Nos confins da Bolívia, do Brasil e do Peru, onde há fronteiras comuns, se apresenta um panorama muito especial que, nestes dias, deveria ser foco da atenção desses países e do mundo. Trata-se de uma extensa porção das florestas melhor preservadas da Amazônia, com importantes populações indígenas, áreas naturais transcendentais para conservar a biodiversidade e que, ao mesmo tempo, estão submetidas a processos avassaladores que, em nome do “desenvolvimento”, podem destruir o que resta de natural e comprometer para sempre as esperanças de uma boa qualidade de vida da população. Nesse lugar, pela primeira vez, se observa a aparição de um movimento social internacional de crescimento exponencial, que luta com eficiência crescente contra a falta de sensibilidade e de bom senso das propostas públicas e a cobiça de interesses privados.
Os departamentos de Madre de Dios (Peru) e Pando (Bolívia), assim como o Estado do Acre (Brasil), formam a região arbitrariamente denominada MAP. Poderia ter sido o PAM ou AMP. A iniciativa do MAP teve sua origem no ano 2000, quando profissionais locais, líderes comunitários e de organizações da sociedade civil, assim como membros de entidades científicas e universitárias regionais, tomaram conhecimento e consciência dos problemas que a anunciada estrada Interocêanica, entre as costas brasileiras do Atlântico e as do Pacífico, atravessando a Bolívia e o Peru, poderiam provocar. Atônitos, descobriram que a Iniciativa de Integração Regional Sul Americana (IIRSA), dirigida por controle remoto desde Washington (Banco Interamericano de Desenvolvimento), de Caracas (Corporação Andina de Fomento) e, claro, desde as capitais dos três países envolvidos, se converteria em fato consumado, ante o interesse expresso e urgente de grandes transnacionais da construção que se pontificaram para lucrar com o projeto. Constataram prontamente que a proposta não estava fundamentada em nenhum estudo social ou ambiental e que a suposta relevância econômica da estrada era grandemente duvidosa. Eles, por serem da região, viam claramente o impacto nefasto que a tal obra teria na gente, na natureza e no futuro, especialmente nos territórios da Bolívia e do Peru, onde a capacidade institucional é ainda menor que no Brasil.
Assim, antigos inimigos das guerras da borracha de finais do século XIX e começos do XX, quando o Brasil anexou os amplos territórios da Bolívia e do Peru que constituem o Acre de hoje, decidiram se unir contra um inimigo comum, muito mais mortífero que as balas daquela época. Bolivianos, brasileiros e peruanos constituíram, sem intervenção de governos, a Iniciativa MAP, com o propósito de monitorar, registrar, analisar e compreender os problemas regionais, em especial os derivados da proposta do IIRSA; intercambiar experiências e conhecimentos, desenvolver ações em conjunto quando necessário e, essencialmente, se preparar para que a voz da sociedade local, do povo que será diretamente afetado pelas decisões internacionais e nacionais, seja escutada e respeitada.
A primeira reunião plenária do MAP, no ano 2000, teve apenas 25 participantes. A última, neste ano, teve 1200 participantes, representando não só a sociedade civil, as organizações não governamentais e a academia, autoridades públicas locais, em especial dos municípios. Embora também estivessem presentes funcionários regionais e locais de ministérios e outras agências públicas nacionais ou regionais. A Iniciativa MAP tem uma gestão muito horizontal, essencialmente democrática e tem gerado mais de 20 iniciativas especializadas tri-nacionais, que são conhecidas como “mini-maps”. Apesar de sua designação estrambótica, algumas dessas iniciativas já ostentam resultados notáveis e perspectivas muito importantes, como no caso dos que trabalham com pesquisa científica e manejo de bacias, dentre outros. O MAP já dispõe de um conselho científico e recebe, direta ou indiretamente, através de seus integrantes, o apoio de diversas entidades como a Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA). Os Presidentes de Bolívia, Brasil e Peru, reunidos neste ano em Puerto Maldonado (Peru) para a cerimônia de início das obras da estrada Interoceânica, reconheceram e aplaudiram a Iniciativa MAP. Não se acredita, no MAP, que o aplauso tenha sido muito sincero.
O MAP, apenas por existir e pelo que já fez, é uma grande coisa. É uma pena que não tivesse começado antes que decisões fundamentais, como a da construção da estrada Interoceânica, fossem tomadas sem consulta. Assim mesmo, o MAP terá oportunidade de fazer muito para estimular um desenvolvimento verdadeiramente sustentável, garantindo os direitos das populações locais, aprimorando sua economia e qualidade de vida, preservando o entorno natural e, em especial, a diversidade biológica ímpar da região. Para isso, se propõe a manter uma linha clara de atuação, baseada na colaboração aberta, a transparência que ele mesmo reclama dos governos e a análise científica honesta dos problemas sobre os quais vai opinar. Pretende evitar cair na tentação do juízo fácil ou demagógico e da segregação dos que não pensam igual. A razão deverá guiar todos seus atos para poder obter o respeito geral que lhe dará a força para cumprir sua difícil missão.
E o MAP terá muito trabalho. Não só deverá monitorar as obras das novas estradas cuja construção já se iniciou, mas, em especial, deverá velar para que seu uso seja feito conforme requisitos sociais e ambientais mínimos. Por exemplo: a avaliação de impacto ambiental das novas estradas, feita e aprovada às pressas, apenas contempla os impactos ambientais diretos, que são os de menor importância. Nada diz sobre as conseqüências do uso da estrada, que implica em especulação fundiária, desmatamentos ilegais, invasões de terras indígenas e de áreas protegidas, exploração ilegal de madeira e mais incêndios na floresta. Tampouco trata do tema da prostituição infantil que já aumentou muito, inclusive antes da chegada do asfalto. Nem se fala dos novos problemas de cultivos ilegais, tráfico de estupefacientes e armas, trabalho escravo nas novas fazendas, etc. O MAP deve, já que os governos nacionais não o fazem, ficar atento a tudo isso e a muito mais. Alertar sobre os riscos e os desvios e, claro, fazer propostas equilibradas para harmonizar o desenvolvimento econômico pretendido com objetivos sociais e ambientais desejáveis e possíveis.
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