diferentes. São produzidas entre 60 e 80 mil mudas nativas por ano no viveiro da REGUA. Além disso, essas ações geram empregos diretos e indiretos, e a frente de educação ambiental gera uma crescente conscientização nas comunidades locais, principalmente entre os mais jovens e as suas famílias.
Com a proteção e reflorestamento, juntamente com o patrulhamento por guardas-florestais para eliminar a caça furtiva, a onça-parda (Puma concolor) está sendo regularmente registrada em armadilhas fotográficas.
A cadeia florestal, que se inicia com a coleta de sementes e resulta em recobrimento de áreas degradadas e formação de florestas, está diretamente ligada ao fortalecimento dos serviços ambientais da bacia hidrográfica, garantindo uma produção de água.
Em reconhecimento ao trabalho da REGUA, o Instituto Estadual de Ambiente do Rio de Janeiro (Inea-RJ), permitiu que a reserva fosse indicada como área propícia para a reintrodução de antas (Tapirus terrestris), espécie emblemática, considerada jardineira da floresta pelo seu papel de dispersar sementes e que estavam extintas há 100 anos no estado do Rio de Janeiro.
A iniciativa, coordenada pelo Refauna sob aprovação do Inea, já reintroduziu 14 antas na REGUA. Destas, cinco morreram e uma fugiu. Em contrapartida, dois filhotes nasceram na natureza e se somaram ao grupo, que tem dez indivíduos.
A REGUA é vista como parceira do Inea, do município de Cachoeiras de Macacu e das comunidades do entorno no programa de sensibilização do meio ambiente, gerando reconhecimento pelos cidadãos e sendo motivo de orgulho local. O amplo programa de recuperação de áreas degradadas fortalece a cadeia produtiva da restauração florestal e gera oportunidades de pesquisa científica. A REGUA mantém parceria com diversas universidades do Rio de Janeiro e oferece oportunidades para estudantes universitários usufruírem da infraestrutura para cursar disciplinas de campo e desenvolver novos estudos sobre o processo de reflorestamento, biodiversidade e o valor ecológico desse bioma.
A cadeia florestal, que se inicia com a coleta de sementes e resulta em recobrimento de áreas degradadas e formação de florestas, está diretamente ligada ao fortalecimento dos serviços ambientais da bacia hidrográfica, garantindo uma produção de água em quantidade e qualidade satisfatórias para suprir a demanda de abastecimento a milhões de pessoas. O processo demonstra que projetos ambientais em parceria com o poder público e outras organizações da sociedade civil, contribuem com a conservação do meio ambiente, gerando resultados duradouros e visando equilíbrio entre a conservação das espécies e uso do solo, e que traz benefícios tanto para a sua biodiversidade quanto para as populações do entorno. A anta agradece!
As opiniões e informações publicadas nas seções de colunas e análises são de responsabilidade de seus autores e não necessariamente representam a opinião do site ((o))eco. Buscamos nestes espaços garantir um debate diverso e frutífero sobre conservação ambiental.
O projeto Mata Atlântica: novas histórias é apoiado pelo Instituto Serrapilheira.
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