Reportagens

Inútil paisagem

Completando dez anos, estudo de fragmentos de Mata Atlântica no Rio demonstra que tamanho é documento: floresta pequena perde os bichos e não pára em pé.

Lorenzo Aldé ·
2 de setembro de 2005 · 19 anos atrás

Você está viajando de carro por uma estrada da região Sudeste quando, depois de vários quilômetros acompanhado apenas pela paisagem desoladora de pastos semi-abandonados e algumas plantações, vê surgir no alto de um morro uma bonita porção de verde. Nem tudo está perdido, poderá pensar. A Mata Atlântica ainda sobrevive, guardiã de pequenas amostras da natureza original do Brasil.

Que nada. O que você acaba de ver é uma miragem em pleno deserto verde. Encastelado no meio da devastação geral, aquele retalho já não serve para abrigar a maioria dos bichos que viviam ali. Quanto menor o mato, maior é a pobreza da fauna. Os primeiros a sumir são os grandes predadores, que além de precisarem de muito espaço para poder encontrar presas suficientes, reproduzem-se mais devagar. Onça-pintada, portanto, nem pintada. Depois vão-se os mamíferos de médio porte. Mesmo quando escapam dos caçadores, não conseguem manter seus hábitos e se reproduzir. Tamanduá ou capivara já é difícil achar. Restam os pequenos mamíferos – ratos, gambás ou cutias. Mas até para eles o destino mais provável é sucumbir ao aperto por problemas demográficos ou genéticos. E a escassez de animais também afeta as plantas que dependem deles para se reproduzir.

A maior parte dos 7% que sobraram da Mata Atlântica está assim, picotada em fragmentos pequenos. Preservá-los no estado em que se encontram não garante sequer seu próprio futuro.

Agora, a boa notícia: o país tem finalmente uma chance de entender como funcionam essas ilhas de floresta, com o projeto “Efeitos da fragmentação florestal sobre comunidades animais e vegetais na Reserva de Poço das Antas”, uma das únicas pesquisas na América Latina que tiveram fôlego de acompanhar, por um longo período de tempo, o comportamento das populações confinadas em áreas muito restritas. Em 2005, esse estudo feito por pesquisadores da Universidade Federal do Rio de Janeiro completa dez anos na Reserva Biológica de Poço das Antas, às margens da BR-101, no município de Silva Jardim, a 130 km do Rio de Janeiro.

Em 1994, o biólogo Fernando Fernandez tinha acabado de chegar da Inglaterra. Lá, terminara o doutorado sem conseguir realizar o estudo que queria, sobre os efeitos da fragmentação entre roedores. Fora aconselhado a desistir do projeto porque os bosques públicos eram cheios de trilhas e suas armadilhas para capturar os bichos na certa seriam roubadas. Mudou o assunto de sua tese – roedores sim, mas em florestas de abetos – mas não mudou de idéia sobre o que, a seu ver, é um dos mais graves problemas ecológicos do planeta. Ao se reencontrar com a Mata Atlântica, voltou a pensar na pesquisa.

Só faltava achar um lugar propício. Foi quando ele assistiu a uma palestra do professor Dionísio Pessamilio, na época diretor de Poço das Antas. Ao final de sua fala, Pessamilio lamentou que tão poucos pesquisadores se interessassem em estudar a região, e lançou à platéia o convite: “Alguém quer ir conhecer?”. Fernandez ergueu o braço, “Eu quero”. Chegando à reserva, subiu na torre de combate a incêndios e viu o cenário dos sonhos para um pesquisador obcecado pelos males da fragmentação. Oito pedaços de Mata Atlântica de tamanhos diferentes, o menor com 1,1 hectare e o maior com 30 hectares. “Era o que eu estava procurando”, conta Fernandez. Chamados de Ilhas dos Barbados, eles já foram de fato ilhas, pois ficavam nos morros que se elevavam sobre um brejo alagadiço que secou no final da década de 70, com a construção da represa de Juturnaíba.

Aos 33 anos, Fernando Fernandez era professor do Departamento de Ecologia da UFRJ — o primeiro do Brasil na área, inaugurado em 1969, onde ele se formara biólogo. Instalado provisoriamente no Laboratório de Vertebrados, escreveu o projeto da pesquisa em que buscava uma sala para criar seu próprio laboratório. Tinha ouvido falar na Fundação O Boticário, que patrocinava iniciativas de conservação da natureza, que patrocinava iniciativas de preservação, e mandou para lá a proposta que no meio acadêmico os colegas consideravam “megalomaníaca”. E tinham lá suas razões. Ela implicava estudar não um espaço florestal, mas oito, e não uma classe de animais, mas várias — mamíferos, insetos e aves.

Conseguiu emplacar o projeto quase ao mesmo em que abria o laboratório indispensável para executá-lo. Em 27 de janeiro de 1995, entrou em funcionamento o Laboratório de Ecologia de Populações, composto da seguinte infra-estrutura: um computador 386, uma impressora, dois biólogos e uma estagiária. No Uno de Fernandez, a equipe partiu para viagens mensais às desconhecidas Ilhas dos Barbados. A estrada só chegava até certo ponto, e mesmo assim tão aos trancos que o carro entortou o eixo traseiro, passando a andar meio de lado. Onde o Fiat “Caranguejo” parava, a turma saía a pé. Caminhando no mato com dezenas de pesadas armadilhas de ferro nas costas, sob sol escaldante, sob chuva torrencial, até chegar aos pontos de captura. Cada excursão à Reserva durava seis dias.

Ao fim de um ano, a equipe já tinha quatro biólogos e cinco estagiários, e o exaustivo trabalho de instalar e recolher armadilhas rendeu a captura de 44 animais. Eram gambás, cuícas, ratos-de-arroz, ratos-de-chão e camundongos. Sendo que este último nem é natural dali, foi introduzido pelo homem. Parece pouco? Para a biodiversidade, é mesmo. Mas, como objeto de estudo, é uma enormidade. Os pesquisadores se debruçaram em mapas, gráficos e fórmulas logarítmicas para começar a descrever a distribuição e as relações ecológicas de cada uma das espécies que sobravam nas áreas pesquisadas. Só no primeiro relatório do projeto, a equipe apresenta vinte comunicações científicas que enviou para congressos nacionais e internacionais sobre suas descobertas.

O estudo sobre aves não continuou no segundo ano, porque descobriram que elas conseguiam se deslocar entre os fragmentos e a parte mais preservada da Reserva. O dos insetos durou três anos. Enquanto isso, novos marsupiais eram encontrados – cuícas de espécies distintas e porco-espinho – e roedores também — cutia (foto), rato d’água, ratos silvestres. E a proposta de integrar estudos diversos não se perdeu. O laboratório abriu uma linha de pesquisa para analisar a ecologia da vegetação nos fragmentos florestais, e à medida que mais estudantes de graduação e pós-graduação eram recrutados, novos sub-projetos surgiam. Fernandez já previa e desejava essa multiplicidade de enfoques quando batizara o laboratório com uma definição genérica, “Ecologia de Populações”, sem focar num reino, ordem ou espécie.

Mas o nome original durou pouco. A causa foi um seminário que ele mesmo fez para seus alunos, sobre o artigo “A floresta vazia”, de Kent Redford. Com base nos registros de transações legais de animais e peles amazônicas em um porto peruano, entre 1962 e 1967, o autor somou os números de bichos subtraídos da floresta – de macacos (183 mil) a jacarés (150 mil), de porcos-do-mato (690 mil) a onças-pintadas (5 mil). Chegou ao resultado de 1,6 milhão de animais tirados da Amazônia, só naquele período, através de um só porto. Levando em conta que a caça ilegal costuma ser o dobro da legal e que a caça de subsistência é muito maior do que se pensa (uma família comum de seringueiros mata até 250 macacos durante um ano para comer), ele conduz o leitor para a terrível conclusão de que até a Amazônia, maior floresta tropical do mundo e com fama de ainda estar bem preservada, vive um grave esvaziamento ecológico sob as copas de suas árvores. O choque dessa notícia entre os alunos foi tamanho que levou Fernandez a rebatizar o laboratório. Virou Laboratório de Ecologia e Conservação de Populações.

A providência surtiu efeito. Entre seus 20 pesquisadores, não se ouvem discursos lamurientos sobre a degradação da natureza. Quando chamados a falar do assunto, dizem que a situação é grave com o entusiasmo de quem gosta do que está fazendo. Alexandra Pires, por exemplo. Uma das pioneiras do grupo, prepara tese de doutorado para a Unesp de Rio Claro sobre a dispersão das palmeiras nas Ilhas dos Barbados. Ela encontrou evidências de que roedores como a cutia, cuja população é muito pequena nos fragmentos, não conseguem mais desempenhar seu papel ecológico de coletar, carregar e enterrar as sementes de palmeira. As sementes estão apodrecendo aos pés da planta, sinal de que sua reprodução está comprometida. O que sente ao constatar o empobrecimento da fauna e flora na floresta? “Nunca tinha pensado nisso. Fico tão feliz de encontrar a evidência do que estou procurando”, ela responde. Seu trabalho é, então, pura pesquisa científica? “É, também”, diz ela, não inteiramente convencida. Enfim acha a explicação para o que sente: “Encontrar uma evidência como esta é ter um argumento para mostrar às pessoas. Mostrar o que acontece quando se destrói”.

O que acontece quando se destrói? O estudo da dinâmica das populações parte de duas perguntas básicas, que para serem respondidas levam anos, e ajudam a explicar muito sobre equilíbrio ecológico e conservação ambiental. Quantos animais de cada espécie vivem nos fragmentos, ao longo do tempo? E por que a população varia?

Além da pouca diversidade encontrada, a primeira constatação do projeto foi que as populações de cada espécie nos fragmentos eram muito reduzidas. Em média, de 8 a 15 indivíduos. Variações no perfil da população podem ser fatais. Foi o caso dos ratos-do-mato (Oecomys concolor), que eram freqüentes no início da pesquisa e, depois de alguns anos, acabaram extintos de dois fragmentos. Uma das hipóteses para isso é o desvio nas razões sexuais, verificado em um grupo de cuícas cinzas (Micoureus demerarae, foto), que tinha mais fêmeas do que machos em uma das áreas. Este é um grande risco para a reprodução de um grupo tão pequeno. Os estudos de ecologia tentam encontrar soluções para estimular uma maior produção de machos, de modo a compensar o desequilíbrio.

A área aberta que interliga os fragmentos florestais, chamada pelos cientistas de “matriz”, comporta perguntas intrigantes sobre a capacidade das espécies de se deslocarem de um fragmento para outro. Pela identificação dos animais, os pesquisadores descobriram, com surpresa, uma “meta-população” de cuícas cinzas. Catorze machos desta espécie foram flagrados em fragmentos diferentes, o que significa que circulam entre as matas isoladas. Foi a primeira vez que se comprovou uma meta-população de marsupiais neotropicais. Seria esta uma esperança de repovoamento de áreas pouco habitadas? Não necessariamente. Porque apenas os machos circulam. As fêmeas são territoriais, vivem para proteger os filhotes, e sabe-se que apenas um macho não pode fundar uma nova comunidade.

Outro estudo importante diz respeito ao chamado “efeito de borda”. Ele analisa a composição da vegetação de fronteira dos fragmentos, e vem constatando o progressivo empobrecimento biológico dessas áreas, provocado pelo fogo e pela excessiva exposição ao sol. Resultado: há fragmentos diminuindo, espécies de plantas invasoras favorecidas pelo desequilíbrio e sinais de um preocupante processo de desertificação.

Depois de cinco renovações de patrocínio da Fundação O Boticário da Proteção à Natureza e outras parcerias conquistadas nos anos seguintes, o Laboratório de Ecologia e Conservação de Populações chega à maioridade. Em dez anos, cerca de 60 pesquisadores já passaram pelo laboratório, que neste tempo produziu dois livros, 55 trabalhos científicos, nove dissertações de mestrado e duas teses de doutorado, 19 artigos de divulgação científica e três apostilas de curso. Outros cinco trabalhos estão no prelo.

Em 2004, foi aprovado um novo projeto, junto ao Fundo de Parceria para Ecossistemas Críticos (CEPF, na sigla em inglês), da ong Conservação Internacional, que resultou em três novas frentes de pesquisa. Uma para prosseguir com a análise da dinâmica populacional nas Ilhas Barbados, outra para estudar a criação de corredores ecológicos na região, e a terceira para entender a vida do gambá-d’água (Chironectes minimus), único marsupial aquático do mundo.

Entender para conservar, seguindo a receita que mudou o nome do próprio laboratório. “Nunca se fez tanto pela natureza quanto nas últimas décadas. Temos que reconhecer isso. Mas também nunca foi feito tanto estrago, e tão rápido. O balanço é o seguinte: estamos perdendo, mas poderia ser pior”, diz Fernandez. Pior seria nem dar à natureza a chance de mostrar o que pôs na nossa frente.


* Esta reportagem faz parte de um livro sobre os 15 anos da Fundação O Boticário de Proteção à Natureza.

  • Lorenzo Aldé

    Jornalista, escritor, editor e educador, atua especialmente no terceiro setor, nas áreas de educação, comunicação, arte e cultura.

Leia também

Notícias
20 de dezembro de 2024

COP da Desertificação avança em financiamento, mas não consegue mecanismo contra secas

Reunião não teve acordo por arcabouço global e vinculante de medidas contra secas; participação de indígenas e financiamento bilionário a 80 países vulneráveis a secas foram aprovados

Reportagens
20 de dezembro de 2024

Refinaria da Petrobras funciona há 40 dias sem licença para operação comercial

Inea diz que usina de processamento de gás natural (UPGN) no antigo Comperj ainda se encontra na fase de pré-operação, diferentemente do que anunciou a empresa

Reportagens
20 de dezembro de 2024

Trilha que percorre os antigos caminhos dos Incas une história, conservação e arqueologia

Com 30 mil km que ligam seis países, a grande Rota dos Incas, ou Qapac Ñan, rememora um passado que ainda está presente na paisagem e cultura local

Mais de ((o))eco

Deixe uma resposta

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.