É provável que nunca antes na história do Brasil as unidades de conservação estiveram tão ameaçadas como hoje. Basta lembrar que da taxa total do desmatamento da Amazônia, no último ano, 29% aconteceram precisamente onde jamais deveria ter ocorrido, ou seja, nas áreas protegidas. Mas esse fato é apenas uma das múltiplas expressões da tragédia das áreas protegidas, ameaçadas pela confusão nacional sobre o que é, realmente, uma unidade de conservação e por um governo federal que faz tudo de errado com relação às mesmas.
O que acontece, desde o estabelecimento de inúmeras, extensas e frequentemente redundantes “unidades de conservação”, muitas das quais são qualquer coisa menos isso, até o seu virtual abandono provocando que sejam rotineiramente invadidas, pilhadas e incendiadas, é conseqüência direta da sua falta de prioridade na política nacional. O que ainda se salva do desastre deve-se à luta desesperada de parte de seu pessoal profissional e dos seus valentes guardas parques, apesar de serem poucos e pública e notoriamente maltratados. Sem eles o país já teria perdido muito mais de seu precioso patrimônio natural.
Como obter prioridade política
Prioridade política? Como se consegue isso? O lógico seria que a outorga de prioridade política para um tema tão importante como a conservação do patrimônio natural nacional fosse um ato voluntário dos que mandam e decidem nos três poderes do Estado. Supõe-se que a atitude de conservar a natureza emane da educação e da civilidade que deveria qualificar a esses importantes atores sociais. Só que, na realidade, são parte da sociedade que os elegeu e que representam. E essa sociedade não se interessa, além da forma, pela natureza que a sustenta. O problema de fundo é uma educação que valoriza os clichês e despreza o conteúdo ou, em outras palavras, a realidade. Por isso, por exemplo, apesar de na Constituição existir um capítulo sobre o meio ambiente que, dentre outras medidas, declara “patrimônio nacional” a Amazônia, o Pantanal, a Mata Atlântica e a Zona Costeira, essas regiões estão sendo detonadas. Poucos levam vantagens e muitos são prejudicados, usando-se mil e um pretextos inclusive o “interesse público”, que poderia ser perfeitamente atendido de outras formas. A falta de interesse político pela temática ambiental se esconde sempre na forma. Leis novas substituem leis que nunca foram aplicadas, unidades de conservação são estabelecidas e não são desapropriadas, nem manejadas. Criam-se e recriam-se instituições e milhões de palavras são propaladas em reuniões e discursos, mas muito raramente se disponibilizam os recursos para que algo de tudo isso seja materializado. Ou seja, na realidade, não há nenhuma prioridade política. A prioridade política se mede no orçamento, não nas palavras.
Se a falta de prioridade política é, em grande medida, conseqüência da falta de educação sobre o meio ambiente e sobre princípios básicos de civilidade, que deveriam redundar em que as leis fossem cumpridas, parece que nada pode ser feito já para evitar a paulatina destruição do patrimônio natural do país. Educar e desenvolver cultura cívica leva muito tempo e, também, é muito caro e, pior, tampouco parece ter prioridade política no governo atual. Não obstante, felizmente, existem outras formas de construir prioridade política enquanto se espera pelos resultados da educação.
Pressão social
A prioridade política se obtém, também, graças à pressão que emana da sociedade organizada. E, sendo honestos, há que se reconhecer que nem a porção da sociedade brasileira que gostaria de proteger a natureza exerceu, nem exerce, pressão sobre os seus políticos em beneficio do meio ambiente. Existem, é verdade, várias organizações não governamentais que advogam pelo entorno natural. Entretanto as mais ousadas são criticadas por ter recursos do exterior e representar interesses forasteiros; outras, a maioria delas, é muito tímida e prefere não buscar briga com o poder público, pois muitas vezes dele dependem para seus projetos e; as poucas que são mais agressivas e independentes são simplesmente ignoradas pelos políticos, pois, na aparência, não representam os pontos de vista de muitos cidadãos.
A única entidade que no Brasil tem por finalidade exclusiva defender as unidades de conservação é a Rede pró-Unidades de Conservação. Porém a Rede é uma organização de segundo nível por ser um consórcio de organizações não governamentais, como as antes mencionadas. As suas atividades e especialmente os seus pronunciamentos requerem consenso prévio das instituições participantes. Portanto não caracteriza uma organização capaz de fazer pressão eficaz e enérgica sobre a opinião pública, nem tampouco sobre os políticos. Seu magro financiamento depende de aportes eventuais das organizações participantes. Por isso a Rede tem limitado suas atividades à organização dos congressos nacionais de unidades de conservação, o que de por si só é uma tarefa gigantesca e muito importante para juntar os atores e potenciar suas atividades e, assim mesmo, para criar opinião pública durante a sua realização. Outras atividades da Rede são a publicação de um boletim e outras poucas, todas importantes, embora no seu conjunto sejam claramente insuficientes para aumentar a prioridade política atribuída às unidades de conservação. Ou seja, na verdade, não existe uma entidade de primeiro nível da sociedade civil dedicada à defesa das unidades de conservação. E ela ou elas fazem muita falta.
Exemplos de organização da sociedade
É interessante ver como esse assunto é tratado, por exemplo, nos EUA, onde as áreas protegidas têm prioridade política, como é revelado pelo seu orçamento de 2,5 bilhões de dólares anuais, para um sistema bem menor que o brasileiro e pelos tremendos protestos públicos, quando algum fato ameaça as unidades de conservação. Ainda assim, se considera que o financiamento insuficiente é a principal ameaça às unidades de conservação desse país e, por isso, lá existem uma dúzia de organizações de nível nacional e, muitas mais em cada região ou estado, que têm por missão exclusiva a defesa das unidades de conservação. A mais antiga é a National Parks Conservation Association (que antes era chamada apenas de National Parks Association). Sua finalidade é clara e simples “To protect and enhance America’s National Parks for present and future generations” (“Proteger e melhorar os parques nacionais1 da América para as gerações presentes e futuras”). Com 85 anos de existência, essa entidade reúne 340.000 membros pagantes e dispõe de um escritório central em Washington e de 24 escritórios regionais. Seus objetivos são: (1) defender as áreas protegidas e o Serviço de Parques Nacionais; (2) educar os tomadores de decisão e o público sobre a importância de proteger as unidades de conservação; (3) ajudar a convencer os membros do Congresso a aprovar leis que mantém e melhoram as unidades de conservação e que evitam novas ameaças contra elas; (4) lutar contra os intentos de debilitar a legislação que ajuda a mantê-las; e (5) ajudar a avaliar a situação das mesmas para conhecê-las e assim defendê-las apropriadamente.
A National Parks Conservation Association, como se observa pelos seus objetivos, é uma aliada importante da autoridade de parques nacionais, o National Parks Service, embora possa frequentemente criticar suas ações ou a falta delas, ou as suas deficiências. Seus membros pagam desde 25 dólares por ano até vários milhares, segundo possam ou desejam e seus mecanismos financeiros são hoje bastante complexos. Porém ela não está sozinha nessa luta. Também existe a National Parks Fundation que procura fundos adicionais para o Serviço de Parques; o poderoso National Park Trust, que busca dinheiro para comprar terras para ampliar as áreas protegidas; a Association of Partners for Public Lands que atua como as anteriores e; assim mesmo, há a National Recreation and Park Association que compete com a National Parks Conservation Association a qual inclui, na sua luta, as florestas nacionais e outras áreas públicas. Também existem associações de interpretação ambiental, de esportes e, dentre outras, de turismo nas áreas protegidas. E esses mecanismos são repetidos em cada estado da união e, ainda, existem para cada uma de muitas unidades de conservação.
E os funcionários das unidades de conservação não ficam atrás. Nos EUA existe a Association of National Parks Rangers no nível nacional e em cada estado, que reúne a todos os guardas parques; a Coalition of National Parks Service Retirees, que une a todos os aposentados do Serviço de Parques e, obviamente; a Employees and Alumni Association of the National Parks Service, que reúne o pessoal ativo. Todos eles, sem exceção, têm como primeiro objetivo, acima de qualquer interesse pessoal ou de classe, a defesa e proteção das unidades de conservação.
O caso dos EUA não é o único. Ele se repete na Austrália e no Canadá e na maior parte dos países que protegem uma parte da sua natureza não apenas com belos discursos e com muitas promessas. Repete-se inclusive na América do Sul, por exemplo, com a bem organizada e motivada e por isso poderosa, associação dos guardas parques argentinos sem os quais muitos dos parques nacionais estariam destruídos pela inércia dos políticos, ou pelas ações indevidas que costumam favorecer.
E no Brasil?
Um primeiro passo está sendo dado no Brasil com o processo, ora em curso, da criação da Associação de Gestores de Unidades de Conservação. Ela reunirá, no comum esforço de defender as áreas protegidas do país, a todos que tiveram ou têm o privilégio e a responsabilidade de dirigir uma unidade de conservação, seja federal, estadual, municipal ou privada. Eles podem oferecer muito para o sucesso da luta pela conservação das amostras da natureza, que são as unidades de conservação, pois, melhor do que ninguém eles conhecem seus problemas e, também, as soluções possíveis.
Não obstante esse é apenas um primeiro passo. O Brasil, pelo número, extensão e qualidade das suas unidades de conservação verdadeiras, requer e merece pelo menos uma organização de base. Deve ser formada por todos os que amam a natureza e que já dela desfrutaram em uma de suas áreas protegidas, que defendam esse patrimônio da ignorância da maioria e, especialmente, da má fé de uma minoria egoísta. Trata-se de participar de uma luta, é verdade. Mas, em questões de natureza, sem lutar não se ganha nada nunca.
1 – Unidades de conservação de uso indireto em geral
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