Começo este artigo com uma declaração extremamente otimista de uma importante autoridade pública na área florestal. Como se pode observar pela declaração, em um futuro de trinta anos, as florestas nacionais oferecidas em concessão terão a mesma quantidade de biomassa e, portanto, a política de concessão que ora se começa a implementar será plenamente vitoriosa. Pessoalmente, desejo ardentemente que isto ocorra. Contudo, tenho a sensação de que as declarações acima transcritas devem ser creditadas na conta de um vigoroso wishful thinking que somente se concretizará com muito esforço e, principalmente, com uma profunda mudança de nossos hábitos administrativos. Infelizmente, as estatísticas referentes ao desmatamento de florestas tropicais demonstram que, nos últimos 30 anos, a floresta vem diminuindo. A implantação do manejo florestal, seguramente, é o elemento que dá sustentação à afirmativa que acabo de transcrever. Certamente, mesmo países com altas taxas de florestas e elevado nível de preocupação ambiental são alvos de campanhas contra o desflorestamento, como é o caso da Finlândia que vem sendo duramente criticada pelo Greenpeace. Aqui no Brasil, lamentavelmente, ainda comemoramos a redução da taxa de desmatamento e não a inexistência do desmatamento. Será que a política que se pretende adotar com a implantação do Serviço Florestal Brasileiro será capaz de assegurar que, em 30 anos, as nossas florestas nacionais manterão “a mesma quantidade de biomassa, se não tiver mais do que tinha antes”? É uma aposta arriscada. Tomara que isto ocorra de fato.
Não é do nosso estilo a crítica pela crítica, contudo, alguns elementos precisam ser examinados com bastante isenção para que, de fato, possamos ter um grau mínimo de certeza quanto à possibilidade de êxito da nova proposta de administração das florestas nacionais. Inicialmente, e como contribuição para o debate, sugiro que os interessados dêem uma espiada no site da Tongass National Forest que é uma das maiores florestas públicas dos Estados Unidos e, certamente, uma das maiores do mundo. A floresta é a maior temperate rainforest do mundo. Como complemento, valeria a pena uma leitura do artigo escrito pelo Professor Martin Nie da Universidade de Montana (Governing the Tongass: National Forest Conflict & Political Decision Making que se encontra disponível no site da Faculdade de Direito Lewis and Clark (. Em tal artigo é feito um exame muito pormenorizado daquele que é considerado um dos conflitos ambientais mais complexos, intratáveis e mais demorados dos Estados Unidos. Certamente, o caso é extremo e assim deve ser visto. Um primeiro elemento que o Professor Nie destaca em seu artigo é a ambigüidade da legislação sobre a Floresta Nacional, tendo em vista que ela, simultaneamente, menciona a manutenção da qualidade das águas, do ambiente e a produção de madeira como seus objetivos. Como sempre ocorre, as diferentes partes envolvidas buscam priorizar um ou outro conceito. Um outro dado interessante é a crescente importância das comunidades indígenas na exploração de madeira da região. Assim como no Brasil, há uma grande quantidade de litígios judiciais envolvendo diferentes partes privadas e o Serviço de Florestas, a maioria em função da discricionariedade administrativa no que se refere à utilização da floresta.
A nossa legislação não é diferente e as contradições demonstram, claramente, que o legislador não sabe o que pretende como modelo de gestão das florestas nacionais. No caso do Alaska, houve uma grande pressão para destinação de áreas para populações indígenas e locais, como forma de assegurar um “desenvolvimento sustentável” e socialmente justo. A realidade, contudo, foi bastante diversa, visto que as populações locais passaram a ser grandes utilizadoras dos recursos naturais. Uma outra questão bastante importante é que lá, o uso múltiplo da floresta, nas áreas que não estão especificamente destinadas à conservação, reduz-se à atividade madeireira. Não acho que trilharemos caminho diverso, até por que não admitimos a concessão para uso zero. Este é um ponto que julgo relevante, pois com o estabelecimento da concessão para tal fim poderíamos, na prática, saber quais os verdadeiros interessados em manter as florestas brasileiras em pé.
Se analisarmos os oito objetivos da Lei Brasileira sobre florestas públicas, não será difícil perceber que eles são bastante contraditórios entre si, pois não me parece claro em que medida “a proteção dos ecossistemas, do solo, da água, da biodiversidade e valores culturais associados, bem como do patrimônio público” se compatibiliza com “o respeito ao direito da população, em especial das comunidades locais, de acesso às florestas públicas e aos benefícios decorrentes de seu uso e conservação” e com a “diversificação industrial”. O que há, em minha opinião, é uma tentativa retórica de justificar a adoção de medidas tendentes à alienação do patrimônio público florestal da Amazônia a uma indústria madeireira extremamente atrasada e sem compromissos maiores do que a sua própria prosperidade econômica. A mudança do modelo madeireiro, provavelmente implicará no afastamento do “pequeno” e “nacional” em favor da maior participação do “grande” e “multinacional”, com apelo muito forte sobre o imaginário nacionalista da hiléia amazônica e o “entreguismo”.
É interessante observar que, a nossa lei de concessão florestal busca incentivar a concessão mediante contratos de longo termo, o que demonstra a intenção do legislador em fazer a coisa “pegar”. Contudo, no caso da Floresta Nacional de Tongass, o Congresso Norte Americano chegou à conclusão que uma das principais fontes dos problemas da região era exatamente a existência de contratos de longa duração. Se por um lado os contratos de longa duração possibilitam a existência de investimentos de longo prazo, por outro, possibilitam o corte de madeira nativa por mais anos. É isto o que a sociedade brasileira deseja? Diferentemente do que vem acontecendo na Floresta Nacional de Tongass, sobre a qual existem muitos anos de ativa polêmica, a nossa lei de concessões florestais, fruto de uma situação de crise, busca agradar a todos os atores ao mesmo tempo. Assim, admite-se (i) o corte das florestas nacionais (ii) desde que seja sustentável, (iii) voltado para a proteção do meio ambiente, (iv) priorize às comunidades locais, (v) facilite os processos de industrialização e (vi) aqueles que desejarem financiamento podem dar em garantia os próprios contratos de concessão, ou seja, dar como garantia ao governo algo que é do próprio governo. Este último aspecto deveria ser revisto, pois como sabemos, em passado recentíssimo, a entrega de contratos com o governo como garantia de negócios deu margem a muita polêmica.
Penso que a sincera tentativa de implantação de uma política de longo prazo é, em si mesma, uma atitude a ser louvada, haja vista que no Brasil, só se pensa no curtíssimo prazo que, em geral, se confunde com os prazos do calendário eleitoral. Veja-se que o atual governo tem demonstrado muita dificuldade com as políticas de longo prazo, uma rápida olhada na situação das concessões do setor elétrico é suficiente para demonstrar a veracidade da minha afirmação. Contudo, justiça seja feita, não é apenas uma característica da atual administração, ao contrário, o atual governo está em linha de perfeita coerência com a grande maioria que o antecedeu. Veja-se que, no caso do setor elétrico havia – em tese – um quadro institucional que assegurava à ANEEL um elevado grau de autonomia em relação ao Executivo. Como se sabe, o novo Serviço Florestal Brasileiro – SFB é órgão diretamente subordinado ao Executivo[1] e, portanto, sujeito às difíceis pressões da Realpolitik momentânea. Também é relevante notar que os recursos arrecadados com as concessões irão para o Caixa Único do Tesouro Nacional[2], o que torna bastante pouco provável que sejam destinados às suas finalidades originais. Assim, em linhas gerais, parece-me que a boa vontade demonstrada pelo Engenheiro Tasso Azevedo necessita que se avance muito mais na institucionalização do SFB para que possamos, de fato, ter políticas públicas que se prolonguem por 30 anos. Com a falta de autonomia do SFB, dificilmente ele terá condições de implementar políticas que tenham horizontes mais largos.
É verdade que as concessões, por serem contratuais, têm a vocação para se estenderem por mais tempo do que a duração efêmera das diversas administrações. Contudo, estabilidade de contratos com o governo é, ainda, uma esperança que pretendemos ver concretizada, mesmo que se reconheça já ter havido avanços significativos no tema. Penso ser evidente que, sem uma redefinição do SFB que aponte no sentido de dotá-lo de um elevado nível de autonomia, semelhante àquele que as agências reguladoras dispõem, não será possível assegurar políticas pelo prazo de trinta anos. No particular, não se pode deixar de ressaltar que o caráter autônomo das agências reguladoras tem sido submetido a forte crítica e pressão pela administração atual. Mais relevante do que os contratos em si é a quantidade de floresta que, no prazo de trinta anos, será submetida ao manejo florestal. Caso o número aumente muito, seguramente, estaremos vivendo uma situação curiosa, pois ao mesmo tempo em que a biomassa pode permanecer idêntica, ou até mesmo ser aumentada, a diversidade biológica provavelmente terá sido reduzida, visto que o manejo exige um mínimo de homogeneidade das espécies a serem manejadas. Trata-se de uma escolha difícil e que deve ser tomada pela Administração de forma fundamentada e na base de uma consistente análise de custo e benefício.
Uma questão bastante delicada é a da “descentralização”. Aqueles que têm acompanhado os meus artigos sabem que sou francamente favorável à descentralização administrativa e política da gestão do meio ambiente. A concepção do Código Florestal, desde 1934, era de entregar aos Estados os mecanismos de fiscalização sobre as florestas, mediante convênios. Paulatinamente, tal mecanismo foi sendo substituído pela centralização e pelo crescente poder dos órgãos federais sobre a matéria. Mesmo com os riscos inerentes à descentralização, acredito que ela deve ser tentada, pois o modelo federal já demonstrou que não funciona. Entretanto, a descentralização não será implantada facilmente. Vários são os motivos, permito-me citar alguns (i) os estádios não querem arcar com todas as responsabilidades, (ii) as ONGS, em sua grande parte, defendem políticas ad hoc, manifestando-se pela centralização ou descentralização de acordo com as conveniências momentâneas, (iii) a estrutura de repartição de recursos prevista na lei de concessão florestal precisa ser mais bem definida, sob pena de que os Estados fiquem com os encargos do controle e licenciamento e a União com a arrecadação. Se à União caberá licenciar as concessões florestais em áreas federais, do meu ponto de vista não há sentido em se falar em transferência de qualquer responsabilidade para os Estados. Se os Estados realizarão todos os licenciamentos em florestas nacionais, com exceção de alguns poucos casos, a eles caberiam os recursos oriundos da concessão, pelo menos em parcela significativa. É importante lembrar que não existe federalismo sem repartição de receitas. Aqui está a chave para a compreensão de todo o problema. Como dizem Holmes e Sunstein, “a penniless State cannot protect rights”. Não há a menor possibilidade de que se faça a proteção das florestas nacionais, ou de qualquer outro bem ou direito, sem a adequada alocação de recursos. Esta é uma realidade que os nossos administradores, e mesmo aqueles que se empenham na defesa dos direitos, fazem questão de ignorar e, com isto, vivemos em um mundo de direitos puramente retóricos e pouco práticos, com discussões despropositadas e sem foco específico.
No que se refere à repartição das receitas oriundas das concessões, espera-se que sejam assim divididas: (i) 20% destinado a cobrir os custos do sistema de concessão, (ii) 80% divididos em: (a) 30% para os Estados onde se localiza a Floresta Pública (b) 30% para Municípios onde se localiza a Floresta Pública e (c) 40% para o Fundo Nacional de Desenvolvimento Florestal. A expectativa é que, no prazo de dez anos a área máxima total sob concessão planejada seja de 13 milhões de hectares (cerca de 3% da área da Amazônia), com uma receita anual direta (taxas pagas pelo uso do recurso florestal) de R$ 187 milhões e arrecadação de impostos da cadeia de produção de R$ 1,9 bilhões anuais, com a geração de 140 mil empregos diretos.[3]
Um elemento que me parece pouco claro é qual é a prioridade da Lei de Concessão Florestal? Qual o objetivo que o governo pretende atingir com a sua implementação? Aparentemente, a norma agasalha interesses contraditórios e busca uma conciliação quase que impossível entre eles. A Lei é fruto, como se sabe, de acontecimentos ocorridos recentemente no Sul do Pará e, notadamente, do assassinato da irmã Dorothy Stang. Pelo que se noticiou, à época, uma das principais causas do assassinato era a firme resistência oferecida pela freira à exploração de madeiras por particulares em florestas públicas. Argumenta-se, não sem razão, que a complexa situação fundiária da Amazônia impede que se saiba a realidade dominial das áreas. É verdade. Porém, em quase 30 anos de exercício profissional da advocacia, confesso, nunca vi o governo forjar um título imobiliário para se dizer proprietário desta ou daquela gleba. Com toda segurança, posso dizer que o inverso é o que ocorre. O fato objetivo é que a situação nova criada pela lei é que admite-se que as terras são públicas e que elas devem ser concedidas para “exploração sustentável”. Assim, por um passe de mágica, os conflitos fundiários desaparecem. As concessões florestais, portanto, passam a exercer o papel de um certo “direito de superfície”, separando a propriedade do solo da propriedade das florestas. Evidentemente que, aquele que requerer a concessão à União, estará, em termos, reconhecendo-lhe o domínio. Parece prudente que não se ofereçam em concessão terras que se encontrem “sub judice” ou que a concessão seja condicionada à desistência de ações judiciais fundiárias movidas em face da União ou de qualquer outro ente público, em qualquer parte do território nacional.
Pelo que se pode ver não são poucos os desafios para o SFB. Esperemos que os seus dirigentes, atuais e futuros, possam compreender que o patrimônio público precisa ser preservado e que a melhor maneira de fazê-lo é com a adoção de políticas de Estado e não de Governo; estas últimas são efêmeras, as primeiras devem ser constantes, permanentes e isentas. As imensas dificuldades de gestão da Tongass National Forest são bons exemplos para que sejamos capazes de perceber que somente com recursos financeiros e políticas institucionais se pode avançar em algo tão complexo como gerir conflitos entre partes e interesses tão complexos e diferentes.
[1] Art. 1o Esta Lei dispõe sobre a gestão de florestas públicas para produção sustentável, institui o Serviço Florestal Brasileiro – SFB, na estrutura do Ministério do Meio Ambiente, e cria o Fundo Nacional de Desenvolvimento Florestal – FNDF.
[2] Art. 40. Os recursos financeiros oriundos dos preços de cada concessão florestal da União serão depositados e movimentados exclusivamente por intermédio dos mecanismos da conta única do Tesouro Nacional, na forma do regulamento. § 1o O Tesouro Nacional, trimestralmente, repassará aos Estados e Municípios os recursos recebidos de acordo com o previsto nas alíneas a e b do inciso II do caput e nas alíneas b e c do inciso II do § 1o, ambos do art. 39 desta Lei. § 2o O Órgão Central de Contabilidade da União editará as normas gerais relativas à consolidação das contas públicas aplicáveis aos recursos financeiros oriundos da concessão florestal e à sua distribuição.
[3] capturado aos 18/09/2006
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