Reportagens

Precisa-se de limite

Deputados de Mato Grosso propõem redução de 50 mil hectares no Parque Estadual do Cristalino. Apesar do apelo de ambientalistas, governador não se posiciona.

Andreia Fanzeres ·
14 de junho de 2006 · 18 anos atrás

Para encontrar floresta intacta em Mato Grosso, é preciso viajar muito. De preferência para o extremo norte do estado, próximo à divisa com o Amazonas ou com o Pará, onde os governos estadual e federal apressam-se para criar unidades de conservação antes que o estrago da exploração madeireira seja, ali também, praticamente irreversível.

Mas nas duas esferas de governo, boas propostas para proteção de áreas importantíssimas para conservação da biodiversidade têm sido fortemente barreiradas pela interferência dos deputados estaduais de Mato Grosso. Em relação à criação do Parque Nacional do Juruena, com quase dois milhões de hectares, os deputados perderam. Eles tinham uma proposta de transformar parte da área em floresta estadual, mas a idéia foi sepultada com a criação do parque nacional por decreto em 5 de junho. Agora, a expectativa é de que os deputados dêem o troco, e logo. Mas no Parque Estadual do Cristalino.

Criado no ano 2000 e sem plano de manejo até hoje, o parque tem problemas sérios de delimitação. São extra-oficias. No papel, está tudo certinho. Na prática, não. Tudo porque ele nasceu com 66.900 hectares e crescentes assentamentos rurais no entorno, uma área conhecida como Gleba Divisa. Trata-se de uma região cujo domínio legal ainda está em aberto. E por não se saber quem tem direito a titular as terras, se é o estado ou o governo federal, a região ficou exposta a posseiros de todas as espécies, que, desde então, chegam aos montes em ônibus e caminhões lotados.

Essas ameaças de invasão justificaram a pressa do estado e de organizações não governamentais locais em ampliarem o Cristalino. Mas ao levarem essa proposta à Assembléia Legislativa, os deputados alegaram que a área é importante para ocupação e para o desenvolvimento rural no norte de Mato Grosso. Se foi difícil engolir esse argumento, talvez fique mais fácil ao saber que o irmão do presidente da Assembléia Legislativa, deputado Silval Barbosa, é posseiro dentro da área do parque do Cristalino – um dos redutos eleitorais dele e de outros parlamentares.

Atalho

Diante da negativa da Assembléia Legislativa, técnicos da atual Secretaria Estadual de Meio Ambiente de Mato Grosso (Sema) elaboraram um projeto de criação de outro parque estadual, o que não depende de qualquer parecer dos deputados. Sendo assim, em 2001 foi criada uma área de aproximadamente 120 mil hectares, contígua à unidade, conhecida como Parque Estadual do Cristalino II. “São dois parques oficialmente, mas tratamos como se fossem um”, diz Eliane Pena, gerente de monitoramento e administração de unidades de conservação da Sema.

Os parques Cristalino I e II apresentam uma rica diversidade, como floresta densa, áreas inundáveis, campos rupestres e serras. “Tantos ambientes favorecem o surgimento de grande variedade de fauna e flora”, conta Eliane Fachim, superintendente de Biodiversidade da Sema. Dentro dos cerca de 185 mil hectares das duas unidades já foram encontrados mais de 500 espécies de aves. Além disso, o parque é importante como barreira para as frentes de desmatamento. Faz limite com a base militar da Serra do Cachimbo, controlada pela Aeronáutica, e com as recentes unidades de conservação criadas no sul do Pará pelo governo federal, formando um mosaico de áreas protegidas.

Paliativos

Mas isso não diminuiu a pressão sobre a região. Enquanto o Incra dividia o restante da área da gleba para assentamentos e os deputados tentavam apresentar uma infinidade de propostas para reduzir a área dos parques, a Justiça foi chamada. Em dezembro de 2002, o juiz federal Julier Sebastião da Silva decidiu acabar com o conflito entre a extinta Fundação Estadual de Meio Ambiente (A Fema, que foi substituída ano passado pela Sema), que administrava os parques, e o poder legislativo, nomeando o Ibama como fiel depositário do parque. Ou seja: na prática, o juiz conseguiu paralisar a briga dos interesses políticos envolvendo a região do Cristalino, mas o Ibama não estava preparado para assumir mais essa demanda.

Com isso, a confusão sobre quem estava na administração dos parques se instaurou. “Tinha gente que achava que não havia nem mais parque”, conta Fachim. O efeito colateral da decisão foi constatado anos depois, quando se verificou um aumento significativo no número de invasões aos parques durante o controle federal do Cristalino. “Até hoje essa questão não foi definida. Oficialmente, o Ibama ainda está na jogada, mas a Sema é quem controla o parque, na verdade”. Hoje, uma liminar dá à Sema o controle das unidades.

Seja através de invasões e conversão da floresta em áreas rurais ou pelo movimento noturno de caminhões que retiram madeira ilegalmente da unidade de conservação, em seis anos o parque já perdeu 15 mil hectares de mata. Por isso, desde o final do ano passado, operações de fiscalização começaram a multar e a obrigar a retirada dos posseiros. Eles são indenizados apenas pelo que foi construído antes da criação do parque, mas não pela terra. “Ninguém que está no entorno do parque ou dentro tem título”, explica Fachim.

Propostas de redução

Esse foi um dos argumentos usados pela Sema para rejeitar uma proposta dos deputados para redução do parque, que teria parte de sua borda leste transformado numa Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN) para fins de ecoturismo. A entrada de visitantes já é uma atividade prevista para a unidade e o parque não pode ter suas áreas públicas cedidas a particulares sob qualquer hipótese.

Mas uma das idéias mais perigosas é a nova investida da Assembléia Legislativa, que quer tirar uma porção de 50 mil hectares do Cristalino II, livrando a unidade de conservação de áreas degradadas antes e depois da criação do parque. E isso a área técnica da Sema não aceita.

“Temos uma outra proposta, concordando em diminuir a área do parque, mas retirando do desenho as áreas abertas antes da delimitação da unidade, apenas”. A Sema quer unificar os parques e acabar com as fragilidades legais que os deixam à mercê das propostas dos deputados de Mato Grosso, carentes das mais preliminares bases técnicas.

Em Alta Floresta, a mobilização da sociedade contra a redução da área do parque é cada vez mais significativa. O Instituto Centro Vida já liderou movimentos que deram origem a abaixo-assinados e outras campanhas que, há anos, têm chamado atenção para esse pedacinho de floresta amazônica com biodiversidade excepcional. No fim de maio, a Associação Amigos do Parque do Cristalino apresentou ao governador Blairo Maggi uma carta endossada por diversas organizações ambientalistas pedindo a manutenção dos limites do parque, que pode ficar ameaçado de não receber recursos do Programa de Áreas Protegidas da Amazônia (Arpa), do WWF, se for reduzido.

Entre os presentes ao encontro com o governador, a sensação foi de dúvida. Maggi não demonstrou firmeza em vetar a proposta dos deputados. “Às vezes o governo ganha, às vezes perde”, disse. Diante da falta de pulso do governador, o secretário de meio ambiente de Mato Grosso, Marcos Machado, se viu obrigado a tomar as rédeas e garantiu aos ambientalistas que o governo do estado não vai permitir que o parque seja diminuído.

  • Andreia Fanzeres

    Jornalista de ((o))eco de 2005 a 2011. Coordena o Programa de Direitos Indígenas, Política Indigenista e Informação à Sociedade da OPAN.

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