Entre búfalos e arroz, Marajó busca saídas sustentáveis para a crise climática
Em Cachoeira do Arari, famílias investem em sistemas agroflorestais para resistir à seca e reduzir impactos da pecuária e da rizicultura
Reportagem por Alice Martins Morais

No Arquipélago do Marajó, no Pará, está o maior rebanho bubalino do Brasil. São mais de 460 mil cabeças de búfalos e 340 mil de bovinos, de acordo com dados de 2024 da Agência de Defesa Agropecuária do Estado do Pará (Adepará). Apenas no município de Cachoeira do Arari, são 42 mil bovinos e 52 mil bubalinos, sendo o 3º maior rebanho do arquipélago.
Dependendo da rota para chegar no município, o caminho pode reservar uma cena singular que exemplifica a relação da produção agrícola com o litoral. Assim como em viagens de carro é comum ver os bois nas fazendas, bem próximos da estrada, o gado também pode ser avistado da janela do barco, chegando em Cachoeira do Arari. Isso porque alguns animais são deixados livres durante um período do dia para tomar banho e beber água direto do rio.
Os animais dependem do abastecimento hídrico natural. Por isso, quando deixou de chover por quatro meses e a região enfrentou uma seca histórica no segundo semestre de 2023, a cidade de cerca de 25 mil habitantes foi abalada. Claudionei Lopes da Silva, que era o então secretário municipal de Agricultura e Abastecimento, deu entrevista ao ((o))eco na época, calculando que houve pelo menos 1,2 mil perdas no rebanho local, incluindo bois e búfalos. Além disso, o açaí e o abacaxi secaram. “Foi horrível. A gente via peixes, jacarés e capivaras que morreram com a seca. As pessoas também ficaram sem água, tivemos que providenciar ajuda humanitária para garantir esse abastecimento para as necessidades básicas dos moradores”, relata.
Mas o cenário não tem como culpado somente o El Niño, fenômeno atmosférico-oceânico, natural e cíclico, que altera as temperaturas. A alta vulnerabilidade climática de Cachoeira do Arari se deve pela baixa cobertura vegetal, segundo uma pesquisa de 2021, da Universidade Federal do Pará (UFPA). Em 2016, o município possuía um dos maiores índices de desmatamento do Arquipélago, conforme aponta outro estudo feito por pesquisadores da UFPA e do Ecomuseu da Amazônia. Ao longo de uma década, aproximadamente 56% do seu território foi desflorestado, como resultado da pecuária e da extração de madeira e mais recentemente a rizicultura.

E os efeitos são sentidos por todos que vivem, de algum modo, da terra. É o caso de Regina Ribeiro, que aprendeu como cuidar de uma lavoura ainda criança, na comunidade Bacuri. Acompanhava os pais, a princípio, e quando chegou no quarto ano do ensino fundamental, precisou parar os estudos porque não tinha colégio perto de onde mora. Depois que saiu da escola, passou a trabalhar direto na roça. “Mandioca, jerimum (abóbora), maxixe. Depois, passei a plantar milho, melancia, outras coisas”, lembra.
Hoje, aos 54 anos, é a única dos seis irmãos que permaneceu na agricultura familiar depois que os pais se aposentaram. Mas a jornada não é fácil, especialmente diante das mudanças climáticas. “Uns cinco ou seis anos atrás, mudei de lugar onde plantava porque a terra secou bastante. A área estava muito exposta ao sol e aí fui para uma parte mais alagada, onde plantei açaí, banana, macaxeira, cupuaçu, graviola. Fiz um plantio bonito”, recorda. Quando chegou a forte seca de 2023, no entanto, a plantação morreu. Ela não tinha sistema de irrigação e o que era uma área alagada não tinha mais água o suficiente. O que fazer? “Pensei em desistir, viu? Fiquei muito triste. Como eu ia começar tudo de novo?”, desabafa.
Foi nesse momento que apareceu um projeto para trazer esperança de novo: o Marajó Resiliente, da Fundação Avina, em parceria com o Instituto Belterra, IEB e Conexsus, com apoio do Fundo Verde do Clima (GCF). A iniciativa aposta nos Sistemas Agroflorestais (SAFs) diversificados nos quintais da população marajoara como solução de adaptação climática. Em outras palavras, transformar os quintais em pequenas florestas produtivas, capazes de garantir renda, recuperar o solo e proteger as famílias frente a eventos extremos como secas e enchentes.


Conhecimento técnico para ampliar a produção
“A gente trabalhava sem conhecimento. Já estou com uma faixa de um hectare já plantado, está dando certo. Agora, está tudo misturado. Fui colocando andiroba, banana no meio, está muito bom. Sou muito grata ao projeto porque é uma forma da gente voltar a reflorestar, e é tudo que nossa região precisa”, declara Regina. A produtora é também multiplicadora do projeto, já tendo alcançado mais 24 pessoas a fazerem o mesmo nos seus quintais – a comunidade onde vive abriga cerca de 170 famílias.
Ela confessa que não é uma tarefa fácil convencer os colegas a mudarem o modo de plantar com o qual trabalharam a vida toda. “Mas com jeitinho, conversando, eles vão entender que são outros tempos e a gente tem que se adaptar”, diz.
Atualmente, essa produção dos agricultores familiares não apenas enche a mesa de suas casas, como é vendida na feira local e abastece a merenda escolar municipal, através do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE).

Para chegar até o formato de trabalho, a Avina se baseia em estudos científicos. Um deles avaliou como comunidades ribeirinhas e indígenas já vêm adaptando suas práticas diante das mudanças climáticas. Pescadores-agricultores relatam aumento das enchentes na várzea alta e, como resposta, diversificam os cultivos, ampliam a agrossilvicultura do açaí para áreas mais elevadas e transferem parte das roças para a terra firme, usando sementes de açaí como cobertura para manter a umidade do solo. Além disso, identificaram espécies de árvores, palmeiras e arbustos capazes de conter a intrusão da água salgada nos cursos d’água, fortalecendo a resiliência local.
No caso de Cachoeira do Arari, o projeto teve que considerar suas especificidades geográficas. Se a primeira imagem que normalmente se tem da Amazônia é de florestas, o município foge à regra e faz parte da pequena parcela do Pará classificada como “Amazônia não florestal”, conforme análise do Amazônia 2030. É uma parte da região que tem uma cobertura florestal abaixo de 50%. Cachoeira faz parte dos campos naturais do Arquipélago do Marajó.
De acordo com o Amazônia 2030, esse é um ambiente propício para oportunidades econômicas de sistemas agroflorestais, praticando agricultura de baixo carbono, justo como faz o “Marajó Resiliente”. “Estamos trabalhando principalmente com áreas de várzea e o carro-chefe principalmente é o açaí”, informa Lanna Peixoto, coordenadora do projeto. No total, até agosto deste ano o projeto tinha 08 multiplicadores e 182 beneficiários inscritos em Cachoeira do Arari.

Quintais como pilar para enfrentar as pressões econômicas
A comunidade remanescente de quilombo do Gurupá também está envolvida no “Marajó Resiliente”. Essa é uma área de mais de 10 mil hectares, onde vivem mais de 900 pessoas, como o professor Rosivaldo Corrêa. “Estamos nessa luta de melhorar as práticas do extrativismo e da cultura do açaí. Sabemos que a monocultura não é benéfica”, afirma.
Para ele, aumentar a resiliência do solo e das plantações ajuda não apenas na renda e no meio ambiente, mas em assegurar à população mais ferramentas para enfrentar as pressões locais: em especial, a cultura de criação de búfalos e da rizicultura (cultivo do arroz). “Não é fácil. A cidade está sitiada com o empreendimento do arroz e a cidade toda sofre, porque é cortado pela estrada que dá acesso à base do município, então a fazenda impacta a todos”, denuncia.

A principal Fazenda se chama Espírito Santo e é de onde sai o arroz da marca “Acostumado”, vendido na região metropolitana de Belém e Santarém. Está bem no centro do território de Cachoeira, ao lado da rodovia estadual que as comunidades mais afastadas usam para chegar à sede da cidade. “Não preciso ser especialista para perceber que a água sai de lá contaminando [de agrotóxicos] o rio”, argumenta Rosivaldo.
A rizicultura em larga escala no Marajó começou em 2010, quando o ruralista e ex-deputado federal Paulo César Quartiero comprou milhares de hectares em Cachoeira do Arari. Quartieiro é conhecido por ter sido condenado, em 2021, a pagar R$200 mil por liderar um ataque a indígenas na Terra Indígena Raposa Serra do Sol (Roraima) em 2004. Em 2008, ele chegou a ser preso após confronto com indígenas dentro da terra indígena.
Sua fazenda em Cachoeira do Arari tem mais de 12 mil hectares, o equivalente a 12 mil quintais como os de Regina ou um território maior do que Vitória, capital do Espírito Santos – e a fazenda produz cerca de 28 mil toneladas de arroz por ano, além de derivados. Em 2024, a propriedade foi embargada, alvo de operação ambiental que aplicou mais de R$ 1 milhão em multas por atividades irregulares, uso de agrotóxicos e impactos a comunidades locais, reacendendo críticas ao modelo de expansão do agronegócio na região.
“Desde que chegou esse arroz aqui, morreu muitos animais selvagens que a gente via pela estrada de Cachoeira. Tatu, paca, veado… Aonde tinha mato, eles tiraram tudinho. É uma verdadeira invasão”, denuncia Regina Ribeiro. No Mapa de Conflitos da Fiocruz, a avaliação é de “o projeto da Federação de Agricultura e Pecuária do Pará (Faepa) – com apoio do Governo do Estado do Pará – de transformar a Ilha de Marajó em um Polo de Rizicultura vem trazendo transtornos à população local”. Regularizar a posse de terra é também uma das recomendações do Amazônia 2030 para promover a sustentabilidade na região.
Após a publicação desta reportagem, o Grupo Acostumado, através da Fazenda Espírito Santo – Marajó, enviou nota informando que opera sob uma gestão comprometida com práticas ambientais e sustentáveis, e que não mantém vínculo administrativo ou societário com o Sr. Paulo César Quartiero.
“Há 15 anos, o Grupo Acostumado atua na região de Cachoeira do Arari, no Marajó, com uma administração que investe em agropecuária, ciência, cultura, projetos sociais, além da geração de emprego e renda, impactando positivamente mais de 250 famílias das comunidades próximas. Nossa operação conta com compromisso ambiental assumido junto aos órgãos competentes e comunidades locais”.

Secretária de Meio Ambiente diz que está arrumando a casa na nova gestão
A engenheira sanitária e ambiental Nazaré Amador assumiu em janeiro deste ano a Secretaria Municipal de Meio Ambiente e se deparou com diversos desafios. Um deles foi as denúncias da comunidade em relação aos agrotóxicos. Em resposta, ela diz que a Secretaria fez uma visita de fiscalização surpresa há alguns meses e verificou que a fazenda do arroz Acostumado tinha todas as licenças do Estado do Pará e do Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa), e que cumpria as condicionantes exigidas. “Hoje, a empresa já está usando o drone [no lugar do avião] para evitar [espalhar veneno] à deriva”, constatou. Caso algum cidadão suspeite de estar sofrendo impactos na saúde por conta dos agrotóxicos, a secretária recomenda buscar unidades de saúde e solicitar que seja examinado e se tenha um laudo.
Outra questão foi a falta de estrutura do próprio órgão público, desde o escritório que, segundo ela, estava sucateado, até a falta de histórico formal sobre clima. “Nós não temos registros oficiais de órgãos sobre as secas dos anos anteriores, por incrível que pareça, nem temos mecanismos, por exemplo, para retirada de animais que morreram pela seca ou que ficaram presos na lama por conta dos alagamentos. Sentimos os efeitos das mudanças climáticas, mas não temos os serviços necessários, nós contamos muito com a parceria com nossos municípios ‘irmãos’”, contextualiza, referindo-se a Soure e Salvaterra, cidades vizinhas.
A equipe da Secretaria é composta por sete pessoas, sendo apenas dois engenheiros (incluindo Nazaré). De acordo com a secretária, o apoio da Fundação Avina tem sido fundamental não apenas para os SAFs, mas também como orientação para montar um plano de arborização e de saneamento/gestão de resíduos sólidos. Entre as principais atuações no momento, estão educação ambiental nas escolas focando em temas relacionados que possam ser cobrados no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) e conscientização sobre como separar os resíduos em casa, preparando para uma futura política de coleta seletiva. “Estamos em ano de COP [Conferência das Partes] em Belém e nossos alunos precisam entender não só o que é esse evento, mas entender o que está sendo discutido por lá e como afeta nosso Marajó”, acentua.

Repondo as perdas das secas e pensando no futuro
Em paralelo, a secretária está construindo um viveiro de mudas para dar suporte aos SAFs – não apenas os do projeto da Avina. “Por conta dos incêndios dos anos anteriores, o carro-chefe é o açaí, que as pessoas estão pedindo para repor as plantações. Outra espécie é o cacau, além de florísticas para arborização da cidade”, descreve. Por fim, Nazaré conta que está articulando parcerias com a Escola Agroindustrial Juscelino Kubitschek de Oliveira, em Marituba, para capacitar os produtores locais com técnicas de plantio de hortaliças em bancadas de areia suspensas, como uma medida de contornar os desafios de plantar em uma região que parte do ano fica alagada.
Para além dos SAFs diversificados nos quintais, a Fundação Avina atua com governança climática. “A Prefeitura de Cachoeira sempre foi muito presente no projeto, desde a gestão passada até agora. Estamos fazendo uma ponte com o Ministério do Meio Ambiente para inserir os três municípios [Cachoeira e os vizinhos Soure e Salvaterra] no programa AdaptaCidades”, explica Lanna Peixoto.
Basicamente, as cidades que participam dessa iniciativa federal conseguem um apoio para elaborar seus planos municipais de adaptação, uma tarefa que muitas vezes é difícil a nível local, pois demanda capacitação técnica e acesso a dados que nem sempre estão disponíveis. “No caso desses três municípios, mas principalmente Cachoeira do Arari, tem desafios fortes históricos, seja de segurança fundiária ou de acesso à água potável, por exemplo, que impactam na questão climática”, reforça. “Então, como vamos falar sobre a necessidade de irrigação para os SAFs se a própria população tem dificuldade de acessar água potável em alguns locais?”, chama a atenção.
Para interligar os SAFs e a adaptação climática, de uma forma geral, a coordenadora do projeto acredita que é preciso fortalecimento comunitário, ou seja, trocar o individual pelo coletivo. “É a gente fortalecer a ideia de que os cultivos diversificados diminuem a vulnerabilidade do agricultor e trabalhar em conjunto vai ser mais fácil de enfrentar os problemas relacionados ao clima. Menos monocultura e mais diversificação, para fortalecer a própria permanência do pequeno agricultor na sua área”, conclui Lanna.
Até 2029, a Avina espera implantar 800 hectares de sistemas agroflorestais nos três municípios, atendendo a pelo menos 800 famílias agricultoras. “É o meu sonho ver o nosso Marajó bem reflorestado. Teve muito desmatamento, invasão. Quero ver nossos frutos dando bem e nossos lagos voltarem a ficar cheios de peixe como antigamente”, reflete Regina.
*Atualizado às 11h50 do dia 24 de outubro de 2025 para acrescentar o posicionamento do Grupo Acostumado, proprietário da Fazenda Espírito Santo – Marajó.
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