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Cães, gatos e mangueiras: a invasão biológica que ameaça as áreas protegidas

Levantamento de cientistas aponta a ocorrência de mais de 5.600 espécies exóticas invasoras de bichos e plantas em 561 UCs do país. Mata Atlântica é o bioma mais afetado

Duda Menegassi ·
7 de outubro de 2024

Espécies invasoras são uma grande ameaça à biodiversidade e, por definição, às áreas protegidas, cujo propósito é resguardá-la. E um levantamento recente soou o alarme: 561 unidades de conservação do Brasil possuem registros de espécies exóticas invasoras, num assustador total de 5.631 ocorrências. Os “forasteiros” incluem não apenas o famigerado javali, mas também os domésticos cães e gatos, além de árvores, como a mangueira, e até microrganismos, presentes em diferentes áreas protegidas no país. A Mata Atlântica é o bioma mais afetado.

Os resultados fazem parte de um estudo publicado no final de setembro no periódico científico Biological Invasions com o objetivo de criar uma base de dados sobre a ocorrência de espécies não nativas em unidades de conservação (UCs) e apontar caminhos e recomendações para mitigar essa ameaça.

“Registramos um aumento preocupante de 74% na ocorrência de espécies exóticas invasoras apenas nas unidades de conservação federais nos últimos 10 anos, comparado a um estudo de 2013”, destaca Ana Luiza Figueiredo, analista ambiental do ICMBio e mestranda no Programa de pós-graduação em Ecologia da UFSC, e uma das autoras do estudo.

Ao todo, são 327 UCs estaduais e 234 federais impactadas pela presença de espécies exóticas invasoras. O levantamento não incluiu as áreas municipais. A maior parte das áreas afetadas está situada na costa do país, nas regiões sul e sudeste, nos domínios da Mata Atlântica. Do outro lado da balança, o bioma amazônico foi o que apresentou menor número de invasores, mas os pesquisadores alertam que a baixa ocorrência pode estar associada à menor quantidade de estudos na região.

“Embora espécies exóticas invasoras já tenham sido identificadas em todos os ecossistemas terrestres e aquáticos no Brasil, nossa análise mostra uma concentração clara ao longo da costa, principalmente na Mata Atlântica, uma área de alta prioridade para conservação, mas com alta pressão antrópica, como urbanização, o que aumenta a propagação das espécies invasoras”, explica Michele Dechoum, professora da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e que também assina o estudo. 

O número de espécies invasoras, entretanto, pode estar subestimado, principalmente com relação a grupos como peixes e invertebrados, por falta de profissionais capacitados e estudos voltados para identificar estas espécies.

Para realizar o levantamento, os pesquisadores coletaram dados de 647 planos de manejo de unidades de conservação federais e estaduais no Brasil; da Base de Dados Nacional de Espécies Exóticas Invasoras do Instituto Hórus; do Sistema de Autorização de Pesquisa em Áreas Protegidas Federais (SISBIO); e uma planilha de uso interno do ICMBio. 

Plantas, peixes e mamíferos foram os grupos com mais registros de invasoras nas unidades de conservação. A lista dos invasores inclui 150 animais, 184 plantas – incluindo quatro samambaias e uma briófita –, três protistas e uma alga.

Entre os animais, cães e gatos domésticos estão entre os principais invasores, espalhados Brasil afora em mais de 200 e 100 UCs, respectivamente. Outro destaque é o pardal (Passer domesticus), nativo do Oriente Médio, e já presente em mais de 150 UCs.

“O controle dessas espécies invasoras é um grande desafio, pois envolve valores afetivos e conscientização da população que vive dentro e nos arredores das unidades de conservação, pois trata-se de espécies que podem causar bastante prejuízo à fauna nativa, por meio de predação, transmissão de doenças, competição por habitat e recursos”, alerta a professora da UFSC.

A lista dos forasteiros segue com outros animais comuns até mesmo em cidades: a abelha-europeia (Apis mellifera); a lagartixa-de-parede (Hemidactylus mabouia), de origem africana; o rato-preto (Rattus rattus), originário do sudeste asiático; o camundongo (Mus musculus), nativo da Europa e Ásia; e o pombo (Columba livia), cuja distribuição natural concentrava-se entre os continentes europeu, asiático e africano.

O javali (Sus scrofa), espécie invasora cujo manejo populacional através da caça é permitido no país, também aparece no topo da lista, com registros em mais de 50 UCs.

Já no reino das plantas, a mangueira (Mangifera indica), nativa da Ásia, é quem lidera as invasões pelo país, presente em mais de 100 UCs. Destacam-se ainda os africanos capim-colonião (Megathyrsus maximus) e capim-gordura (Melinis minutiflora); diferentes tipos de pinheiros (Pinus sp.) do hemisfério norte; e a goiabeira (Psidium guajava), que apesar de amplamente difundida no país, é originária da América Central. 

O levantamento também mostrou uma maior presença dos invasores em unidades de conservação de proteção integral, como parques, do que nas de uso sustentável, como reservas extrativistas. “Isso pode ser explicado pelo turismo e recreação, que são importantes vias de introdução de espécies exóticas”, comenta Michele Dechoum. 

Todas as informações compiladas pela pesquisa serão disponibilizadas para consulta num banco de dados georreferenciado. 

“Os dados de ocorrência sistematizados no estudo servem como linha de base para monitoramento do avanço das invasões nas unidades de conservação do país e para subsidiar tanto a elaboração de políticas, programas e regulamentações, quanto a definição de áreas e espécies prioritárias para prevenção e manejo, seja em nível regional ou local”, reforça a analista ambiental, Ana Luiza Figueiredo.

“As invasões biológicas são uma das principais ameaças à conservação da biodiversidade e uma questão transversal na gestão das UCs. Atividades comumente realizadas nas UCs, como recreação, educação ambiental, pesquisa, manutenção de estradas ou infraestrutura, entre outras, podem facilitar a introdução e disseminação de espécies exóticas invasoras”, reflete o artigo recém-publicado. “As áreas protegidas são importantes na prevenção e mitigação dos efeitos globais das invasões biológicas, agindo como reservatórios do patrimônio de espécies e ecossistemas nativos. No entanto, o estabelecimento de UCs não é suficiente, uma vez que as UCs precisam de estar integradas num sistema legal que garanta segurança, políticas e ferramentas para manter a sua eficácia”, completa.

  • Duda Menegassi

    Jornalista ambiental especializada em unidades de conservação, montanhismo e divulgação científica.

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