O Rio de Janeiro é o melhor lugar do mundo para quem quer viver com saudades do Rio de Janeiro. Talvez a culpa seja da própria cidade que, com os excessos de sua natureza, educa mal seus moradores, tornando-os insaciáveis. Ou porque há ocasiões em que, francamente, ela exagera. Sobretudo no outono, quando sem mais nem menos amanhece lavada pelas últimas chuvas do verão, polida até brilhar pela secura do ar frio. A essa altura, certamente ela estará livre da névoa que o calor tirava do chão nos meses mais quentes do ano, embaçando no horizonte o contraste do céu azul com o verde novinho em folha dos penhascos. E eles, por sua vez, cairão a prumo no mar aceso. Com um pouco de sorte, tudo estará faiscando na claridade desmesurada de maio. O sol baterá no basalto dos morros com fúria radioativa. E cobrirá a água com uma nata reverberante, iluminando de baixo para cima as fachadas, as castanheiras e as saias na beira da praia.
É nessas horas que o legítimo carioca, diante de tudo o que o Rio ainda tem, enxergará como uma sombra sobre a cidade as coisas que a cidade perdeu. Quem não daria alguns séculos de vida para ver essa mesma luz com os olhos de quem chegou primeiro e encontrou a Baía de Guanabara ainda inteira? Como o francês Nicolas Barre, que em novembro de 1555 entrou na barra desse “rio que mais parece um lago” com os navios de Nicolau Durand de Villegaignon. “O rio referido é tão espaçoso que todos os navios do mundo poderiam aí ancorar”, ele escreveu aos amigos que deixara na Europa. “Sua superfície é cheia de belas ilhas, cobertas de verdes bosques.
Cem anos depois, o poeta inglês Richard Flecknoe desembarcou na cidade de carona com o governador Sebastião de Brito Pereira. E não deixou por menos a experiência: “Ao avançarmos para além do forte que defende a baía, deparamos com a mais sedutora paisagem do mundo: um lago, com umas 20 milhas de extensão, todo salpicado de ilhas verdejantes de diversos tamanhos”. A seu redor, só havia a mata “que, com o solo virgem desde a criação do mundo, produz, sem nenhuma cultura, árvores frondosas e enormes, algumas das quais com sete ou oito braças de diâmetro e mais de 70 ou 80 de altura. Com elas os brasileiros, utilizando um único tronco, fazem canoas e barcos de duas ou três toneladas”.
Mais um século, e aportava na colônia portuguesa a fragata Dolphin, comandada pelo comodoro John Byron. Não era o poeta, mas seria avô do poeta. Passou no Rio 45 dias, tempo bastante para ratificar as impressões de Flecknoe: “O solo do Brasil é muito fecundo e, entre outras coisas, possibilita o desenvolvimento de árvores altíssimas, próprias para os mais variados usos e completamente estranhas para os europeus. Os bosques estão repletos de excelentes frutas, muitas das quais desconhecidas na Europa e no restante da América”.
Quase na mesma época, James Forbes, escrivão da Companhia das Índias Orientais, veio dar com os costados na Guanabara quando uma tempestade o colheu no caminho de Bombaim. E foi ainda mais enfático que o comodoro Byron: “A grandiosidade das montanhas, a fertilidade dos vales, a suavidade do clima e a beleza da vida animal e vegetal conferem especial interesse a essa parte da América do Sul. A variedade de árvores e plantas, a profusão de frutas e flores, a exuberância dos pássaros e insetos constituíram um rico manancial para as minhas pesquisas de história natural”. Eis o que ele disse, por exemplo, dos arredores da Lapa: “Um adorável vale, sobre o qual passa o aqueduto que abastece a cidade de São Sebastião, transformou-se no meu refúgio favorito. Aí a flagrância das rosas e das murtas mistura-se com o delicioso cheiro exalado pelos galhos floridos dos limoeiros e das laranjeiras, sempre ligeiramente inclinados pelo peso de seus dourados frutos”.
Eram os ingleses que tinham perdido nos trópicos o senso de medida? Vejamos nesse caso o que escreveu naquele tempo um explorador indiscutivelmente tarimbado na matéria – Louis Antoine de Bougainville, o francês que deu volta ao mundo no século XVIII e acabou imortalizado no nome de uma árvore típica da mata atlântica: “Durante nossa estada no Rio de Janeiro, gozamos da primavera dos poetas. A vista da baía local será sempre um espetáculo memorável para qualquer viajante, sobretudo pra aqueles que passaram longos períodos em alto-mar, privados da visão de bosques e habitações, e são originários de países em que o sol e a tranqüilidade sejam raros. Para nós, foi uma experiência enriquecedora e prazerosa a permanência nessas plagas, onde para qualquer lado que se olhe a natureza oferece um deslumbrante espetáculo”.
Outro viajante acima de qualquer suspeita, nada menos que o capitão James Cook, fundeou o Endeavour diante da cidade em 1768. Mal conseguiu licença para desembarcar. Encarou tiros advertência disparados pela fortaleza de Santa Cruz. E nem por isso fez abatimento na descrição do lugar: “As imediações da cidade que tivemos oportunidade de conhecer são muito agradáveis. Os lugares mais selvagens são cobertos por uma grande quantidade de flores que, no tocante ao número á beleza, superam aquelas dos jardins mais elegantes da Inglaterra. Sobre as árvores e arbustos é possível encontrar uma quantidade infinita de pássaros, a maior parte deles coberta com plumagem brilhante. O que mais chamou nossa atenção foi o colibri. Os insetos também são muitos – alguns de rara beleza – e mais ágeis do que os da Europa. Essa observação é válida, sobretudo, para as borboletas que, voando ao redor das partes mais altas das árvores, só se deixam apanha quando um vento forte, que sopra do mar, as obriga a voar mais perto do solo”.
Cook sequer precisou descer do barco para ter a certeza de que estava diante de um lugar especial. “Nós nunca tínhamos visto um lugar com tamanha quantidade de peixes como a baía e a costa do Rio de Janeiro”, ele comentou. “Praticamente não havia um dia em que não fosse trazido a bordo um exemplar de uma espécie completamente desconhecida”. Concluiu que “a baía é muito apropriada para a pesca, pois é cheia de pequenas ilhas e pontas de terra com pouca profundidade onde se pode facilmente manusear um arrastão. Do lado de fora da baía, o mar abunda de golfinhos e grandes sororocas. Esses peixes mordem a isca com tanta facilidade que os habitantes locais têm por hábito andar com um anzol atado na parte traseira dos barcos”.
Tem mais. No fim do século XVIII, passou pelo porto da cidade, para se reaprovisionar, a frota do embaixador George Macartney, enviado à China pelo rei George III em missão diplomática. Aqui, apesar da curta estada de duas semanas, Lorde George acreditou que podia avistar o futuro: “Independente do destino que o Rio de Janeiro venha a ter, graças à natureza, essa cidade será sempre digna de atenção. Pode-se dizer que seus contornos estão fortemente desenhados. Seu porto, suas montanhas, seus bosques e seus rochedos são grandes e majestosos. Suas produções crescem com o vigor e a frescura da juventude, nada aí é pobre, árido ou decadente”.
Foi muita gentileza do dignitário britânico. Mas o fato é que, poucos anos depois, no começo do século XIX, outro inglês, o comerciante John Luccock, que viveu mais de uma década na corte que D. João exilara no Rio de Janeiro, já começava a misturar à admiração pela paisagem carioca a suspeita de que ela corria perigo. Luccock chegou com a abertura dos portos, numa fase de explosão demográfica e crescimento urbano. Viu o antigo burgo colonial derramar-se por bairros novos. Era um observador meticuloso, equipado com as tinturas das ciências naturais que em seu tempo faziam parte da educação humanística. Aqui, ele caçou e se perdeu nas matas de São Cristóvão. E atravessou as florestas que então cobriam a Baixada Fluminense.
Vem dele o primeiro aviso de que as coisas estavam mudando depressa. Depressa demais. “Em vão se tenta descrevê-la”, disse ele da baía de Guanabara. “Não pode pena imitar o lápis, nem o lápis a natureza, em cenários tal como esse. Acham contudo os juízes competentes que ela forma um panorama de magnificência e beleza quase sem-par”. Em volta da cidade, ele ainda viu “uma floresta interminável, com cada morro coberto de árvores altaneiras e cada vale repleto de madeira para lenha”. Gastou muitos adjetivos com os elogios às ilhas enfeitadas por “luxuriante vegetação”. Considerou o conjunto, “uniformemente sereno, alegre e ridente”, uma prova de que o “homem pode viver feliz, sob a influência do Deus da natureza”. Mas reconheceu perigos no avanço do progresso: “É verdade que nos últimos anos muito se arrancou das abas desses mantos, que agora se mostram um tanto esfarrapados. Haveríamos de lamentar as mudanças sofridas por esses matos, que até há pouco subsistiram, se não nos lembrássemos que eles assim contribuíram com sua parte para as necessidades do homem, fornecendo á cidade que lhes fica ao pé o valioso artigo do combustível e sendo ainda empregados no fabrico tanto do necessário como dos luxos da vida”. Tudo isso há quase 200 anos.
Pode-se estender essa lista até o “Samba do Avião”, de Tom Jobim, último autor influente a se espantar em versos, nas décadas finais do século XX, com a beleza da chegada à Guanabara. Ou recuá-la a 1502, quando o florentino Américo Vespucio julgou descobrir na entrada da baía a porta do paraíso terrestre. Mas não é preciso. Elas repetem ao longo da História impressões muito parecidas umas com as outras. Juntas, mostram que não há nada para dizer sobre o Rio de Janeiro que já não se tenha dito ao longo de sua História, com todos os sotaques e em todos os estilos. E essas declarações falam de quê? Falam, em primeiro lugar, da orla carioca. Especificamente, de uma orla carioca que, através dos séculos, os forasteiros descortinavam no interior da Baía de Guanabara, quando a Zona Sul, onde agora se concentra seu tesouro turístico e sua vocação balneária, ainda não existia.
A Zona Sul, para existir, teve que se juntar administrativamente ao cotidiano carioca na era do bonde, da incorporação imobiliária de Copacabana, da desinfecção dos verões pelo médico Oswaldo Cruz e das reformas modernizadoras do prefeito Francisco Pereira Passos. São coisas que só vieram no começo do século XX. Portanto, na época que tornaria a Baía de Guanabara de uma vez por todas irreconhecível. Hoje mal adianta procurar nelas as ilhas, os promontórios, o litoral sinuoso, as praias, os portos, os manguezais e os penhascos verdes que, de século em século, seus velhos admiradores assinalaram. Eles não estão mais ali.
O geólogo Elmo Silva Amador fez o inventário completo dessas perdas. A baía tinha 132 quilômetros quadrados de restinga. Sobraram 28 quilômetros quadrados. Eram 235 quilômetros quadrados de brejos e pântanos. Restaram 75 quilômetros quadrados. Cento e uma ilhas. Conservou 65. Cento e dezoito praias. Manteve, e sabe-se bem em que estado, 62. Das 24 enseadas e gamboas que rendilhavam as bordas da cidade, 15 sumiram completamente. Seu espelho perdeu 29,2% da superfície original. À sua volta moram agora 8,2 milhões de pessoas, que despejam diariamente em suas águas 10 toneladas de lixo e 340 toneladas de esgoto in natura. E isso numa cidade que tem devoção pelo banho de mar.
Na verdade, ela já nasceu pródiga. Testemunha de sua fundação, o padre José de Anchieta – que por sinal assistiria ao espetáculo do acasalamento de baleias na Baía de Guanabara – conta que logo no primeiro dia as tropas de Estácio de Sá, instalando-se aos pés do morro Cara de Cão, “começaram a roçar a terra com grande fervor e cortar madeira para a cerca”, sem “haver nenhum a que isso repugnasse”. Dois anos depois, esse núcleo original já se chamava Cidade Velha. A Nova se mudara para o morro do Castelo, num lugar que o pioneiro Mem de Sá considerou “mais conveniente”, porque “era de um grande mato espesso cheio de muitas árvores e grossas que se levou assaz trabalho em as cortas”. Do Castelo, berço histórico do Rio de Janeiro, ficou só o nome, preservado por uma esplanada, que ironicamente também se chama Castelo, como se houvesse castelos chatos. O morro, em si, que Pereira Passos começara a arrasar, acabou de ser desmontado na década de 1920, quando passou por lá a febre do Bota-Abaixo.
Não se faz impunemente uma cidade num terreno com tais atributos físicos que merecia ser reservado, intacto, para um parque nacional. Isso, é claro, se no século XVI, quando os portugueses vieram fincar no morro Cara de Cão o primeiro marco efetivo da colonização européia, a humanidade já tivesse uma idéia do que viria a ser uma unidade de conservação para uso indireto. Infelizmente, os parques nacionais são uma invenção tardia. Quando se disseminaram pelo mundo, no fim do século XIX, o Rio de Janeiro já tinha furado as barreiras físicas em que a topografia arrebatadora e a natureza exorbitante tentaram emparedá-la. O fato é que ela cresceu abrindo alas entre relíquias geológicas.
Sua gênese, contada pelo geógrafo Aziz Ab´Saber, parece uma candidatura à preservação ambiental.“Não se sabe com precisão quando, durante o Quaternário, essa estreita e maravilhosa passagem de velhos rios e mares se teria iniciado”, ele informa. “Entretanto, temos certeza de que, após ter sido rio, a Guanabara se tornou baía com a rápida ascensão do mar, entre 12.700 e 6.000 anos A.P. O afogamento do eixo principal do paleo-rio da Guanabara respondeu pela ampliação do embaiamento regional, enquanto as transgressões marinhas por entre morros e penedos empurraram areias e criaram condições para gerar restingas, tômbolos e praias maravilhosas que hoje constituem o diversificado sítio das cidades do Rio de Janeiro e Niterói”.
Resultado: quem caminha hoje pelas ruas planas do Centro pisa, provavelmente sem notar, como a cabrocha de Orestes Barbosa pisava os astros distraída, em lagoas entulhadas, pântanos drenados, nacos de mar conquistados por aterros, praias transformadas em solo urbano e morros desfeitos. Ou seja, numa paisagem que só pode ser pressentida nas ladeiras que acabam de repente, como a da Misericórdia, e nas velhas calçadas em curva, que um dia se plantaram na borda da baía e com o tempo foram parar no meio da cidade reticulada que os aterros criaram . Nelas, o contorno do litoral ficou impresso como memorial involuntário da orla perdida. Algumas dessas ruas merecem visitas nostálgicas. A Sacadura Cabral, por exemplo, que afundou no aterro da Gamboa e já se chamou São Francisco da Prainha. Que bonito nome – “São Francisco da Prainha!” Bonito e incompreensível para quem conhece a rua atualmente. Que Prainha? Há muitas outras assim. Até no outro lado da cidade, no coração da Zona Sul, por trás da praça do Jockey, ficou gravado no alinhamento dos prédios o recôncavo primitivo da lagoa Rodrigo de Freitas, que há muito tempo se afastou de suas portas.
Elas podem não parecer. Mas são pegadas da História que o carioca deveria incorporar com a máxima urgência a seu patrimônio coletivo. Reconhecê-las não leva ninguém, muito menos a cidade, de volta ao passado. Em compensação, ajuda muito a velar o futuro da orla que nos restou.
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