Um milhão e meio de hectares. Esta é a área do território de Mato Grosso que corresponde a ocorrência de plintossolos háplicos, um tipo de solo de origem mineral. Desde o ano passado, uma resolução aprovada pelo Conselho Estadual de Meio Ambiente (Consema) de Mato Grosso permite a drenagem desse tipo de área úmida para fins agrícolas e pecuários. A norma também permite a regularização de drenagens feitas antes da publicação da regulamentação, ou seja, aquelas instaladas de forma ilegal.
Além do licenciamento de drenos, a resolução nº 45/2022, em vigor há quatro meses, também permite em áreas úmidas mato-grossenses o licenciamento de atividades de baixo e médio potencial poluidor, conforme aquelas listadas na resolução nº41/2021 e no Decreto nº1.268/2022.
“A resolução fala em proteção de áreas úmidas, o título inicia com proteção. Qual é a proteção quando você fala para drenar? Você não está protegendo, você está na verdade destruindo essas áreas úmidas”, conta a ((o))eco Cátia Nunes da Cunha, pesquisadora sênior do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Áreas Úmidas (INAU).
Para o Ministério Público de Mato Grosso (MPMT), além de contrariar jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), a normativa viola a Convenção de Ramsar, tratado internacional e intergovernamental de proteção de zonas úmidas, do qual o Brasil é signatário desde 1996.
“Nós podemos perder muito breve 1,5 milhão de hectares de áreas úmidas porque a resolução permite a sua drenagem sem qualquer critério técnico”, disse na terça-feira (31) a promotora de Justiça do MPMT Ana Luíza Ávila Peterlini, durante o seminário Nascente, Veredas e Áreas Úmidas.
Em Mato Grosso, são classificadas como áreas úmidas, por recomendação do Comitê Nacional de Zonas Úmidas (CNZU) e reforçada por relatório técnico da Sema-MT, o Pantanal mato-grossense, situado na Bacia do Alto Paraguai (BAP); a planície de inundação do rio Guaporé, na região de Vila Bela da Santíssima Trindade (MT); a planície de inundação do rio Araguaia, na região leste do estado; e outras tantas áreas úmidas menores ainda não delimitadas no estado.
Dessas três grandes zonas úmidas mencionadas, porém, apenas a planície alagável do Pantanal não tem a sua área passiva de ser drenada ou utilizada para a instalação das atividades poluidoras, conforme aponta a própria resolução.
Primeira resolução, ignorada
Inicialmente, o grupo de trabalho (GT) responsável por normatizar o licenciamento ambiental de atividades e empreendimentos localizados nas áreas úmidas de Mato Grosso foi instituído pela Sema-MT em agosto de 2016. Composto por 11 servidores, o GT ouviu pesquisadores para publicar, em novembro daquele ano, um compilado das principais informações sobre o assunto.
O relatório concluiu que a drenagem podia trazer consequências para o abastecimento de água porque a abertura de drenos altera a dinâmica hídrica e acelera o escoamento da água, o que reduz o tempo de permanência ou interrompe a inundação. “Tais atividades ao longo do tempo podem comprometer a perenidade dos cursos d’água e alterar o funcionamento do ecossistema que passará de ambiente temporariamente ou permanentemente úmido para um ambiente seco”, dizia o documento.
Como parte do trabalho do GT, uma minuta de decreto chegou a ser apresentada à Sema-MT. Seria este o documento que iria regulamentar o licenciamento de atividades e empreendimentos em áreas úmidas. O governo do Estado, porém, não apenas não deu andamento à resolução – conforme aponta notificação recomendatória do MPMT – como também instituiu um novo GT, em 2020. Foi deste outro grupo que foi apresentada a minuta aprovada no ano passado pelo Consema.
“A atual gestão entendeu que deveria complementar a minuta anterior, quando, na verdade, ela não complementou. Ela simplesmente fez uma outra minuta que, ao invés de trazer proteção a essas áreas, permitiu a sua degradação porque permitiu a drenagem de áreas úmidas, que é uma das atividades mais danosas para essas áreas”, conta Peterlini a ((o))eco.
Diferentemente da resolução em vigor, que permite atividades de médio impacto em áreas úmidas, sem a distinção de serem ou não áreas de preservação permanente (APPs) ou de uso restrito, a resolução proposta pelo primeiro GT permitia apenas atividades de baixo impacto nessas áreas, ainda com a exceção daquelas situadas em APPs.
Também diferente da norma em vigor, a primeira minuta tratava da drenagem apenas nos casos de construção de estradas de utilidade pública ou de interesse social. Os dados são de inquérito instaurado pelo MPMT em 2018, e ao qual ((o))eco teve acesso.
Áreas úmidas e seus serviços ambientais
Áreas úmidas são fontes de serviços ambientais essenciais aos seres humanos. Entre eles, estão a própria disponibilização da água para o correto funcionamento do ciclo hidrológico e o fornecimento de alimentos. “Muitas sociedades, nós mesmos mato-grossenses, por exemplo, nos alimentamos muito dos peixes”, diz a pesquisadora sênior do INAU.
Em termos de serviços hidrológicos, essas áreas, sejam de lagos, pântanos ou brejos, também auxiliam no controle de inundações e de secas, o que reduz o risco de enchentes catastróficas. “Além de mitigar as inundações, as áreas úmidas promovem a recarga de água subterrâneas e regulam o fluxo dos rios”, explica Cunha.
Também figuram como serviços ecossistêmicos dessas áreas a retenção de sedimentos; purificação de água; adaptação à mudança climática pela grande capacidade de estocar carbono; disponibilidade de água para animais; regulação de microclima; manutenção da biodiversidade; entre outros.
A perda desses ambientes, conta Cunha, resulta, entre outras consequências, até mesmo na limitação da produção de alimentos pela escassez de água, o que já ocorre em muitas nações. “Pelo rebaixamento de lençóis freáticos e assim por diante, causado pela destruição de muitas dessas áreas úmidas”, comenta.
“Olhar míope” sobre zonas úmidas
Para o MPMT, a resolução em vigor no estado é absolutamente permissiva com as drenagens para fins agrícolas. “O que coloca em grande risco a manutenção e a existência desse ecossistema”, disse Peterlini, também na terça.
Com a justificativa de que o objetivo seria a proteção, o órgão defende que a regulamentação acabou permitindo a contínua degradação das áreas úmidas do estado.
Quando lista os serviços ambientais de áreas úmidas, por exemplo, a resolução cita apenas um deles, mesmo que se saiba que essas zonas são responsáveis por outras dezenas de benefícios para os seres humanos.
“Elenca apenas a estocagem periódica de água e a sua lenta devolução para os para os igarapés, córregos e rios. É um olhar muito míope sobre as áreas úmidas”, argumentou Peterlini, ao dizer que resta a impressão de que essas áreas são improdutivas. “Que não servem pra nada e que, por isso, nós temos que drená-las para tornar aquilo ali produtivo”, completou.
Por permitir ainda a solicitação de outorga para irrigação depois que a área úmida drenada tiver sido regularizada, a resolução se configura como uma dupla pressão contra áreas que deveriam ser protegidas. “Destrói a área úmida e depois pede a outorga para poder fazer irrigação. Isso não tem lógica, mas a lei permite isso”, conta Cunha.
Nota técnica irá rebater norma
Para minimizar os danos ocasionados pela resolução, o MPMT estuda formas técnico-jurídicas para tentar reverter a resolução em vigor. Nesse sentido, desde o ano passado o órgão elabora uma nota técnica, que deve ser publicada em breve.
A ((o))eco, a instituição adianta pontos que o documento irá abordar. Entre eles, está o risco de degradação e extinção de parte das áreas úmidas do estado pela drenagem em áreas com ocorrência de plintossolos háplicos, tipo de solo que como dito anteriormente é identificado em 1,5 milhão de hectares do estado. A informação é do Banco de Dados de Informações Ambientais (BDiA) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
O MPMT destaca que para drenos instalados antes da regulamentação, ou seja, que tinham sido feitos de forma ilegal, a resolução ainda amplia a permissão para regularização em todos os tipos de plintossolos, não apenas no háplico. Segundo o BDiA do IBGE, os plintossolos – háplicos, argilúvicos e pétricos – somam 8,3 milhões de hectares, ou 9,2% da área total do estado.
“Nós vamos ter uma perda muito grande de áreas úmidas. Se a gente já vem assistindo ao longo dos últimos trinta anos uma perda de 50% da superfície de água no Mato Grosso, nos preparemos para assistir com muito mais rapidez essa perda agora”, disse Peterlini sobre o tema, ainda no seminário de terça.
Outro aspecto que o documento também deve abordar é a lacuna sobre o tamanho dos canais de drenagem. Em algumas regiões do estado, por exemplo, drenos podem ser encontrados de dois até quatro metros de profundidade, com dois metros de largura, ou seja, canais que se tornam “verdadeiros rios”.
“Isso foi deixado para ser apresentado no curso do licenciamento, o que é um risco”, conta a promotora de Justiça do MPMT, ao enfatizar que esses parâmetros deveriam estar claros na resolução, e não terem sido deixados apenas para um eventual Termo de Referência (TR).
Convenção de Ramsar e jurisprudência do STJ
Além da Convenção de Ramsar, que determina que países signatários devem se comprometer a proteger suas áreas úmidas, o Brasil tem o Código Florestal, que define o que são essas zonas: “pantanais e superfícies terrestres cobertas de forma periódica por águas, cobertas originalmente por florestas ou outras formas de vegetação adaptadas à inundação”.
“Mas o que são pantanais? Como nós podemos identificar essas áreas pantanosas, essas planícies pantaneiras? Nós temos que ter uma definição técnica para isto”, indagou o MPMT.
Mesmo que a Convenção de Ramsar delimite isso, essa confusão ainda é uma lacuna a ser preenchida no Brasil. Isso porque, a depender da legislação, essas zonas são descritas com diferentes tipos de vegetação. Enquanto não se finda essa discussão, são os interesses econômicos que seguem ilimitados rumo a essas áreas, que terminam desprotegidas.
Tanto em Mato Grosso quanto no País, por exemplo, um inventário sobre as áreas úmidas existentes ainda está por fazer. “Hoje o INAU pegou isso como uma tarefa, mas na verdade é uma tarefa do Estado brasileiro porque o Brasil é signatário da Convenção Ramsar”, conta Cunha, ao dizer que uma das atribuições previstas pelo tratado é, justamente, a produção deste documento pelos países signatários, que deveria servir para nortear as medidas e políticas de conservação dessas áreas.
Em estudo publicado no ano passado, um grupo de pesquisadores propôs critérios para ajudar a delimitar e conservar as áreas úmidas do Cerrado, justamente por conta das dificuldades existentes no processo de delimitação dessas zonas.
No artigo, os cientistas destacaram uma decisão do STJ, que, para pacificar o assunto, estabeleceu que as áreas úmidas devem ser entendidas como protegidas, sejam elas APPs ou áreas de uso restrito. Para o MPMT, essa jurisprudência, na qual incide a drenagem de áreas úmidas normatizada em Mato Grosso, serve para chamar a atenção sobre o assunto.
“A decisão revela que como não existe com muita nitidez a diferença do que é ou não uma área úmida, se essa área úmida é uma APP, se ela é uma área de uso restrito, é a proteção ambiental que deve prevalecer”, diz Peterlini. Ou seja, neste caso em específico, deve ser aplicado o princípio do in dubio pro natura, ou traduzido do latim: na dúvida apoiamos a natureza.
A norma vigente em Mato Grosso ainda viola a Convenção de Ramsar, aponta o MPMT. Isso porque o tratado tem força de norma supralegal – acima da Lei. “Se existe alguma regulamentação, alguma norma, alguma lei que fira essa Convenção, isso também acaba sendo uma ilegalidade”, comenta a promotora de Justiça do órgão.
Para Peterlini, a Convenção não apenas protege e define o que são áreas úmidas, como também obriga os países signatários a proteger essas zonas. “Isso é um ponto que juridicamente o Ministério Público vai trabalhar para apontar os retrocessos ambientais que a resolução trouxe”, acrescenta.
((o))eco entrou em contato com a Sema-MT para questionar sobre os pontos apresentados na reportagem. O pedido ainda não foi respondido. O espaço segue aberto.
Impacto para a produção de água
Para a pesquisadora do INAU, a permissão para a drenagem de áreas úmidas em Mato Grosso deve trazer um impacto extremamente negativo em termos de produção de água. Isso porque é no Cerrado onde estão as nascentes de grandes bacias hidrográficas brasileiras. “Aqui nós temos o rio Juruena, Teles Pires, Xingu, Paraguai, e assim por diante”, comenta Cunha ao defender que essas são áreas que precisam da recarga de aquíferos e lençóis freáticos para a sua contínua produção de água.
A permissão para a instalação de drenos, conta a pesquisadora, significa a desconfiguração das zonas úmidas, o que compromete o funcionamento desse ecossistema. “A partir do momento que você drena, você mexe no funcionamento dessa área, ela deixa de ter a sua natureza funcionando”, enfatiza.
Segundo Cunha, as pequenas zonas úmidas de Mato Grosso já vinham sendo destruídas desde muitos antes da normativa que regularizou a sua drenagem. A principal diferença agora é esta: “Faltavam destruir essas grandes áreas úmidas e pra isso tá aí a nova resolução”, conclui a pesquisadora do INAU.
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