Na praça, um alemão. Na rua, um casal de suíços e, dentro da pousada, 15 noruegueses que vieram ao Brasil aprender português, surf e capoeira em três meses de imersão. Todos trocaram o frio de seus países por Itacaré, uma cidadezinha a 440km ao sul de Salvador, um lugar de lindas praias. De mar azul como o céu em dia ensolarado. Limpas e selvagens debaixo de chuva, como tantos outros destinos da costa nordestina. Mas Itacaré tem uma vantagem particular: por longas temporadas, os gringos não encontram muitos brasileiros por perto.
“Eles só querem tranqüilidade”, diz a dona de uma das pousadas. Fogem do carnaval e dos meses de férias. Vêm na baixa temporada, quando convivem quase exclusivamente com nativos. Na humilde cidade de 20 mil habitantes não é difícil encontrar belas itacareenses que já conheceram a Europa acompanhadas de seus namorados estrangeiros. Tampouco guias de ecoturismo, donos de pousada e de biroscas que se viram bem no inglês, no italiano ou no espanhol.
Os produtores rurais, que andam na pindaíba por causa da baixa nos preços do cacau, observam de fora o que essa gente estrangeira está fazendo com Itacaré. “Eles não ligam pra lavoura, não deixam tirar madeira nem caçar. Querem deixar a terra como museu”, diz João da Cruz, mais conhecido na região como seu Walmir. Por quê, pergunto. “Ah, deve ser por causa de tanta boniteza, né?”
Seu Walmir assiste à instalação de mansões e grandes hotéis de luxo nas praias próximas a Itacaré toda vez que pega o ônibus para fazer compras em Ilhéus, cidade maior e mais próxima. Aos 68 anos, conhece como poucos cada curva dos 70km que ligam os dois municípios e lembra nostálgico de quando sequer existia rodovia. “Nosso caminho era a areia da praia”, recorda-se. Mas logo veio a estrada de terra e, desde 1998, o asfalto. Com ele, o progresso de Itacaré. Empregos para os nativos o ano todo, mais visitantes, setor hoteleiro em franca expansão e… as vantagens acabam por aí. A sofisticação desse paraíso tropical está começando a sair mais caro para os itacareenses. Subiram os preços de artigos de higiene pessoal, dos alimentos e até dos peixes, capturados pela própria comunidade. Em contraste com as áreas mais pobres da cidade, Itacaré tem servido a um tipo de turista de alto poder aquisitivo. E vem sendo forçada a mudar alguns hábitos de compra. Mas na opinião do ambientalista Salvador Ribeiro, fundador da ong Instituto Floresta Viva, a fama de “careira” tem a vantagem de barrar o turismo de massa.
Mesmo assim, depois do asfaltamento do trecho Ilhéus-Itacaré da BA-001, quem sentiu mais as conseqüências foram, como sempre, os remanescentes de Mata Atlântica e os recursos marinhos locais. Como medida compensatória do empreendimento, um ano antes da inauguração da rodovia foi criado o Parque Estadual da Serra do Conduru, com 9.275 hectares de fragmentos florestais. Até hoje, a unidade de conservação espera políticas eficientes para combater o tráfico de animais silvestres e a extração ilegal de madeira, inclusive do conduru, espécie típica da região que deu nome ao parque, mas dificilmente é encontrada dentro dele. No mar, a ameaça está na pesca comercial. Segundo os moradores, o governo pretende transformar uma faixa de cerca de cinco quilômetros de largura em reserva extrativista marinha, o que limitaria a quantidade do pescado retirado daquelas águas. No entanto, nenhuma decisão oficial foi tomada a esse respeito.
Na cidade, mais construções, embora o saneamento já instalado ainda não funcione. “Seria exagerado dizer que a água está poluída, mas como todas as casas usam fossas, sempre escapa alguma coisa”, conta um taxista. Os extensos manguezais do rio de Contas, que nasce na Chapada Diamantina e desemboca em Itacaré, também não são os mesmos. “Quando eu era pequena, brincava nas águas transparentes do rio. Agora elas estão mais turvas por causa do assoreamento, os mangues são diferentes. Nem parece o mesmo lugar”, lembra a recepcionista Zete, de 28 anos. De 1998 pra cá, três resorts passaram a dificultar o acesso de turistas e nativos a algumas das mais belas praias da região. E outros dois estão sendo erguidos em áreas nobres. Por portugueses.
Com poucas ruas de calçamento, os carros de passeio passaram a congestionar o trânsito de Itacaré em época de carnaval e réveillon. Na alta temporada, lentidão e degradação também nas trilhas. Grupos de mais de 30 pessoas são conduzidos por uma só pessoa – um absurdo aos olhos dos guias de ecoturismo nativos, que conhecem Itacaré como a palma da mão. Segundo Arionilton, que por sua estatura é mais conhecido como Comprido (foto), agências de turismo de outras cidades operam no local a preços mais baixos e levam muito mais gente do que a capacidade das trilhas. “Coincidência ou não, há um tempo começaram a surgir assaltos nas matas daqui”, diz.
Sete anos é muito pouco, mas tempo suficiente para pressionar as tradições locais. “Com essas mudanças todas, espero que Itacaré não vire um lugar como Porto Seguro ou Morro de São Paulo (BA), onde quase não se vê a cultura local”, diz Zete. Comprido, o irmão dela, trata de cuidar disso com as próprias mãos. Ele é presidente da Associação Cultural Tribo do Porto, que desenvolve atividades de resgate da cultura negra e educação ambiental através do teatro e da música. “Ensinamos de tudo um pouco: capoeira, maculelê, samba de roda, puxada de rede (dança que lembra o movimento de retirada de peixe), resgatamos as lendas e os mitos da cultura afro”, diz, orgulhoso. Toda semana esses eventos tomam as ruas do bairro Porto de Trás, único que não tem pousadas e é habitado exclusivamente pelos nativos. “Todos podem entrar e participar, mas aqui é nosso espaço de resistência como povo tradicional”, explica Comprido.
O guia, um dos mais conhecidos e queridos de Itacaré, resiste também de outras formas. Ao levar os visitantes para conhecer as praias e as trilhas da região, transmite tantos conhecimentos locais que deixa qualquer um envergonhado de tanta cultura inútil que se aprende nas metrópoles. Sempre com sorriso no rosto, Comprido pára de minuto em minuto para apreciar junto com o recém-chegado o perfume de uma aroeira, a maciez da folha de remela de gato, a energia de uma maçaranduba, a preciosidade de um conduru, o exotismo de um ninho de marimbondo-tatu ou a refrescância de uma amesca, que alivia a respiração como pomada Vicky. Tanto em tão pouco do que restou da Mata Atlântica.
Os imensos desafios da pequena Itacaré para ao menos evitar mais pressões sobre o meio ambiente podem se tornar ainda maiores a partir do segundo semestre deste ano. Alguns moradores de cidades próximas dão como certo o início do asfaltamento de mais um trecho da BA-001: mais um caminho liso como um tapete – e como é raro ver em estradas baianas – para Itacaré. A obra, que vai facilitar o acesso a partir da cidade de Camamu, pode ser como um filme repetido à comunidade de Itacaré. Todo mundo já sabe o final.
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