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Áreas protegidas e índios

O Brasil não é o único país que abriga índios em áreas protegidas, mas é o 1º que entrega a administração de parques nacionais a esses grupos.Um tiro no pé.

25 de abril de 2006 · 19 anos atrás
  • Marc Dourojeanni

    Consultor e professor emérito da Universidade Nacional Agrária de Lima, Peru. Foi chefe da Divisão Ambiental do Banco Interam...

Agora, no Brasil, existe a “dupla afetação”. Isso, simplesmente, quer dizer que onde existia um parque nacional ou uma unidade de conservação, para preservar uma amostra do patrimônio natural da nação, em especial da sua biodiversidade reconhecidamente valiosa, agora no mesmo espaço existirá um território indígena. A disposição legal, um simples decreto, também determina que a gestão do que antes foi uma unidade de conservação seja agora feita pela Funai, pelo Ibama e, pelos próprios índios. Dois parques nacionais brasileiros importantes, Araguaia e Monte Roraima já estão afetados por esta novidade que violenta drasticamente a Lei Nº. 9.985, Lei do Sistema Nacional de Unidades de Conservação de julho de 2000 e, muito pior, que coloca sob risco toda a política nacional de conservação da natureza.

A existência de índios em áreas protegidas não é fenômeno exclusivo do Brasil. No vizinho Peru isso é freqüente nas áreas protegidas amazônicas. Os parques nacionais do Manú (1.533.000 hectares) e do Alto Purus (2.510.000 hectares), por exemplo, albergam vários grupos indígenas desde sua criação. Com o passar do tempo, muitos outros os invadiram progressivamente, devido a que seus próprios territórios foram usurpados por missionários, caçadores, madeireiros, garimpeiros, agricultores, prospectores de hidrocarbonetos e outros intrusos. À medida que a selva da região era desbravada e que os territórios originais de cada grupo indígena foram sendo reduzidos, os índios se refugiaram nos parques nacionais, que são ás únicas áreas ainda naturais sem intrusos. Devido a que na última década se melhoraram as estradas facilitando novas concessões madeireiras, auríferas e petroleiras, a situação tem alcançado um nível preocupante, pois, embora grandes, esses parques já têm uma população indígena que excede em muito a sua capacidade de suporte, em especial com referência à caça. A situação é agravada pelo fato de que muitos desses grupos pertencem a etnias que são inimigas seculares. Os conflitos entre eles têm aumentado provocando mortes e, de outra parte, o impacto sobre a população da fauna silvestre, já é notório.

A diferença entre o caso peruano e o caso brasileiro acima citado, é que os índios que estão nos parques do Peru são quase exclusivamente índios isolados, não contatados ou que evitam o contato. Contrariamente, no caso dos dois parques brasileiros mencionados, trata-se de índios que há muito vivem em contato com a civilização dominante, da que já adquiriram muitos dos comportamentos negativos em relação à natureza. Eles, como os mestiços, caçam com espingarda, pescam com rede e com dinamite, desmatam para fazer agricultura e criar gado, provocam queimadas, extraem madeira e até são garimpeiros. Outra diferença é que, até o presente momento não foi sugerido que os parques peruanos sejam transformados em reservas indígenas administradas pelo Indepa (a agência peruana equivalente a Funai) nem pelos próprios índios. No Peru acredita-se que, por se tratar de índios em isolamento voluntário, eles estão bem nas unidades de conservação, onde são protegidos contra as agressões externas. Um pacote de regras define as relações do Inrena, que administra o Parque, com os índios, baseadas no princípio de que quanto menos contacto, melhor para todos. De fato, o Indepa, como a Funai, tem ainda menos capacidade que o Inrena ou o Ibama para proteger esses indígenas.

Voltando aos casos do Monte Roraima e do Araguaia, a decisão expressada no decreto que dispõe a dupla afetação equivale ao fim dos indicados parques, em especial no caso do Araguaia devido ao comportamento de seus novos proprietários. A incompatibilidade do propósito de preservar uma amostra da natureza com as atividades econômicas dos índios que, sob muitos aspectos, são ainda mais destrutivas que as dos outros cidadãos, já está amplamente demonstrada. Lembre-se que os índios do Araguaia alugam suas terras aos pecuaristas e que queimam sistematicamente suas terras, ademais de se dedicar à pesca e à caça de forma abusiva, como tem sido denunciado reiteradamente na imprensa. O Parque Nacional do Araguaia já tinha sido reduzido, na prática, a 90 mil hectares. O resto do que foi Parque, quase dois milhões de hectares, já foi repassado aos índios. Hoje nada fica fora do domínio dos índios e da Funai, que pouco se importa com o meio ambiente. O Ibama e a preservação da natureza, mencionados no decreto, são apenas uma formalidade oca.

Os índios isolados merecem toda a consideração e a proteção possível. Eles, sem dúvida, necessitam desesperadamente da mais alta prioridade dos esforços públicos e internacionais. Um estudo recente revela que ainda existem uns 50 locais na Amazônia, onde eles estão provavelmente refugiados. Sua situação, devido às novas infra-estruturas megalomaníacas promovidas por organizações internacionais e governos, reunidos na Iniciativa de Infra-estrutura de Integração Sul-americana (IIRSA), que atravessam as últimas selvas amazônicas, é trágica. O caso da estrada Interoceânica, entre o Brasil e os portos da costa do Peru, assim como a exploração nesse país do gás do Camisea, tem responsabilidade direta nos problemas mencionados nos parques nacionais Manú e Alto Purus e, diga-se de passagem, também no Parque Nacional da Serra do Divisor, no Brasil.

Mas, os índios que vivem com e como os demais membros da sociedade deveriam, como todos os cidadãos, ter os mesmos deveres, já que a Constituição, de outro lado, lhes outorgou direitos especiais, como é, no Brasil, serem donos absolutos de mais de 100 milhões de hectares, ou seja, muito mais que a terra dedicada efetivamente a preservar o patrimônio natural do país. Esses deveres incluem o respeito pelas leis ambientais e sobre recursos naturais o que, como bem se sabe, apenas é a exceção em terras indígenas. Sendo que os índios e seus advogados reclamam da “superposição” de quase 13 milhões de hectares sobre unidades de conservação, área que cresce dia a dia, fácil é imaginar que a “dupla afetação” acabará extinguindo o tão promovido embora maltratado “Sistema Nacional de Unidades de Conservação” transformando-o num aditivo do já gigantesco território indígena. E, para bem ou para mal, o que o Brasil faz é freqüentemente imitado pelos países vizinhos.

De outra parte, é preciso denunciar a farsa, usada como escusa ou justificativa para entregar as unidades de conservação aos índios, afro-brasileiros e populações tradicionais, de que eles sabem conviver com a natureza sem destruí-la. Isso é, simplesmente, uma mentira, tão reiterada que já seus próprios propagadores acreditam nela. Uma coisa são as populações isoladas primitivas que, sem procurá-lo, encontram um equilíbrio com o meio ambiente e, outra, muito diferente, é o caso das populações indígenas aculturadas, que dispõem de assistência médica e equipamentos modernos e que estão submetidas à cultura dominante e à sua publicidade consumista, que estão iniciados na economia nacional e que, ao mesmo tempo, não recebem do Estado a educação, o apoio técnico e financeiro e as oportunidades que necessitariam para melhor se desenvolver. Prova disto são os acordos espúrios entre lideranças indígenas com madeireiros, garimpeiros, pecuaristas e até com cultivadores de soja e tantos outros casos que proliferam e são exibidos, semana a semana, nos jornais. Nas reservas indígenas isso não é bom, mas num parque nacional isso é o fim.

Nada do que aqui se diz é “contra” os povos indígenas. Pelo fato de terem que confrontar em muito poucas gerações, com o processo de civilização que, provavelmente para mal, levou milhares de anos aos antepassados dos demais membros da sociedade, merecem a proteção do Estado. E, obviamente, é muito melhor que sejam eles os que recebam a terra ao invés de que seja dada aos que cultivam soja e criam gado com subsídios públicos. Mas, nada justifica que centenas de milhões de cidadãos da região renunciem a preservar a natureza, e sofram das conseqüências, em beneficio de uma minoria absoluta que já tem muita terra. Não se propõe que se eliminem ou que se reduza o tamanho das suas reservas, apenas se afirma que as unidades de conservação não devem ser entregues aos índios. De outra parte, se o propósito é ampliar os territórios indígenas porque isso deve ser feito dentro das unidades de conservação? Só porque isso é mais fácil? Sabe-se que a resposta virá dizendo que isso é porque “esse era o território original dos índios”. Às vezes, poucas, isso é verdade. Na maioria dos casos é outra das tantas falsidades que o fanatismo dos que “defendem” os índios inventa. O problema de fundo é que a única coisa que os povos indígenas recebem é terra, muita terra, mas eles estão abandonados, totalmente abandonados, pelo poder público.

O Brasil e outros países da América Latina deverão, um dia ou outro, e esperemos que não seja muito tarde, decidir quando o índio se converte num cidadão como os demais. A realidade mostra que eles já são cidadãos privilegiados, muito mais que milhões de pobres rurais tão ou mais pobres que eles. Com esta nova medida não apenas se entrega a eles mais terra, mas, também se entrega o pouco que fica da natureza que, evidentemente, não poderão cuidar. Pelo momento, o prognóstico para a conservação da natureza é muito ruim.

No final, a questão se reduz a saber se a América Latina quer ou não preservar a sua natureza e evitar os impactos ambientais que a sua destruição provocará irremediavelmente na sociedade.

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