Em audiência pública no Supremo Tribunal Federal realizada na última 2a feira (25), o Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) apresentou dados técnicos e argumentos jurídicos detalhados que responsabilizam diretamente o governo paulista pela catastrófica crise ambiental no estado em 2024. Também estiveram presentes representantes do governo, como o presidente do IBAMA, Rodrigo Agostinho e a Secretária do Meio Ambiente, Infraestrutura e Logística do estado de São Paulo, Natália Resende.
A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 1201, sob relatoria do ministro Flávio Dino, coloca sob escrutínio constitucional a política ambiental do estado mais rico da Federação, acusado de negligência sistemática, desmonte institucional e de fazer opções orçamentárias questionáveis. Assim, busca responsabilizar o estado pelos danos catastróficos e sem precedentes causados pelos incêndios florestais que assolaram o território paulista, particularmente em agosto do ano passado, classificados pela relatoria como uma “verdadeira pandemia de incêndios florestais”.
Segundo dados oficiais do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), apresentados na sessão, agosto de 2024 registrou 3.612 focos de calor em território paulista – o maior número absoluto desde o início das medições sistemáticas em 1998. O dia 23 daquele mês tornou-se emblemático, com 1.886 queimadas simultâneas detectadas por satélites, número superior ao registrado em toda a extensão da Amazônia na mesma data. A qualidade do ar na região metropolitana de São Paulo, monitorada em tempo real pela agência suíça IQAir, atingiu níveis históricos de degradação, posicionando a capital paulista como a cidade mais poluída do mundo durante vários dias consecutivos, com índices classificados como “insalubres para todos os grupos populacionais”.
Os impactos ecológicos também foram profundos e duradouros. Conforme exposto pela deputada federal Luciene Cavalcante (PSOL) e o cientista político Juliano Medeiros, o Cerrado paulista – bioma crucial para a recarga de aquíferos e mananciais que abastecem o estado – “entrou em colapso”. Incêndios consumiram inclusive Áreas de Preservação Permanente (APPs), protegidas pelo Código Florestal.
A Defensoria Pública do Estado de São Paulo apresentou casos concretos ilustrando o impacto humano da crise. Na Terra Indígena Icatu, em Braúna, incêndio consumiu 15 hectares, resultando na hospitalização de 20 idosos e um bebê. Comunidades tradicionais relataram ausência de equipamentos e capacitação para prevenção e combate às chamas, enquanto proprietários rurais do entorno acessaram linhas de crédito emergencial. No Pontal do Paranapanema, a prática de queima de resíduos domésticos em quintais, decorrente da falta de coleta regular, resultou em incêndios acidentais que colocaram em risco mais de 10 mil famílias.

Trajetória de Desmonte Institucional
A tese central defendida pelo PSOL vai além de atribuir a crise a fatores climáticos eventuais, como os encontrados no período do enxame de incêndios. A argumentação sustenta que a tragédia foi, na verdade, o ápice de um processo histórico, deliberado e contínuo de desmonte da estrutura de proteção ambiental do estado de São Paulo, tornando-o incapaz de prevenir e responder a eventos extremos.
A narrativa traça uma linha do tempo que remonta à extinção de aproximadamente 100 escritórios regionais da antiga Secretaria do Meio Ambiente (Departamento de Proteção de Recursos Naturais – DPRN) no ano de 2007, um movimento que teria retirado a presença fiscalizatória do estado do interior.
Porém, o ponto mais crítico desse processo, segundo a ação, foi a dissolução do Instituto Florestal em 2020, durante a gestão do governador João Doria. Este instituto, destacou a deputada Luciene Cavalcante, possuía expertise técnica singular e era a base para o treinamento do Corpo de Bombeiros exatamente no combate a incêndios florestais. Sua extinção, seguida por “tentativas seguidas de destruição das carreiras dos pesquisadores ambientais”, representou uma perda irreparável de décadas de acúmulo científico e conhecimento aplicado.
Áreas que eram geridas por este órgão foram transferidas para a Fundação Florestal e, na visão do PSOL, abertas à exploração privada, inclusive para o plantio de espécies exóticas como pinus e eucalipto, o que ampliaria a vulnerabilidade ambiental do território. Paralelamente, avançou a alienação de imóveis pertencentes a institutos de pesquisa, como os vinculados à Agência Paulista de Tecnologia dos Agronegócios (APTA).
Já o orçamento do programa “São Paulo Sem Fogo” encolheu um ano após a maior catástrofe ambiental recente do estado – de R$ 3,3 milhões em 2024 para R$ 2,9 milhões em 2025. O dado ganha peso adicional quando contextualizado com a informação de que 70% das bacias hidrográficas paulistas foram atingidas diretamente pelas queimadas do ano passado.
Informações da Lei Orçamentária Anual (LOA) apresentadas na ação revelam assimetria nos investimentos. O Programa 2621 (Unidades de Conservação, Áreas Protegidas e Parques Urbanos) sofreu redução de R$ 258 milhões para R$ 153 milhões entre 2024 e 2025 – corte de mais de R$ 100 milhões. Em contrapartida, o Programa 2628 (Operação, Conservação e Segurança da Infraestrutura de Transporte Estadual) manteve investimentos superiores a R$ 1,7 bilhão anuais.
As Unidades de Conservação estaduais cobrem aproximadamente 47 mil quilômetros quadrados, enquanto a malha rodoviária pavimentada ocupa cerca de 4 mil quilômetros quadrados. Desta forma, o investimento na malha rodoviária é dez vezes maior do que o disponibilizado para a proteção de áreas ambientais, que são 12 vezes maiores em extensão territorial. Para o PSOL a escolha “traduz com clareza a hierarquia de prioridades do governo”.
Conflito institucional e pressões desenvolvimentistas
A fusão das pastas de Meio Ambiente com Infraestrutura e Logística em janeiro de 2023, criando a SEMIL (Secretaria Estadual de Meio Ambiente, Infraestrutura e Logística), foi apontada como geradora de conflito de interesses institucionalizados. A estrutura concentra sob o mesmo comando a fiscalização ambiental e a execução de grandes obras de infraestrutura, subordinando a agenda ambiental “à lógica da infraestrutura e da logística”, nas palavras da deputada Cavalcante.
Como exemplos concretos, foram citadas as rodovias Rodoanel Mário Covas e a nova Raposo Tavares, obras acusadas de avançar sobre áreas de mananciais estratégicas para o abastecimento de água, fragmentar corredores ecológicos essenciais para a biodiversidade e estimular processos de especulação fundiária e ocupação irregular em suas zonas de amortecimento. A ação também relaciona a crise a outras medidas estaduais, como a Lei Estadual nº 17.557/2022, de regularização fundiária – já alvo da ADI 7.326 no próprio STF –, que na prática, segundo apontado na sessão, “legalizaria áreas griladas e ampliaria a ocupação irregular de terras públicas” em zonas ambientalmente sensíveis.
Projeções científicas e urgência climática
Estudos do Instituto Geológico e da CETESB citados na ação projetam para São Paulo até 2050 um aumento de 6°C na temperatura média, expansão significativa na duração e intensidade das ondas de calor e virtual desaparecimento dos períodos de frio. O mesmo estudo citado aponta para redução drástica dos totais anuais de precipitação pluviométrica em grande parte do território – cenário considerado gravíssimo para a agricultura (base da economia paulista) e para o abastecimento de água da população.

Diante destas projeções, a negligência histórica do estado, somada aos cortes orçamentários recentes demonstram, argumentam os defensores da ação, que a política ambiental paulista é não apenas insuficiente, mas “incompatível com a sobrevivência digna das presentes e futuras gerações”, além de afronta direta ao artigo 225 da Constituição Federal, que estabelece o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado como bem de uso comum do povo.
O cientista sênior do INPE, Dr. Paulo Nobre, foi enfático: “Nós ultrapassamos 1,6°C de aquecimento global. Isso é um alarme de incêndio”. Ele explicou que a intensidade dos incêndios modernos os tornou praticamente incontroláveis pelas técnicas tradicionais. “O que combate o fogo hoje, ministro, é a chuva. Nossos brigadistas são devorados pelas chamas”.
O professor Marcos Buckeridge, da USP, detalhou a “regra do 30-30-30” – temperatura acima de 30°C, umidade abaixo de 30% e ventos acima de 30 km/h – que cria o cenário perfeito para a ignição e propagação explosiva do fogo. Ele clamou por investimentos massivos em ciência para prever com precisão onde e quando essas condições ocorrerão, permitindo ações preventivas.
Por fim, o alerta de que o estado de São Paulo abriga reservas de terras raras – minerais estratégicos para tecnologias avançadas – que seriam “alvo de interesse norte-americano declarado”. A menção ganhou contornos políticos adicionais pela crítica direta da deputada Luciene Cavalcante ao governador Tarcísio de Freitas, acusado de fazer “reiterados acenos e não criticar ameaças externas à nossa soberania e à nossa democracia”.
Defesa
Em sua defesa, o governo de São Paulo, representado pela Secretária de Meio Ambiente, Infraestrutura e Logística, Natália Resende, apresentou um contra-argumento baseado em volume de recursos e estrutura. Ela listou uma força tarefa com 29 divisões técnicas, 49 agências ambientais, 100 unidades de policiamento ambiental integradas e 152 áreas protegidas sob gestão, somando 4,7 milhões de hectares.
A Secretária destacou ainda a operação “São Paulo Sem Fogo“, que em 2025 conta com a adesão de 414 municípios, e enfatizou os investimentos em tecnologia, como o monitoramento de 3 milhões de km². O coronel Engel, secretário-chefe da Casa Militar, reforçou o argumento: “Nós estressamos o sistema de combate”. No auge da crise, o estado chegou a empregar 22 helicópteros simultaneamente de uma frota de 29. Ele também destacou que o orçamento de sua pasta para combate a incêndios saltou de R$ 17 milhões em 2023 para R$ 36 milhões em 2025.

O que esperar
O ministro Dino, em sua exposição inicial, conectou a ADPF a um conjunto mais amplo de litígios ambientais no STF, incluindo processos sobre Amazônia e Pantanal que já passaram pelo plenário e estão na fase de acompanhamento de planos de trabalho. O relator mencionou que “fatores climáticos” contribuíram para significativa redução de queimadas em 2025 em todos os biomas, embora tenha frisado ser “cedo para comemorações” dado que o risco permanece alto até setembro.
O PSOL requer formalmente que a Corte: reconheça a “insuficiência estrutural da política ambiental paulista”; determine a suspensão imediata de obras rodoviárias que avançam sobre áreas de preservação permanente e zonas de amortecimento; determine a restituição e recriação dos institutos de pesquisa ambiental extintos, notadamente o Instituto Florestal, o Instituto Geológico e o Instituto Botânico – e rejeite as alegações de adequação que venham a ser apresentadas apresentadas pelo governo estadual.
A decisão do Supremo nesta matéria poderá estabelecer um marco na jurisprudência ambiental brasileira, criando precedente para a responsabilização de entes federativos por crises ambientais e para a exigibilidade judicial de políticas públicas efetivas de combate às mudanças climáticas.
O processo segue em fase de instrução, com expectativa de julgamento ainda em 2025. O desfecho poderá influenciar não apenas a política ambiental paulista, mas todo o arcabouço de governança climática nacional, especialmente considerando que São Paulo responde por aproximadamente um terço do PIB brasileiro e possui inegável importância estratégica na implementação dos compromissos ambientais assumidos pelo país no Acordo de Paris.
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