Análises

Há 20 anos narrando nossa tragédia dos comuns

O jornalismo ambiental praticado por ((o))eco precisa continuar, nem que seja para ser o redator da ata de fim do mundo

Daniele Bragança ·
29 de agosto de 2024

Pode não parecer, mas quando publicamos uma pequena nota sobre o reaparecimento de uma espécie que sumiu, ou sobre o desmatamento que tem empurrado espécies para as áreas urbanas, ou queimadas que varreram do mapa ninhos de araras azuis, estamos tecendo um fio que irá compor essa grande tela da contemporaneidade, cuja principal imagem é como homem se transformou em uma força capaz de modificar o planeta. Há 20 anos, esse site ia ao ar com esse objetivo: compor, um fio por vez, nota por nota, reportagem por reportagem, coluna por coluna, o cenário sobre o estado do meio ambiente no Brasil. 

Não é uma tarefa simples e nem sempre há carretel para puxar mais e mais linhas, mas tentamos. Por deficiências próprias do mercado jornalístico – e nossas também – algumas linhas são mais usadas, outras são deixadas de lado, no canto da sala, mas seguem lá, à espera de que a olhemos com mais atenção (eu juro que esse não é um texto sobre tecelagem).

O objetivo sempre foi ser o vigia da agenda ambiental. Discutir, analisar, denunciar e, acima de tudo, registrar para essa e a nova geração os caminhos que tomamos para preservar, ou não, a nossa vida na Terra. É o que fazemos. 

Esses caminhos são, na maioria das vezes, silenciosos. Uma floresta pode parecer saudável e estar completamente ameaçada, sem a presença dos grandes animais necessários para dispersar as sementes das grandes árvores. Embora por cima, pelos satélites, ou mesmo dentro dela, quando visitada por um leigo, essa floresta pareça bem, algo muito grave está acontecendo com ela e, sem uma intervenção, em alguns anos essa floresta deixará de existir, pois o equilíbrio e interdependência da fauna e flora foi quebrado. Como se conta a história de uma floresta vazia? Prestando atenção no silêncio e tendo fontes capazes de entender essa ausência de barulho. Há 20 anos, um grupo de jornalistas achou que o país precisava de um veículo capaz de se importar com esse tipo de história. Foi do espírito de ser voz e dar vozes às plantas e aos animais que ((o))eco foi fundado, em julho de 2004. 

Naquela época, 96 mil focos de calor haviam queimado a Amazônia Legal de 01 de janeiro a 27 de agosto (em 2024, nesse mesmo período, tivemos 75 mil focos na mesma região) e no fim daquele ano o desmatamento alcançou o recorde de 27 mil km². ((o))eco testemunhou a criação do PPCDam, que fez o desmatamento cair a níveis nunca vistos – chegou a menos de 5 mil km² em 2012 –, seu abandono e o retorno do desmatamento de grandes áreas e o mais recente resgate do instrumento, que já apresenta bons resultados – o desmatamento na Amazônia caiu ano passado e a tendência é manter a queda esse ano. 

((o))eco testemunhou a criação do ICMBio, a construção de grandes hidrelétricas na Amazônia e viu um sapinho virar a pedra no sapato do presidente da República. Acompanhou a sanção de grandes legislações ambientais, como a Lei da Mata Atlântica (2006), e a flexibilização de tantas outras, como o Código Florestal (2012). Esteve em inúmeras COPs do Clima e eventos de biodiversidade, acompanhou com lupa as mudanças institucionais do executivo federal, e contou, como poucos, a criação, implementação e ameaças às nossas unidades de conservação. O acervo conta com mais de 32 mil itens publicados, fora nosso trabalho no audiovisual, como séries, documentários e podcasts. Não é pouca coisa, porém queremos mais. 

A ideia de um jornal virtual que tivesse como única manchete o meio ambiente surgiu na mente do engenheiro florestal Miguel Milano, que convenceu o experiente Marcos Sá Corrêa de que esse era o produto jornalístico em falta na prateleira. Marcos se uniu a Kiko Brito e Sérgio Abranches e formou o nosso quarteto fundador que esteve à frente dessa empreitada nos primeiros anos – e cuja ideia original ainda persiste e persistirá. Não me alongarei nisso, porque quem nos acompanha conhece bem essa história (mas se você é novo aqui, por favor leia esse, esse e esse texto).  

O grupo conseguiu reunir um time de primeira de colunistas, como Maria Tereza Jorge Pádua, Fernando Fernandez, Suzana Pádua, Marc Dourojeanni, José Truda Palazzo Júnior e muitos outros, que não apenas deram visibilidade ao site em seu nascimento, como ajudaram a promover o debate no mais alto nível. Essa herança também se manteve e é o que celebramos no nosso aniversário de duas décadas completas.

Parece pouco do ponto de vista da história, mas é muito para um veículo que já nasceu digital e está narrando nossa tragédia dos comuns ininterruptamente. O termo vem de um artigo do biólogo Garret Hardin, publicado em 1968, que argumenta que quando um recurso natural está aberto para todos que desejem desfrutá-lo, ele normalmente será usado até o próprio esgotamento, mesmo que signifique prejuízo para todos. Hardin usou como exemplo um pasto público, mas a exploração comercial de peixes, madeiras nobres, caça, etc ensina que é o que normalmente acontece. É essa tragédia que o jornalismo narra todos os dias.

Quando falamos sobre uma mudança de lei que vai flexibilizar o tamanho das áreas de preservação permanente nas cidades, essa mudança beneficiará a especulação imobiliária, empreiteiros, políticos e lobistas, mas fará com que áreas que servem para proteger as margens dos rios da erosão e prevenir enxurradas sejam ocupadas. O prejuízo será da sociedade como um todo. 

A perda de milhões de hectares em florestas pouco estudadas na Amazônia brasileira faz com que centenas de espécies que nem sequer sabemos que existem desapareçam. Além da derrubada de floresta ser a maior causa das emissões de gases de efeito estufa do país, estamos perdendo novos produtos que poderiam ser usados na indústria cosmética, na farmacológica e na química, tudo isso para enriquecer meia dúzia. Isso sem contar toda a biodiversidade associada àquele espaço. De novo, a tragédia dos comuns está ali, sendo contada.

Mas não falamos apenas sobre perdas. Também falamos de esperança, alternativas, reconstruções. Além do fim do mundo, também narramos sobre pessoas que trabalham para adiá-lo. 

Essa é a essência do trabalho de ((o))eco que fazemos há 20 anos e que espero que possamos continuar fazendo por mais 20 e mais 20 e mais 20… 

A história não está escrita, o fim dela não é um destino dado. Queremos continuar contando essa história, do ponto de vista das plantas e animais e dos humanos que trabalham para mantê-las. E que esse esforço diário de ((o))eco, mais do que documentar a tragédia dos comuns, possa pautar o debate público, alertar e engajar as pessoas para juntos tentarmos adiar o fim do mundo.

Continuemos nossa ata!

As opiniões e informações publicadas nas seções de colunas e análises são de responsabilidade de seus autores e não necessariamente representam a opinião do site ((o))eco. Buscamos nestes espaços garantir um debate diverso e frutífero sobre conservação ambiental.

  • Daniele Bragança

    Repórter e editora do site ((o))eco, especializada na cobertura de legislação e política ambiental.

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