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O futuro indígena das florestas amazônicas

Momento é propício para um manejo florestal que realmente funcione na Amazônia, com participação de índios e outras populações. Até agora ele tem sido um fracasso estonteante.

18 de julho de 2007 · 17 anos atrás
  • Marc Dourojeanni

    Consultor e professor emérito da Universidade Nacional Agrária de Lima, Peru. Foi chefe da Divisão Ambiental do Banco Interam...

Nenhum país da região amazônica tem conseguido implantar o pacote legal e técnico que se conhece como manejo florestal, menos ainda o tal de “manejo florestal sustentável”. Mais desanimador, se possível, é saber que os países amazônicos estão acompanhados nesta situação por todos os outros países tropicais dos três continentes. Esta situação é muito triste, pois o manejo florestal sempre foi visto como a principal, senão a única alternativa ao desmatamento. E, como bem se sabe, o desmatamento prospera irrestritamente em todas as florestas tropicais do mundo. A partir desta realidade, a pergunta que se procura responder nesta nota é o que pode ser feito para usar sustentavelmente as florestas remanescentes e competir com sucesso com outros usos da terra, como a agricultura e a pecuária.

Triste realidade

Tomando 1950 como o ano base, porque por então a região amazônica era praticamente intocada pela pecuária e a agricultura, se constata que em apenas meio século: (1) se reduziu a extensão das florestas de 50 e 70% do que foi na sua origem, dependendo dos critérios aplicados para o cálculo, em beneficio da pecuária e da agricultura; (2) se degradou, por exploração florestal seletiva e por caça, possivelmente mais dos 70% da extensão remanescente de florestas e, (3) toda a Amazônia, sem exceção, está submetida aos impactos da contaminação e das conseqüentes mudanças climáticas globais. Nem os mais otimistas duvidam que no ritmo de transformação do uso dos ecossistemas amazônicos e dos impactos diversos que sofre, a floresta amazônica tem os anos contados.

A estratégia de valorizar a floresta natural e de aproveitá-la sustentavelmente, para frear o avanço do desmatamento, não tem funcionado. Os países amazônicos fazem e refazem suas políticas florestais; criam, extinguem, recriam ou dividem as suas instituições florestais; mudam as leis e as regras e as fazem, a cada ano, mais complexas e enroladas embora não mudando sua essência e, no final, nada acontece na floresta onde continua subsistindo apenas a exploração irracional, degradante em termos sociais e ambientais. Em vista disso os países desenvolvidos criaram novas instituições internacionais para promover seu uso sustentável; impuseram novas ferramentas, como a aplicação de critérios e indicadores de sustentabilidade e a certificação florestal e; até reforçaram o conceito de manejo florestal adicionando-lhe a redundante e mágica palavra “sustentável”. Mas, na verdade, nada vem funcionando e assim, se admite que apenas 4,5% das florestas tropicais do mundo seriam manejadas, sendo a proporção ainda menor na América Latina e na Amazônia. Pior ainda, as ditas estatísticas, como outras a respeito, são mentirosas, pois refletem muito mais o orgulho nacional e os interesses de grupos que a realidade. Por exemplo, elas acumulam as áreas que têm planos de manejo aprovados, mas não dizem nada sobre a aplicação dos mesmos. Obviamente, os planos de manejo, como as leis florestais, não servem absolutamente de nada, se não são aplicados.

Felizmente, algumas ações florestais têm funcionado bem melhor que o manejo das florestas naturais: (1) o reflorestamento com espécies exóticas e, (2) o estabelecimento de unidades de conservação de uso indireto. O Brasil, por exemplo, realizou um progresso extraordinário em reflorestamento com eucalipto e outras espécies em terras que antes correspondiam à Mata Atlântica, mas, também, na Amazônia. Muitos não gostam do fato, mas, curiosamente, a maior parte dos que se opõem a este sucesso incontestável são os mesmos que aplaudem a expansão da soja e da cana de açúcar. A Ásia tem feito progressos semelhantes aos brasileiros, mas, lamentavelmente, o resto da América tropical ficou muito atrás. As plantações florestais, quando estabelecidas sobre terras já desmatadas para pecuária ou agricultura, têm freado o desmatamento reduzindo a pressão sobre as florestas naturais. Gostem ou não, este é um grande êxito da profissão florestal. O mesmo pode ser dito sobre o estabelecimento de unidades de conservação livres de exploração dos seus recursos. Dúzias de milhões de hectares de parques nacionais e reservas equivalentes sobreviveram, muitas delas por mais de 30 anos consecutivos, aos embates do desmatamento. Isto aconteceu lado a lado com florestas nacionais que, contrariamente, foram exploradas ilegalmente, desmatadas e logo extinguidas. As unidades de conservação de preservação permanente são outra história bem sucedida da silvicultura tropical mundial e da Amazônia. Claro que elas estão cada vez mais ameaçadas, precisamente por serem os últimos redutos da floresta original e porque ainda existe quem pretenda acreditar que as unidades de conservação podem ser conservadas, mesmo explorando-as.

Quando se analisa o fracasso estonteante do manejo de florestas naturais tropicais, se descobre que ele se deve a um complexo conjunto de fatores históricos, políticos, sociais e econômicos que foge drasticamente da esfera e da responsabilidade do modesto setor florestal de cada país. Se as florestas não são levadas a sério pela população, por ignorância ou tradição cultural, o setor florestal não recebe respaldo político. A população da América Latina tem um desprezo profundamente enraizado pelas florestas, que consideram como a um território inimigo a ser conquistado, ocupado e explorado. Assim sendo, os representantes do povo não dão ao setor público florestal os meios mínimos para fazer seu trabalho e, muito menos ainda, o apóiam para frear outros setores cujas ações ameaçam direta ou indiretamente as florestas. Os ministérios de agricultura e os institutos de reforma agrária, assim como os bancos de fomento, promovem e financiam, sem querer querendo, a invasão das florestas; os ministérios de transporte constroem estradas que evidentemente vão fomentar desmatamentos massivos; os ministérios de minas e energia não têm a menor consideração pelo recurso florestal; e os municípios estimulam a expansão urbana sobre as matas. Poucos defendem realmente a floresta que apenas recebe infinidade de discursos laudatórios para enganar a população. Nessas condições o setor florestal não consegue convencer que a floresta é um fator de desenvolvimento, capaz de competir vantajosamente com setores tradicionalmente mais fortes como a agricultura e a pecuária nem, por certo, consegue controlar a ilegalidade. A ilegalidade é o principal freio ao manejo florestal, pois quem cumpre a lei e aplica os planos de manejo, não pode competir economicamente com a imensa maioria ilegal. Assim sendo, o manejo florestal sustentável não é competitivo e está permanentemente submetido aos mais variados esquemas de corrupção. Como estão as coisas, o manejo florestal de bosques naturais tropicais não tem saída, nem futuro.

Que fazer?

Assim sendo, qual é o futuro que espera as florestas dos trópicos americanos? Que pode ser feito? Na verdade, muito pode ser feito, pois existem alguns fatos que podem mudar as coisas para melhor. O primeiro, embora possa parecer contraditório, é o impacto previsível da contaminação global e a conseqüente tomada de consciência da população e, desta vez, também dos políticos, sobre a importância das florestas como sumidouros de carbono para combater o efeito estufa e como fator chave para a disponibilidade de água. O segundo é a entrega ou, melhor, a devolução progressiva de enormes extensões de terra amazônica aos indígenas transformando-os, de fato, nos maiores proprietários de florestas do mundo. Um terceiro fato se refere à grande extensão de florestas secundárias que a pequena agricultura amazônica deixa em descanso por períodos suficientemente longos como para produzir madeira, que poderia suprir a escassez crescente de madeira barata para diversos usos. De outra parte, evidentemente, o reflorestamento com espécies nativas ou exóticas, assim como as unidades de conservação, continuarão tendo cada dia mais importância para a conservação da biodiversidade, provisão de serviços ambientais e para os negócios de turismo e recreação.

O tema das terras sob domínio indígena ou populações afro-americanas é, agora, chave para o futuro do manejo florestal. Eles reivindicaram, com grande êxito, a posse formal de mais de 110 milhões de hectares no Brasil, 35 milhões na Colômbia, 12 milhões no Peru, 3 milhões no Equador e uma quantia ainda maior na Bolívia, ao que deve se somar o que essas populações dispõem nas duas Guianas e Suriname. Não existem territórios indígenas na Venezuela. Provavelmente os indígenas possuem mais de 170 milhões de hectares, na sua imensa maioria cobertos de florestas tropicais, apenas na América do Sul. Mais terra indígena existe no Panamá, Nicarágua e Honduras e, claro, no México e Guatemala. Eles têm várias vantagens para ter sucesso onde os governos de seus próprios países, assim como o setor privado, fracassaram. Com efeito, os índios: (1) são donos legais e incontestáveis da terra que ocupam, (2) suas populações são muito reduzidas determinando que suas necessidades de expansão agropecuária sejam pequenas, (3) têm intimidade com a floresta que para eles, diferentemente do que acontece com as outras populações nacionais, é amigável e benfeitora; (4) suas organizações políticas são fortes e crescentemente reconhecidas. Ou seja, os índios têm, em suas mãos, tudo o que nunca existiu para viabilizar o manejo florestal por empresários privados, através de concessões ou pelo próprio governo nas suas florestas nacionais. Apenas lhes faltam dinheiro e assessoramento técnico.

Na atualidade, como se sabe, a madeira de lei é extraída ilegalmente em proporções cada vez mais expressivas precisamente das terras indígenas. O fenômeno não é exclusivo ao Brasil e está bem documentado em todos os países da região. O fato acontece quase sempre com o apoio ativo de lideranças indígenas ingênuas ou corruptas, mas, o denominador comum dessas transações é que os índios saem perdendo e dilapidam seu patrimônio. Por isso apenas cabe se surpreender da inércia dos governos, das administrações florestais e das fontes nacionais e internacionais de cooperação ao desenvolvimento em relação a este tema que pode ser a janela de salvação para praticar enfim o tão sonhado manejo florestal sustentável. Isso implica em profundo redirecionamento da política e dos recursos e esforços públicos, em apoio às iniciativas indígenas de manejo florestal, desta vez com grande possibilidade de sucesso. É evidente que essa forma de manejo deverá ser absoluta e realmente participativa e em benefício direto e exclusivo dos donos da terra e do recurso, que são os índios. O processo não será rápido, mas não pode ser demorado demais porque as ameaças de uso insustentável dessas florestas já estão às portas das reservas e às vezes já dentro da casa. A principal dessas ameaças é a agressiva promoção dos chamados “biocombustíveis” sem nenhuma consideração ambiental séria. No caso do Brasil é evidente que as possibilidades mencionadas para os territórios indígenas também são válidas para as reservas extrativistas e outras categorias de “unidades de conservação” de uso sustentável.

A este ponto deve se aclarar que esta proposta não se baseia na falsa ilusão, tão promovida por aqueles que vivem em outro mundo, que pretende acreditar que os índios amazônicos são defensores natos da natureza e das florestas. O fato de existir ainda floresta onde também moram índios é apenas a inevitável conseqüência de que estes não tiveram uma população suficientemente densa, nem a tecnologia necessária para eliminá-la. Como têm sido confirmadas reiteradas vezes, quando os índios dispõem dos meios para destruir a floresta, eles o fazem com tanto ou mais entusiasmo que qualquer outro cidadão latino americano. Se os casos recentes não forem considerados como prova suficiente, talvez seja o caso de se lembrar da história das civilizações pré-hispânicas, como a dos Mayas e outras culturas sul-americanas dos trópicos úmidos, que evidenciam que, apenas seja alcançada a tecnologia necessária para transformar os ecossistemas naturais, estes têm sido degradados até o ponto de se extinguir suas próprias culturas. Finalmente, esses fatos são evidentes para qualquer um que dê uma olhada na paisagem pela janela do avião que sobrevoa a América Latina. Os índios das florestas, em contacto com a sociedade nacional dominante, passam a querer e a se comportar como ela. Portanto, a oportunidade que brinda o fato de que os índios amazônicos são agora os principais proprietários da terra deve ser enquadrada em regras rigorosas, que outorguem uma oportunidade ao manejo sustentável. Essas regras não existem ainda.

Reaprender a manejar florestas nativas

Mas, antes de pretender dizer aos índios como é que devem manejar suas florestas, é preciso reconhecer que, dada à falta de prática no manejo de espécies nativas e ao caos dominante no setor florestal tropical, já são muito poucos os que sabem como é que isso se faz. A visão de manejo sustentável de florestas naturais é hoje qualquer coisa menos “sustentável”. A rotação florestal, a ser determinada pelo tempo que precisam as árvores e a floresta para se recuperar da extração, tem caído de uma média de 50 a 70 anos nos anos 1950 e 1960s a até menos de 20 anos na atualidade. Esse lapso é absolutamente insuficiente para garantir a regeneração do recurso. Os planos de manejo feitos em série e aceitos sem maior exame pelas administrações florestais falsificam os dados dos inventários florestais. Se os fazem, não usam os resultados do inventário, como fica demonstrado pelo fato tão comum de serem todos os lotes de extração anual de idêntico tamanho, como se a distribuição da floresta e de seu volume de madeira explorável fosse homogêneo. Os programas silviculturais são risíveis e insistem em opções que jamais deram resultado, como as técnicas de enriquecimento por faixas na mata densa. Ademais, não se planejam as infra-estruturas de extração; não se definem as áreas destinadas à conservação in situ de recursos genéticos florestais; carecem de estúdios econômicos e financeiros e, até de mercado. Enfim, os planos de manejo são em geral uma farsa, cujo único propósito é obter a concessão ou o direito a extrair madeira que, de qualquer forma, extraem como bem querem ou podem. Agora se fala muito de extração florestal de baixo impacto e, isso poderia ser uma boa prática se formasse parte de um plano de manejo, o que raramente é o caso. Os planos de extração de baixo impacto, que correspondem ao que se faz a cada ano, têm de fato, substituído os planos de manejo que, por definição, devem ser de longo prazo. Nessas condições não é possível aportar nada de bom aos indígenas e outros habitantes das florestas.

Os florestais e outros profissionais afins, assim como os políticos que se atrevem a legislar sobre florestas, devem abrir a mente ao que já se sabe sobre as florestas tropicais para não repetir erros e, neste caso, devem levar em conta os anseios e necessidades reais dos povos da floresta. O que se conhece sobre as florestas é suficiente para começar o manejo efetivo, mas deve-se reconhecer que ainda é muito pouco o que se sabe sobre a biologia das selvas e de seus componentes. Nem sequer a taxonomia das árvores está suficientemente avançada. Por isso, simultaneamente, deverá se favorecer uma pesquisa cientifica e aplicada séria. As universidades e os centros de pesquisa têm uma enorme responsabilidade à frente. Se a legislação e as técnicas e práticas de manejo não forem profundamente revisadas e melhoradas, se estará enganando aos povos pobres da Amazônia, vendendo-lhes uma nova ilusão e não lhes deixando outra alternativa senão a destruição do seu entorno natural.

O importante é o fato de que a conjuntura é propícia para se fazer um último esforço para o manejo florestal nas florestas amazônicas, que seja econômica e socialmente rentável. As condições para o sucesso estão dadas e se trata de aproveitar, já, a oportunidade. Este esforço novo deverá se basear em uma realidade bem diferente, como a de trabalhar em harmonia com uma população que até agora foi tratada como sendo de idade minoritária e, ao mesmo tempo, deverá resgatar uma ciência aplicada quase esquecida, que quiçá agora tenha seu momento de glória para finalmente servir a sociedade.

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