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A desintegração em debate

Nada melhor para quem tem dúvidas sobre a transposição do São Francisco do que comparar o que dizem sobre o projeto o ministro e o Ministério da Integração.

14 de outubro de 2005 · 19 anos atrás
  • Marcos Sá Corrêa

    Jornalista e fotógrafo. Formou-se em História e escreve na revista Piauí e no jornal O Estado de S. Paulo. Foi editor de Veja...

Antes de cumprir a promessa que fez a Dom Luiz Flávio Cappio de reabrir o debate sobre a transposição, bem que o governo poderia treinar em casa, começando pela pergunta básica sobre o estado de saúde do São Francisco. O rio está mesmo em boa forma para doar água aos estados mais secos do Nordeste?

Não, disse esta semana o ministro da Integração Nacional Ciro Gomes. Numa das entrevistas mais esclarecedoras que o governo já deu sobre o assunto, ele reconheceu mais uma vez que “o rio está muito ferrado”.

Sim, disse o site do Ministério da Integração Nacional, que Ciro Gomes comanda. Nessa página oficial, “o Rio São Francisco ainda é um rio muito saudável e pujante”. Sinal de que o projeto, se é polêmico aqui fora, também não está muito integrado lá dentro da Integração. Ou não sairiam da própria equipe que se encarregará das obras duas respostas tão divergentes para a mesma pergunta preliminar.

Pelo visto, Cappio fez um favor ao governo. Deu-lhe a chance de rever o que ministério anda dizendo do projeto que, na internet, atende pela alcunha de “Revitalização e Integração”. Apresentado em forma de diálogo, para dirimir as dúvidas mais comuns sobre a transposição, o questionário não poderia ser mais peremptório onde o ministro vacila. Por exemplo, quando se trata de saber se o rio “precisa ser revitalizado”.

Sim, diz o ministério. “E isso já está acontecendo”, por conta de um impressionante “programa coordenado pela Ministério do Meio Ambiente, com a participação do Ministério da Integração Nacional e da sociedade sanfranciscana”. O pacote de medidas ambientais “contempla ações voltadas para o reflorestamento de áreas críticas, a construção de barragens em rios afluentes, o tratamento de esgotos das cidades e vilas localizadas nas suas margens, o controle da irrigação e a educação ambiental”.

Só o Ministério das Cidades dispõe de R$ 620 milhões para levar água e saneamento a 86 municípios da bacia do São Francisco. São, no conjunto, “ações para a melhoria das condições de vida das comunidades ribeirinhas”. Mas essas populações devem estar mal-informadas. Outro dia mesmo, apareceram nos jornais, reclamando que as águas do rio, destinadas a aplacar a sede de lugares situados a mais de 300 quilômetros de seu leito natural, ainda não chega a cidades que ficam a 500 metros dos barrancos.

Mas, no site, parece tudo resolvido. Ele desfralda as intenções do governo no Rio São Francisco como se elas não fossem promessas políticas ou apostas no futuro, mas providências concretas, como se tudo que consta da página já tivesse acontecido, ou estivesse para acontecer nas próximas semanas, numa erupção tardia de eficiência administrativa. Ali se afirma que o governo gastou R$ 26 milhões com a revitalização no ano passado. E em 2005, que acaba daqui a dois meses e meio, “esses investimentos serão de R$ 100 milhões, só na área dos Ministérios da Integração Nacional e do Meio Ambiente”.

O que tem a dizer o ministro sobre a revitalização? Ela está tão adiantada como informa o ministério? Não. Na entrevista que deu ao jornal O Globo no fim de semana passado, Ciro Gomes admitiu, sem papas na língua, como é de seu estilo, que a parte mais fraca do projeto até agora é sua “agenda pouco positiva da revitalização do rio”, como vem dizendo “um ambientalismo sério e bem intencionado”. Parece que alguém, em Brasília, não está lendo o que o outro publica.

É pena, porque o ministério teria muito o que aprender com o ministro para o debate sobre o São Francisco. Ele até reconhece os riscos de se lançar um projeto tão complexo, orçado em R$ 4,5 bilhões, numa hora em que o presidente Lula tem pela frente catorze meses de um mandato turbulento e crivado de inquéritos sobre sua probidade administrativa. Mesmo correndo muito, ele não poderá inaugurar a obra até o fim do governo. Metade da empreitada, na melhor das hipóteses, caberá ao próximo governo. E se Lula, em queda de popularidade, perder a eleição, a obra pára? “Depende de quem for eleito”, disse ele.

Bom motivo para não iniciá-la. Há maneiras mais sérias de se fazer até obras eleitoreiras. Se o presidente acredita que a maioria absoluta da opinião pública torce pela transposição, pode se candidatar no ano que vem como candidato a realizar o projeto. Vencendo, ninguém duvidaria que ele tem mandato para usar a água do São Francisco. O rio daria uma boa peça de campanha, num eleição em que provavelmente não lhe sobrará muita coisa para anunciar em palanque. Perdendo, pouparia ao país um buraco abandonado pelo sucessor no meio do semi-árido.

Agora não há clima no céu nem na terra para mexer em tanta água e tanto dinheiro. Sangrar o São Francisco no momento em que os rios da Amazônia murcharam por dois meses de estiagem é mau agouro. Há qualquer coisa acontecendo no planeta que certamente não entrou nas contas dos relatórios de impacto ambiental no São Francisco, mesmo se, ao contrário do que presume a liminar contra a licença do Ibama, ele foi bem feito. E o governo Lula, francamente, virou mixórdia. O próprio Ciro Gomes confessou que a política brasileira nunca foi tão “ruim, desqualificada, analfabeta, sem espírito público, corrompida e sem escrúpulos”. Pois é. A oposição não diria melhor.

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