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Yes, nós temos desmatamento

Mais do que um erro, achar que um país pode usar seus recursos naturais como quiser, sem olhar os vizinhos, é um anacronismo. Caducou na Rio-92. Mas é o que Lula anda dizendo.

21 de março de 2007 · 18 anos atrás
  • Marcos Sá Corrêa

    Jornalista e fotógrafo. Formou-se em História e escreve na revista Piauí e no jornal O Estado de S. Paulo. Foi editor de Veja...

Onze jornalistas ouviram calados, outro dia mesmo, o presidente Lula dizer, num café-da-manhã no Planalto, que os europeus não têm o que ensinar aos brasileiros em matéria de desmatamento. Entre outros motivos, porque eles só conservaram “0,6%” de suas florestas. Enquanto nós, aqui, preservávamos “69%”. Lula usou esses números como argumento de que “precisamos tomar cuidado com o discurso dos países ricos”. Mas, pelo visto, acha que não precisamos nos preocupar com os discursos que são feitos aqui dentro, como esse, porque ninguém à mesa quis saber de onde o presidente sacara a tal conta.

Tratava-se, aparentemente, do arredondamento grosseiro de um artigo ufanista, mas técnico, publicado semanas antes por um pesquisador da Embrapa. Dele, constava que a Europa teria, hoje, 0,3% de suas florestas primitivas. Uma delas, diga-se de passagem, pode ser visitada na península do Gargano, aquele esporão da bota itálica que, exatamente por sua raridade, virou ultimamente atração turística, enchendo de hotéis e campings cidades que dormiram séculos no acostamento da história. Até aí, falar em “0,6%” foi pura bondade do presidente.

Pecado original

Maldade foi omitir que essa percentagem se referia, no texto original, às florestas européias existentes há cerca de oito mil anos, tempo suficiente para emendar, de ponta a ponta, dezesseis civilizações como a brasileira. Sem essa ressalva, fica parecendo que, na atual febre desenvolvimentista da era PAC, vamos competir também com os povos que, segundo o arqueólogo Brian Fagan, três mil anos antes de Cristo já haviam “mudado a natureza da Europa a ponto de torná-la irreconhecível”. No caso, disputando o direito de repetir para sempre equívocos multimilenares, inclusive os do pecado original.

Os primeiros agricultores que depenaram a Europa vinham tangidos por mudanças climáticas de seu paraíso terrestre nas margens do Eufrates, onde viram secar de repente a fonte inexaurível de carvalhos, gazelas e cereais silvestres que lhes servia de berço. Em outras palavras, as Bíblicas, eram órfãos da Criação. Gente condenada a amassar o pão de cada dia com o suor de seu rosto. Tangida pelas lembranças do fim do mundo, quando a elevação dos oceanos rompeu a barreira do Bósforo, formando da noite para o dia o mar Mediterrâneo e os mitos do dilúvio universal.

Esses retirantes entraram “a ferro e fogo” numa Europa densamente florestada. Praticando a “agricultura do corta-e-queima”, a mesma técnica perdulária que o Brasil usa atualmente para devastar a Amazônia, “em sete séculos seus descendentes haviam cortado e queimado seu caminho dos Balcãs à Holanda e, a leste, até a Ucrânia”.

Não é difícil, para um brasileiro, imaginá-los em ação na noite dos tempos, tal como os descreveu Fagan avançando mata adentro: “Na temporada de plantio, espessas colunas de fumaça cinzenta misturavam-se com as com labaredas no céu azul enevoado”. Assim, em menos de um milênio, “a floresta primordial de carvalho deu lugar a uma paisagem cada vez mais organizada pelo cultivo na maior parte da Europa”.

Quem acha as histórias de Fagan velhas demais para servir de modelo ao século 21 pode saltar para o relato do economista David Hackett Fischer, sobre a fome que caiu sobre os europeus no verão de 1314 como praga do Egito. Fischer, ao contrário de Fagan, não lida com pruridos ambientais. Estuda, friamente, os ciclos de carestia que arrasaram através da história a economia mundial. Mas a primeira dessas “grandes ondas” também teve como estopim alterações bruscas do clima. A elas, somou-se a contribuição humana do desmatamento em torno das aldeias medievais, super povoadas pelo desmonte do mundo feudal. O resultado dessa convergência da fatalidade cósmica com a imprudência humana levou em poucos anos os camponeses europeus “a desenterrar os cadáveres de suas sepulturas para comê-los”, os padeiros à forca na França por falsificar massa de pão com excrementos de animais e os ingleses a empalarem o rei Eduardo Segundo com ferro em brasa.

Futuro reflorestado

Essa crise inflacionária do século 14, para Fischer, começou com o súbito aumento no preço da lenha para cozinha e calefação, quando os invernos duros e longos da Pequena Era Glacial bateram de frente com a falta de árvores nos campos arrasados. Para só arrefecer depois que a Peste Negra tirasse do continente mais de 20 milhões de pessoas, abrindo alas para a virada do mercado, o aumento da renda per capita, as grandes navegações e o renascimento.

Dificilmente se passa por tamanho aperto sem aprender alguma coisa. A Europa, agora, tem pelo menos 36% de seu território reflorestados. Menos que os 80% dos recordes pré-históricos, sem dúvida. Em compensação, essa percentagem está crescendo depressa. Aumentou mais de 25% desde a década de 1950. Nos países nórdicos, os índices de cobertura florestal são mais acachapantes que os do desenvolvimento. Batem em 69% – empatando com o Brasil – na Suécia. Passam de 77% na Finlândia, aquela terra de florestas boreais a perder de vista, de onde vêm os telefones celulares que estão inundando o planeta.

Em parte, o avanço das florestas européias nos últimos anos se explica por medidas tomadas aqui, no Brasil, durante a Rio-92, a conferência mundial que tentou exatamente acabar com a crença de que os problemas do meio ambiente têm fronteiras nacionais. Quase uma década e meia depois, ao contrário do que afirma Lula, alguma lição sobre desmatamento os europeus parecem ter para nos dar, ou não estariam por aí, subvertendo as estatísticas florestais do desenvolvimento.

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