Reportagens

Traficantes de peixes ornamentais lucram enquanto condenam espécie amazônica à extinção

Comercializado ilegalmente pela internet, cascudo-zebra atrai interesse de colecionadores da Europa, Ásia e Estados Unidos e prática tem aumentado risco do fim da espécie nativa da região

Leandro Barbosa ·
29 de agosto de 2023 · 1 anos atrás

São nas frestas entre as rochas na chamada Volta Grande do rio Xingu, em Altamira, cidade a mais de 800 quilômetros de Belém, no Pará, que o cascudo-zebra (Hypancistrus zebra), endêmico da região, vive a cerca de até oito metros abaixo da superfície das águas. 

Nas profundezas do leito do rio, a fêmea da espécie desova, aproximadamente, 20 ovos, que ficam sob a responsabilidade do macho até eclodirem. A espécie, pelo tamanho, não atrai a atenção de pescadores. Mas, além dos desafios naturais, como servir de alimento para outros peixes, o “zebra” enfrenta um adversário bem mais predador, o que colocou a espécie em risco de extinção: traficantes de peixes ornamentais da Amazônia.

Ao ser capturado, o peixe deixa a exuberância e grandeza de um rio amazônico para viver enclausurado em aquários em países como Colômbia, Peru, China e diferentes regiões da Europa. Estima-se que ao menos 100 mil cascudos-zebra são traficados anualmente. No mercado ilegal a espécie chega a custar U$ 200,00 para o consumidor final – aproximadamente R$ 1.000,00 (mil reais). Contudo, na ponta, um pescador ganha no máximo R$ 40,00 reais por indivíduo na venda a atravessadores, o equivalente, em valores atuais, a 8 dólares. 

Desde 2004, quando o peixe foi classificado como espécie criticamente ameaçada de extinção pelo Ministério do Meio Ambiente, o comércio do cascudo-zebra é proibido. Atualmente, ele está na lista vermelha de espécies ameaçadas de extinção do Instituto Chico Mendes, o ICMBio. 

O H. zebra também está na Lista de Espécies da Flora Ameaçada de Extinção do Pará entre as espécies ameaçadas de extinção como “Vulnerável”. A lista, de 2006, será atualizada, conforme anunciado este ano, o que pode alterar a classificação atual. 

Cachoeira do Jericoá, na Volta Grande do Xingu. Foto: Leandro Sousa.

Além disso, a pesca e venda ilegal levou a espécie à lista CITES, a Convenção sobre o Comércio Internacional de Espécies da Fauna e da Flora Selvagem Ameaçadas de Extinção, que tem o objetivo de assegurar que o comércio de animais e plantas não ponha em risco a sobrevivência deles no estado natural.  

Contudo, a proibição não conteve o mercado. O interesse de colecionadores pela espécie intensificou a sua captura, colocando a existência do cascudo-zebra ainda mais em risco. 

Para que milhares sejam levados para fora do país, outros milhares morrem no meio do caminho, em meio ao transporte irregular em sacos plásticos de 500 ml, com cerca de 60 ml de água e oxigênio parcialmente pressurizado. Os recipientes são fechados com elásticos e podem conter até 5 indivíduos em cada um deles. A maioria dos peixes já estão quase mortos quando a polícia ou fiscais ambientais conseguem apreender lotes ilegais de vendas. São poucos os que  conseguem resistir às longas viagens até seu destino final. 

Para o professor da Universidade Federal do Pará, Leandro Souza, uma possível solução para salvar o cascudo-zebra seria a regulamentação para a criação da espécie em cativeiro. Souza, que está à frente do grupo de pesquisa do CNPq “IctioXingu – Núcleo de Estudos em Sistemática, Ecologia e Conservação da Ictiofauna do Xingu”, explica que a proibição sem alternativas para o mercado de peixes ornamentais fez a busca pela espécie se intensificar, tornando a luta pela sobrevivência do zebra ainda mais difícil. 

“Não é para liberar a coleta selvagem, não. É liberar a criação. A tecnologia para isso não é difícil. E tem bons produtores no Brasil. Se você desse alguns indivíduos para eles, eles iam em poucos anos inundar o mercado com peixe de cativeiro”, afirma Souza.

Souza acredita que isso amenizaria a pesca ilegal e permitiria a reprodução do zebra. “Fica muito mais barato você comprar de um criador, do que você mandar o cara ir buscar em Altamira, com todo o custo que tem da coleta e mortalidade. A pessoa compraria do criador, não da natureza”, frisa o pesquisador.

Arte: Mapa Güllich.

Impacto no habitat

A construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte também influenciou para a diminuição da população de zebra. Antes da construção da usina, a captura da espécie se limitava a seis meses por ano, coincidindo com a estação baixa das águas. Contudo, a interferência do fluxo das águas do Rio Xingu, devido a barragem da usina, quase anulou o processo de inundação, permitindo a pesca do peixe durante todo o ano. A captura inclui equipamentos bem diferentes da pesca tradicional: mergulhadores utilizam compressores de ar e apanham o cascudo-zebra com as mãos, contando com a ajuda de uma vareta, que os empurra para fora do vão das rochas. 

De acordo com Souza, as alterações de habitat causadas pela barragem de Belo Monte tiveram impacto nas populações de H. zebra, mas não o suficiente para causar a extinção da espécie. “As populações remanescentes estão lutando para encontrar seu novo equilíbrio no regime hidrológico imposto em sua área de habitat após a operacionalização de Belo Monte”, afirma o pesquisador no artigo “Conservação e comércio do ameaçado Hypancistrus zebra, um dos peixes brasileiros mais traficados”. 

Apesar da resiliência do peixe, Souza explica que a população caiu drasticamente porque os aquaristas passaram a acreditar que tirar o zebra de seu habitat seria uma forma de protegê-lo dos impactos de Belo Monte. Segundo um levantamento feito pelo professor em sites e grupos de redes sociais de venda de peixes ornamentais, em vários países da Europa, América do Norte e Oceania, as postagens usam uma abordagem de que a prática estaria salvando a espécie, ao invés de justamente estar colaborando para seu fim. “Se eles vão destruir [o rio], por que é tão ruim tirar [o peixe-zebra] de lá?”, diz um dos argumentos favoráveis ao comércio da espécie por vendedores ilegais.

“Paradoxalmente, as tentativas dos aquaristas de salvar a espécie através da compra de exemplares selvagens é o que pode estar levando à sua extinção na natureza, dadas as condições ambientais atuais”, diz o pesquisador. “A existência de uma espécie é fruto de milhões de anos de evolução. Se você perder essa espécie, você perde milhões de anos de história. Além disso, toda espécie tem sua função ecológica. O zebrinha, por exemplo, come os invertebrados. Assim como ele serve de alimento para outros peixes maiores. Se você não tem mais ele, toda essa cadeia será prejudicada. Ele também é um bioindicador, a existência do zebrinha significa que o rio está saudável”, alerta Souza.

Caminhos do tráfico

De acordo com o artigo “Tráfico de Peixes Ornamentais na Amazônia Brasileira”, produzido por pesquisadores das Universidades Federais do Amazonas e Rondônia e do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia – INPA, entre janeiro de 2003 a janeiro de 2020, a Polícia Federal e o Ibama realizaram 98 apreensões de peixes ornamentais. O que corresponde a mais de 170 mil espécimes resgatadas no caminho para a venda ilegal. As cidades com o maior número de apreensões foram Manaus ( 42,9%), seguida de Altamira (10,2%), Tabatinga e Santarém (9,2%, cada) e Belém (8,2%). Outras nove cidades amazônicas registraram 20 apreensões.

Dentre as espécies encontradas, o cascudo-zebra lidera o ranking e esteve presente em 44,6% das apreensões, seguido da arraia jabuti (Potamotrygon jabuti – 23,5%), do acará bandeira (Pterophyllum leopoldi – 19,4%) e da aruanã negra (Osteoglossum ferreirai – 13,3%) – todas espécies amazônicas. 

O transporte mais utilizado pelos traficantes é o aéreo, por isso a maioria das apreensões ocorreram em aeroportos, nos quais Manaus, Belém e Santarém se destacam. Contudo, também foram realizadas apreensões nos rios Xingu, Javari e Amazonas e na Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá, no estado do Amazonas. Já pelo transporte terrestre, traficantes foram interceptados nas rodovias estaduais AM-070 (Novo Airão-Manacapuru, no estado do Amazonas) e  rodovia-PA 279 (São Félix do Xingu) e na rodovia federal BR-010 (Belém-Brasília), no Pará. Outras apreensões terrestres foram realizadas nas cidades de Santarém (PA), Manaus e Novo Airão (AM).

O estado do Amazonas é uma das rotas mais utilizadas pelos traficantes. Segundo dados da Polícia Federal, o crime é recorrente nas cidades de Tabatinga, Atalaia do Norte, Barcelos e Santo Antônio do Içá. Fora de lá, as cidades de Santarém e Altamira, no Pará, também são regiões marcadas pela coleta de peixes ornamentais destinada ao mercado ilegal. 

De acordo com a Polícia Federal e pesquisadores que estão debruçados sobre o tema e foram ouvidos pela reportagem, o principal aeroporto utilizado pelos traficantes é o de Manaus. De lá eles viajam com os peixes em malas para Tabatinga. Em seguida, os animais são transportados para Colômbia e Peru, onde são vendidos clandestinamente em lojas especializadas em aquarismo e despachados para outros continentes.O tráfico de peixes ornamentais também se vale de diversas plataformas online para venda e distribuição de espécies. Isso engloba sites, redes sociais e aplicativos de mensagens, onde traficantes se comunicam com compradores e efetuam transações. Uma breve pesquisa em sites de busca é possível encontrar este tipo de comércio ilegal.

Dener Giovanini, coordenador geral da Rede Nacional de Combate ao Tráfico de Animais Silvestres (Renctas), afirma que ao monitorar grupos de vendas de peixes ornamentais, a instituição identificou um fluxo alto de demandas em países como Japão, China, Singapura e Vietnã. “Países asiáticos, em geral, se destacam quando o assunto é a exportação de peixes ornamentais brasileiros”, afirma Giovanini. Contudo, países europeus como Holanda e Alemanha também estão no páreo quando se tratam de “espécies mais raras ou que ainda não foram descritas pela ciência, espécies que são desconhecidas”, reitera.

Em nota, a Polícia Federal disse trabalhar para a repressão do crime “por intermédio da Adidância Policial na Colômbia, além de cooperação direta pela Delegacia de Tabatinga e pela Superintendência Regional no Amazonas, em Manaus”. A PF também afirmou que “realiza trabalho de inteligência em relação às redes sociais e avalia tanto denúncias anônimas quanto identificadas, recebidas através de seus canais oficiais”. 

O Eco solicitou ao Ibama informações sobre a presença de servidores do órgão em aeroportos da região e os meandros enfrentados para a fiscalização e repressão ao tráfico de peixes ornamentais na Amazônia. Foram feitos contatos por WhatsApp, e-mail e telefone, porém o órgão não respondeu às solicitações até a publicação desta reportagem.

Negócio rentável

É dificil mensurar o quanto o mercado ilegal de peixes ornamentais fatura anualmente de forma isolada. Contudo, conforme relatório da Renctas, estima-se que a venda ilegal de animais silvestres movimente anualmente de 10 a 20 bilhões de dólares por todo o mundo. Estima-se também que o Brasil participa com cerca de 5% a 15% deste total.

Além de ser um sério fator para diminuição de populações naturais de espécies, o tráfico de peixes ornamentais corrobora com a exploração de populações tradicionais, indígenas e ribeirinhas no Brasil, enquanto os traficantes têm altos lucros com essa cadeia de exploração, as pessoas que habitam as áreas de onde os peixes são retirados raramente são recompensadas, sendo cooptados para uma prática que é, afinal, criminosa.

“Como a captura desses animais demanda experiência acerca das áreas onde os cardumes ou indivíduos solitários podem ser encontrados e os habitantes locais são aqueles que possuem as informações necessárias para a coleta, é comum que recrutadores do tráfico de animais os convença a pescar os peixes e vendê-los a essas mesmas pessoas”, afirma Antônio de Carvalho, especialista em tráfico de vida selvagem, da WCS Brasil.

Carvalho explica que a cadeia de comércio ilegal de peixes ornamentais, como qualquer outra cadeia de exploração da vida silvestre, apresenta preços que variam de acordo com o grau de especialização e sofisticação da operação. “A título de exemplo, enquanto o pescador ornamental chega a ganhar R$2 por cada peixe retirado da natureza, é muito comum que os traficantes lucrem muito mais em vendas no mercado ilegal”. E conclui: “Como as espécies amazônicas são muito cobiçadas no mercado internacional e as vendas online facilitam essa exploração, não é raro ver um indivíduo sendo vendido em websites especializados por valores que chegam a até mil vezes mais, em relação ao que recebe o pescador”, explica.

Para Giovanini, a sociedade desconhece a dimensão do tráfico de peixes ornamentais e os prejuízos que esse mercado traz para as espécies nativas do Brasil. Segundo ele, isso se deve a um imaginário geral que conecta o tráfico de animais silvestres a espécies mais conhecidas como primatas, araras, cobras, dentre outros animais. Além da ideia de que o peixe é apenas um produto de consumo.

“O Brasil é um dos principais exportadores de peixes ornamentais no mundo. É necessário transmitir isso para a sociedade, para que ela entenda o que está em jogo. De que este é um grupo de animais que está extremamente vulnerável por ser alvo prioritário dos traficantes internacionais”, diz Giovanini. 

A história foi produzida com o apoio da Earth Journalism Network

  • Leandro Barbosa

    Jornalista, com publicações nos jornais The Intercept Brasil, Ponte Jornalismo, Globoplay, El País Brasil, UOL, Yahoo, Agência Pública e na revista americana Atmos

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