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A normalidade brasileira ataca outra vez

O inquérito sobre a morte por atropelamento do biólogo Eduardo Veado caminha para concluir que foi um acidente normal. Anormal é o que ele fazia num país onde tudo se banaliza.

19 de outubro de 2006 · 18 anos atrás
  • Marcos Sá Corrêa

    Jornalista e fotógrafo. Formou-se em História e escreve na revista Piauí e no jornal O Estado de S. Paulo. Foi editor de Veja...

Se os brasileiros não andassem tão ocupados com as grandes prioridades nacionais, aquelas que as pesquisas de opinião pública já nem se preocupam mais em dizer quais são, a morte do biólogo Eduardo Marcelino Ventura Veado seria um escândalo. Como já se noticiou aqui no site, ele morreu no dia 5 de outubro, atropelado no acostamento da estrada MG-474, onde caminhava com a mulher, a professora Simone Furtini Abras. Tinha 46 anos. Ela, 41. Apanhado pelas costas, o casal ficou por ali mesmo. O motorista que os matou, dizem as testemunhas,desceu da picape branca em que trafegava fora da pista, examinou o estrago e fugiu.

Parecia, à primeira vista, crime encomendado. O biólogo era secretário-adjunto de Meio Ambiente e coordenador de Defesa Civil da prefeitura de Ipanema. Denunciara há três anos desmatamentos ilegais no município. Ouvira as ameaças de praxe nas circunstâncias. Tudo como manda o figurino da política ambiental em vigor. Duas semanas mais tarde, depois de fazer batida na casa das vítimas, atrás de pistas sobre os autores da encomenda, a polícia se convenceu de que isso, pelo menos, não aconteceu. Ou seja, foi um acidente normal.

Tudo normal

Como foi normal, tende a resvalar depressa para o arquivo morto das tragédias cotidianas. Só no último feriadão, morreram 35 pessoas nas rodovias federais de Minas Gerais. Mais que as 21 do Sete de Setembro. Foram todas mortes normais, sepultadas na crosta de banalidade que enferruja os desvios coletivos, quando eles se repetem a exaustão. É normal, aqui, o atropelador sumir para sempre. Normal, também, o estado das estradas ou a falta de Estado nas estradas, onde o governo só tapa buraco em ano de eleição. Assim como só pode ser normal a feiúra acabrunhante das cidades que desfilam por suas margens, onde a favelização apaga até nas fachadas das ruas comerciais as últimas lembranças urbanísticas de que por ali passou um dia a mão de uma autoridade pública. Ou, para lá de normal, é coisa tipicamente nossa a paisagem dos morros escalavrados, que mais uma vez os cafezais vão atacando por grimpas aparentemente inacessíveis, à custa das capoeiras que, semeadas pelo abandono, tentavam cumprir sozinhas a lei que manda os proprietários deixarem o mato lá em cima.

Quem viaja pelos caminhos onde o biólogo morreu, chega lá pronto para achar tudo normal. Anormal, ali, era o trabalho que ele fez na Estação Biológica de Caratinga, uma anomalíssima reserva particular de 900 hectares criada em Caratinga pelo cafeicultor Feliciano Abdalla, que tinha o gosto excêntrico de ver macacos em suas terras. Ele deixou de pé e mais ou menos intacto um pedaço da imensa mata original que, entre outras coisas, deu nome ao município.

Caratinga é uma trepadeira salpicada de vermelho, cujos tubérculos os botocudos da região comiam e cujas folhas os caboclos usavam muito em chás caseiros. Hoje, o melhor lugar para encontrar caratinga em Caratinga fica, e não é por acaso, na fazenda Montes Claros, de Abdalla. A planta cresce como um símbolo da flora nativa no alpendre da casa de roça que ele cedeu aos primatologistas, quando pesquisadores de várias universidades do mundo descobriram nos anos 70 que o velho fazendeiro guardava, entre pastos e cafezais, famílias inteiras de muriquis-do-norte. O muriqui é o maior macaco sul-americano. E um dos mais ameaçados de extinção.

Ilha de vida

Seu santuário em Caratinga é conhecido como Matão. Não passa de um matinho, o que torna ainda maior sua importância, como percebeu a americana Karen Strier, ao varar pela primeira vez até o topo aquele labirinto de cipós e árvores centenárias. “A oportunidade de ver a floresta desse ponto de observação mais do que compensou a escalada quase vertical”, ela escreveu em “Faces in the Forest”, livro onde conta seus estudos pioneiros sobre o Brachyteles mineiro e que, uma década e meia depois da primeira edição em inglês, ainda não pode ser lido em português, talvez porque esses problemas não nos interessem. Enquanto “a floresta era uma ilha, rica de vida desconhecida, por estudar, inimaginavelmente bela”, a seu redor, tudo o que Strier podia enxergar,além do ponto onde o mato acabava “abruptamente”, era a morraria “desolada, erodida”, marca registrada da agricultura nacional.

Em outras palavras, o resto era a normalidade pura e simples. A fazenda de Feliciano Abdalla não passava de uma exceção. Assim como foi excepcional a carreira de Eduardo Veado, que chefiou por quase 20 anos a Estação Biológica criada para os últimos muriquis em Minas Gerais. E a sociedade brasileira tem cada vez menos espaço para tudo o que não é normal.

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