Tal e qual o conceito “desenvolvimento sustentável” – divulgado pela primeira vez em 1972 durante a Conferência de Estocolmo, da ONU –, a expressão “transição energética” transformou-se numa panaceia híbrida de sentidos que governos, corporações, grupos ambientalistas e conglomerados de mídia usam para resumir a complexa crise ambiental pela qual passamos e da qual a mudança no clima do planeta é uma das faces mais mencionadas. A solução, assim, também exige um esforço muito mais heterogêneo e profundo do que “apenas” mudar o perfil energético do planeta, fundamentado na queima de combustíveis fósseis que emitem gases causadores do Efeito Estufa, transformam tempestades e furacões em fenômenos corriqueiros e fazem os termômetros variarem em velocidades nunca antes observadas.
Muito resumidamente, questionar a solução até certo ponto simplista foi o desafio a que se dedicaram nos últimos meses a Fundação Rosa Luxemburgo (FRL, mantida pela coalização partidária alemã A Esquerda) em conjunto com o Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade (CPDA) da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). O resultado foi o estudo “Em nome do clima: mapeamento crítico – Transição Energética e Financeirização da Natureza“, que foi lançado nesta segunda (11) em São Paulo e ainda será lançada no dia 18, na sede do CPDA, no Rio de Janeiro, e simultaneamente no canal do Youtube da FRL.
Os resultados da pesquisa estão na contramão das políticas governamentais, da maioria das entidades ambientalistas e até de empresas privadas e suas associações, que enxergam na crise climática um problema em si, apartado de um combo de problemas ambientais globais, e que pode ser resolvido através de mecanismos de mercado.
Logo na apresentação da pesquisa, a gravidade do problema apresentado como climático é analisada em sua amplitude: “As mudanças climáticas são fenômenos complexos e multifatoriais, atravessadas por questões estruturais, de cunho econômico, social, político e cultural da nossa sociedade e que estão inter-relacionadas, como a ruptura na unidade entre natureza e sociedade, o racismo, o machismo, o colonialismo e o modo atual insustentável de produção e consumo. Vivemos hoje uma crise ambiental em escala global. Desertificação, desmatamento e crise hídrica são alguns dos elementos em jogo, por exemplo, assim como as mudanças climáticas. Nesse sentido, traduzir uma crise ecológica e social multidimensional e complexa como as mudanças climáticas em toneladas de dióxido de carbono equivalentes (tCO2e) – que podemos medir, contar, possuir, precificar e comercializar – não só restringe a nossa visão em termos de ações verdadeiramente transformadoras, como permite que os atores e interesses por trás do atual sistema sigam sem ser contestados”.
Nas 281 páginas do estudo, as coordenadoras do trabalho – Elisangela Soldateli Paim, do programa energia e clima para América Latina da FRL, e Fabrina Furtado, professora do CPDA, que pesquisam questões ambientais sob o ponto de vista de grupos vulnerabilizados – e mais 10 pesquisadores aprofundam-se em questões que são assumidas superficialmente pela mídia, academia, corporações e governos.
“Essa transição fundamenta-se, em teoria, em estabelecer uma matriz energética que não seja dependente de combustíveis fósseis na geração de energia, firmando um alto investimento em formas de “energia renovável”, “energia verde”, “de baixo carbono” e/ ou de “energia limpa” – em especial solar, eólica e veículos elétricos”, avaliam.
“Na tentativa de compreender e as políticas e mecanismos sendo legitimados em nome de combater a mudança climática, é que não reduzem os desmatamentos e as emissões, não beneficiam as comunidades e estão gerando conflitos onde estão sendo (implementados) os projetos. Essa compensa e complementa o capitalismo extrativista o complexo hidro-agro-energético-mineral. A responsabilidade desse complexo é ocultada. Acaba acontecendo a apropriação privada de terras – e, quando não, a grilagem. Uma nova corrida global por terra e território. Políticas e projetos que não combatem as mudanças climáticas , mas geram outros problemas.
Abaixo, o resumo da entrevista simultânea com Elisângela e Fabrina:
((o))eco: O que motivou a realização do estudo?
Elisangela Soldateli Paim – (Este) É também um estudo que considera a existência do racismo ambiental como estruturante. Ou seja, o racismo e o patriarcado são fatores determinantes na distribuição desigual dos efeitos ambientais negativos, como também na criação das condições que permitem a existência e aprofundamento de um sistema econômico, político, cultural e ideológico baseado na destruição do meio ambiente e na expropriação de povos e comunidades negras, indígenas, camponesas e tradicionais, os grupos sociais que estão na fronteira de expansão do capitalismo extrativista, e que nos mostram que outro modo de vida é possível.
Fabrina Furtado – Há alguns anos vimos acompanhando os projetos de energia e de REDD. Recentemente, vimos sentido a intensificação de políticas e projetos sob esse guarda chuva de transição energética e de REDD em nível mundial e nacional. O mercado de carbono sendo aprovado, a ideia de transição energética sendo utilizada por diversos agentes, a expansão de projetos de Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação Florestal e um contexto de transição energética e de regulamentação para permitir seu avanço, institucionalidades sendo criadas no governo Lula. Decidimos investigar o que está acontecendo, dar nome e sobrenome aos agentes, com organizações denunciando os impactos das eólicas, ao mesmo tempo vendo a transição energética a partir da mineração, com o Estado e as empresas dizendo ’se vocês querem transição energética, a gente precisa de mineração, que é um projeto civilizatório’.
“Transição energética” é uma expressão vaga, como “desenvolvimento sustentável”. Qual deveria ser, na sua opinião, a definição de “transição energética”?
Elisangela Soldateli Paim – A perspectiva crítica dos grupos atingidos, de onde partimos, questiona o entendimento da energia como recurso natural explorável, dissociado das relações sociais, de classe, raça, gênero, e regional, além de outros marcadores de desigualdade, envolvidas em sua produção, em seu uso, na distribuição e manejo de seus efeitos. Estes questionamentos têm implicações, por certo, sobre os próprios usos da noção de transição energética. Quem domina esse processo? Onde estão os projetos? Quem se beneficia? Quais são seus efeitos, não só em termos dos “números climáticos”, mas para os povos e comunidades tradicionais cujos territórios estão nessa fronteira energética? O que está sendo feito em nome da transição energética e do clima? Mais do que transição, precisamos de profundas e necessárias transformações.
Fabrina Furtado – “Transição energética” é mais uma noção daquelas que, como “desenvolvimento sustentável”, os agentes se apropriam da crítica ambiental e climática e sendo os agentes não da construção do debate sobre mudanças climáticas. Ou seja: define os problemas de forma a conter neles as soluções, que não questiona o capitalismo extrativista , mas propõe formas de complementá-lo e compensá-lo . Isso está levando à ideia de uma ‘transição energética justa’ é a mesma coisa que dizer ‘tudo bem, queremos colonialismo e colonialidade, mas agora de forma ‘justa”.
Qual o espaço e o papel reservado ao assim chamado “Sul Global” na “transição energética?
Elisangela Soldateli Paim – Essa proposta de transição tem como premissa a inserção de países periféricos na cadeia global de valor como forma de combate à crise climática. Os países centrais buscam estabelecer uma agenda de “diplomacia verde” com países do Sul global, parte da perspectiva de que acabar com as mudanças climáticas é sinônimo de atingir as metas estabelecidas em seus planos nacionais e regionais, exportando para os países mais pobres os danos (socioambientais, fragmentação/destruição de territórios; aumento de conflitos, etc.).
Fabrina Furtado – Os países do Sul Global acabam reforçando o papel de inserção subordinada e dependente ao capitalismo global na geopolítica da transição energética.
Em 2024, o Brasil sedia o G20 e em 2025, a COP 30. Você percebe se essas duas oportunidades tem servido para sedimentar o conceito de transição energética que você critica? Como?
Elisangela Soldateli Paim – O termo “transição energética” foi capturado por empresas e governos há um bom tempo. O que é importante tornar visível é o que está acontecendo em “nome da transição energética”. Megaprojetos de energia eólica e solar estão impactando negativamente o ambiente e fragmentando territórios, portanto, destruindo modos de vida tradicionais no Nordeste do Brasil, por exemplo, mas em muitos outros territórios. Estes grandes empreendimentos não só geram diversos impactos negativos na sua instalação, mas também dependem de diversos minerais para a produção de equipamentos. E, assim, geram outros conflitos associados à mineração do cobre, do lítio e de elementos de terras raras, etc. Estes minerais são fundamentais nos processos de transição energética. Mais que nunca é necessário evidenciar as drásticas consequências impostas pela agenda do capitalismo verde, que recaem com profunda intensidade sobre os territórios atingidos pelos empreendimentos.
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