“O processo climático global foi capturado e não é mais adequado para o propósito“. Carta de ativistas e cientistas do clima
As denúncias sobre os riscos de que o lobby do petróleo viesse a obstaculizar a transição energética, manipulando conferências climáticas, vêm ocorrendo há alguns anos. Havia vários indicadores disso desde a COP 27 em Sharm-el-Sheik, no Egito, onde o número de lobistas do petróleo e gás presentes havia aumentado significativamente com relação à COP26, em Glasgow, no ano anterior.
A sequência de petroestados sediando as COPs é evidente. Depois das descaradas manipulações da coordenação da COP 28, a Conferência do Emirados Árabes, onde instalou-se um ambiente propício ao mercado de petróleo nos bastidores, a subsequente escolha do Azerbaijão denunciou um jogo de cartas marcadas, seguido pela mesma prática de articulação da coordenação para promover e expandir o setor de petróleo.
A escolha do Azerbaijão foi inadequada, fruto de um processo insólito e acabou por ser a gota d’água que demonstrou a necessidade de reforma das COPs, para que retomem seu objetivo de conter as mudanças climáticas.
A Rússia, um petroestado totalitário, vetou a Bulgária, e o Azerbaijão foi escolhido após negociar a soltura de militares da Armênia, o outro candidato, que assim se retirou do processo.
Al Gore, ex-vice-presidente dos EUA, que lidera uma lista de notáveis pedindo uma reformulação das COPs para livrá-las do conflito de interesses da indústria do petróleo, repreendeu o processo de escolha: “Uma das reformas que propus é dar ao secretário-geral [da ONU] uma palavra a dizer sobre quem hospeda as COPs, e não apenas deixar que vozes como a de Vladimir Putin determinem quem fica com esta, e deixar os petroestados do Oriente Médio decidirem”.
A máscara caiu. A coordenação da COP do Azerbaijão, já no primeiro dia, propôs e sacralizou o mercado de carbono sem critérios claros. Se isso é considerado por alguns como avanço, para outros é o sonho dos poluidores e das oil sisters, ao permitir a compra de indulgências a um custo menor do que se adaptar, permitindo a continuidade de suas atividades poluidoras.
Estudos recentes demonstraram que a efetividade e a eficácia deste processo têm sido baixíssimas. A Casa Real Britânica afirmou, há mais de uma década, que o baixo preço do carbono no mercado apenas serviria como escudo para poluidores não tomarem medidas reais de descarbonização.
O presidente do Azerbaijão, Ilham Aliyev, durante o desfile de pronunciamentos dos líderes presentes, afirmou que “o petróleo é um presente de Deus” e que os países “não devem ser culpados por tê-lo”.
O contexto da frase foi muito claro: o presidente estava acabando de criticar a oposição à expansão dos combustíveis fósseis como uma “campanha bem orquestrada de calúnia e chantagem” por “alguns políticos, ONGs controladas pelo Estado e mídia de notícias falsas em alguns países ocidentais”.
Aliyev aparenta desconhecer os fundamentos científicos que investigam as mudanças climáticas há meio século. Sequer leu os anais das conferências climáticas desde o seu início. Mas não foi mera ignorância. O fato atestou a ação do enorme lobby que capturou a direção das últimas conferências climáticas.
Mesmo enquanto se preparava para sediar a COP29, o Azerbaijão planejava uma grande expansão na produção de gás fóssil, e faz parte do “pequeno grupo de países que enfraqueceu sua meta climática”, dizem os analistas do Climate Action Tracker, que classificam seus planos como “criticamente insuficientes”. Poucos dias antes da cúpula do clima, o executivo-chefe da equipe COP do Azerbaijão foi flagrado em vídeo usando seu papel para promover acordos de combustíveis fósseis.
Mas a declaração de Aliyev e suas acusações foram absolutamente reveladoras de seus verdadeiros propósitos. Al Gore denunciou a farsa: “Acho um absurdo que esses países petrolíferos, que dependem tanto da venda contínua de petróleo e gás, sejam os anfitriões dessas COPs, porque é difícil não perceber que eles têm um conflito direto de interesses”.
Logo após o anúncio de que a COP29 seria no Azerbaijão, escrevi artigo apontando que “A realização de seguidas conferências climáticas em petroestados, países pouco democráticos e com péssimo histórico na área de direitos humanos como Egito, Emirados Árabes e Azerbaijão, vem comprometendo o principal elemento de transformação e controle social: a participação popular. Nestes países, a repressão política tem perseguido e calado vozes dissidentes. No Azerbaijão, por exemplo, não existe liberdade de imprensa. O país possui uma série de leis que impedem ONGs de operar livremente, sendo que a detenção por este motivo inclui tortura brutal”.
De fato, no período que antecedeu a COP29, ocorreram ao menos 30 prisões para tirar de circulação os principais críticos e denunciantes de irregularidades no setor de petróleo e violações de direitos humanos.
Mas as tensões geopolíticas vão além. As represálias a cidadãos franceses, pelo fato de a França ter apoiado recentemente a Armênia, são evidentes. Segundo o Le Monde: “Em dezembro de 2023, o judiciário do Azerbaijão prendeu um empresário francês, Martin Ryan, acusando-o de espionar para Paris. Em 2024, dois outros franceses, o grafiteiro Théo Clerc e o empresário Anass Derraz, também foram detidos por motivos políticos no Azerbaijão.
O Quai d’Orsay em setembro aconselhou os franceses a não viajarem para o país, “a menos que haja uma razão imperativa”, por causa do “risco de prisão, detenção arbitrária e julgamento injusto”.
O atual modelo com critérios deficientes para escolha de países-sede adotado pela ONU, que possibilitou a escolha do Azerbaijão para a COP29, está sendo profundamente questionado. Al Gore sugeriu que o secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, deveria participar do processo de seleção das cidades e dos presidentes da conferência. Ban Ki-moon, ex-secretário geral da ONU, afirmou que o processo da COP “não é mais adequado ao propósito”.
Em carta assinada conjuntamente com ativistas e cientistas do clima, como o ex-chefe do clima da ONU, Christiana Figueres, a ex-presidente da Irlanda, Mary Robinson, e o proeminente cientista climático Johan Rockström, foi pedido que haja critérios rigorosos para os países anfitriões e regras para garantir que as empresas “demonstrem compromissos climáticos claros antes de serem autorizadas a enviar lobistas para as negociações”.
Diz a carta: “Agora está claro que a COP não é mais adequada para o seu propósito. Precisamos de uma mudança da negociação para a implementação, permitindo que a COP cumpra os compromissos acordados e garanta a transição energética urgente e a eliminação progressiva da energia fóssil”.
Um ponto importante a esclarecer é que os lobistas das empresas de petróleo e gás participam das conferências na expectativa de bloquear e atrasar negociações climáticas sobre descabonização, já que isso retira perspectivas futuras e lucratividade do setor. “Pelo menos 132 chefes e funcionários de empresas de petróleo e gás foram convidados” para a COP29 pelo governo do Azerbaijão e “receberam crachás do país anfitrião”, afirma o The Guardian.
Os lobistas foram representados, em protesto de ativistas na COP29, como uma gigantesca cobra que se move nos corredores da conferência. Em Baku encontram-se pelo menos 1.773 lobistas convidados pelo governo do Azerbaijão, o que representa maior número de participantes do que as 10 nações mais vulneráveis juntas.
Às portas da COP28 que ocorreu nos Emirados Árabes Unidos, após ampla pesquisa sobre os planos anunciados das principais empresas de petróleo, apontei: “A eliminação não interessa à meca do petróleo. As oil sisters estão esperneando e seduzindo incautos para sobreviver, agarrando-se e contaminando espaços decisórios, mesmo às custas do sacrifício de vidas humanas, ecossistemas e biodiversidade. A Arábia Saudita, de forma negacionista, declarou que a Agência Internacional de Energia (AIE) das Nações Unidas, reconhecida pela qualidade de seu corpo técnico e científico, é “órgão político”. Os sauditas pretendem continuar a perfurar e a explorar petróleo em ritmo crescente”.
Caroline Brouillette, diretora executiva da Climate Action Network Canada, analisando a representação lobística da COP29, afirma que os lobistas atuam para o “estrangulamento” da diplomacia climática internacional.
Com relação à influência negativa do setor de petróleo em seguidas COPs, a carta dos cientistas e ativistas revela a ineficácia do processo atual: “O processo climático global foi capturado e não é mais adequado para o propósito”.
A carta pede, em linhas gerais, as seguintes reformas: melhorar o processo de seleção para as presidências da COP; reuniões menores, mais frequentes e orientadas para soluções; melhorar a implementação e a prestação de contas; garantir um rastreamento robusto do financiamento climático; amplificar a voz da ciência autorizada; reconhecer as interdependências entre pobreza, desigualdade e instabilidade planetária; e melhorar a representação equitativa.
Por fim, o documento reconhece que o Acordo de Paris e as decisões subsequentes das COPs estabeleceram uma base sólida para a estrutura política global sobre ação climática, e que devemos trabalhar juntos com urgência e propósito, transformando a COP do Clima para que ela possa tomar decisões estratégicas, orientadas para a ação e responsabilidade, para entregar a escala de ambição proporcional ao desafio definidor de nosso tempo.
Em apertada síntese, na percepção de especialistas e jornalistas, o processo necessita dos elementos basilares de gestão: democracia, isonomia, decisões informadas, eficiência e participação dos mais vulneráveis.
É vergonhoso que as Nações Unidas estejam omitindo tais princípios basilares dos critérios para a escolha das sedes e da dinâmica de funcionamento das cúpulas climáticas globais, vitais para a sobrevivência da humanidade.
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Muito obrigado, Carlos Bocuhy, pela coluna tão necessária e excelente. Alguém precisava dizer isso com toda a informação e toda clareza, como você fez. O lobby do petróleo está transformando as COPs numa farsa, e precisamos mudar isso urgentemente ou criar outra ferramenta para enfrentar a mudança climática, que já está aí, com consequência desastrosas para a biodiversidade, para a própria economia, e para as questões sociais. Espero que sua coluna ajude a plantar uma semente de mudança verdadeira, que estamos precisando tanto.