Análises

O custo ambiental da dupla Garotinho

Com a morte de Dionísio Ribeiro Filho na reserva do Tinguá, ameaça transbordar o passivo ambiental que a dupla Garotinho acumulou em sua carreira política.

Arthur Soffiati ·
23 de fevereiro de 2005 · 20 anos atrás

Com a tocaia que matou esta semana o ecologista Dionísio Júlio Ribeiro Filho na Reserva Biológica do Tinguá, o passivo ambiental da administração Anthony e Rosinha Garotinho chegou finalmente nos jornais ao ponto de transbordar. Mas não é de hoje que essa conta vem crescendo. Ela começou a somar débitos antes que o governador Anthony Garotinho chegasse ao palácio Guanabara. Vem do tempo em que o casal ainda estava em sua cidade natal, Campos dos Goitacazes, no norte do estado do Rio de Janeiro.

A carreira política de Garotinho começou nos anos 80, quando tentou uma vaga na Câmara de Vereadores de Campos e perdeu a eleição. Logo em seguida, candidatou-se à Assembléia Legislativa e foi eleito. Como deputado estadual, presidiu a Comissão de Meio Ambiente do parlamento estadual, com atuação obscura e medíocre. Daí, saltou para seu primeiro mandato como prefeito de Campos, entre 1989 e 1992. Elegeu-se novamente para o cargo em 1996 e desencompatibilizou-se dele para concorrer ao governo do Estado, que ele tentara alcançar em 1994 sem sucesso. Com notável desempenho eleitoral, tornou-se governador de 1999 a 2002, quando se candidatou à presidência da República e perdeu para Lula. Nesse mesmo ano, conseguiu, com facilidade, eleger sua mulher para o governo do Estado do Rio de Janeiro, dando-lhe o nome de Rosinha Garotinho.

Os dois governadores encontraram, na máquina do estado, a Fundação Estadual de Engenharia do Meio Ambiente (FEEMA) e a Superintendência Estadual de Rios e Lagoas (SERLA). A primeira, fundada em 1975, tinha sido modelar durante uns 15 anos, só superada pela Companhia de Tecnologia de Saneamento Ambiental (CETESB), de São Paulo. A SERLA nunca saíra do chão, atuando apenas no setor de obras. As poucas lagoas demarcadas por ela no Estado estão em franco processo de degradação.

O sistema completava-se com a Comissão Estadual de Controle Ambiental (CECA), com o Instituto Estadual de Florestas (IEF), com o Batalhão de Polícia Florestal e Meio Ambiente, com o Conselho Estadual do Meio Ambiente (CONEMA) e com o Fundo Estadual de Conservação Ambiental (FECAM). O CONEMA deveria corresponder ao Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA), porém desempenha hoje uma atuação pífia, exercendo a CECA as suas atribuições. FEEMA e CECA, a bem dizer, imperam na área ambiental por exercerem o controle do licenciamento de empreendimentos públicos e privados.

O FECAM, por seu turno, foi aquinhoado, pela Constituição Estadual, com 20% dos royalties que cabem ao Estado, oriundos da exploração do petróleo na Bacia de Campos. Tais recursos poderiam resolver muitos problemas crônicos e agudos relacionados a meio ambiente, como demarcação de lagoas, implementação efetiva de unidades de conservação, despoluição de ecossistemas aquáticos continentais e marinhos e fortalecimento dos órgãos de meio ambiente com equipamentos técnicos. Todavia, este dinheiro não foi devidamente usado ao longo dos anos por falta de políticas públicas e de interesse dos governantes.

Na gestão do casal, a FEEMA foi definitivamente sucateada e passou a órgão meramente licenciador junto com a CECA, facilitando processos de licenciamento tanto para o setor público quanto para o setor privado. A SERLA e o IEF igualmente sofreram grande esvaziamento. O CONEMA, que tentou acordar no breve governo de Benedita da Silva, em 2002, voltou dormir com um forte golpe no crânio. O pior aconteceu ao FECAM. Primeiramente, Garotinho conseguiu aprovar uma emenda constitucional que permitia o uso de seus recursos para obras de grande impacto ambiental, como, por exemplo, a contenção das margens do rio Bengalas no trecho urbano de Nova Friburgo, empreendimento sob o comando do DER-RJ, um dos mais destruidores do meio ambiente. Rosinha deu o golpe de graça, retirando do FECAM 75% de seus recursos.

Enquanto isso acontecia com a burocracia dentro do governo, o que aconteceu do lado de fora – com o meio ambiente propriamente dito – pode ser ilustrado por algumas histórias, com foco na terra do casal Garotinho:

Rios e canais

O caso mais gritante é o da bacia do Paraíba do Sul. Embora o rio central da bacia seja federal por cruzar três unidades da federação, o governo do Estado do Rio de Janeiro não pode se eximir de responsabilidade na parte do território estadual banhada por ele e no que toca aos afluentes com curso inteiramente dentro do Estado, como os rios Piabanha e Grande, por exemplo. Um rápido exame da história recente do Paraíba do Sul mostra que todos os planos formulados para a sua recuperação, inclusive os do Estado do Rio, nunca foram implementados. Suas margens – áreas de preservação permanente – estão entregues à especulação e à ocupação irregular.

Norte fluminense, a Fábrica de Sucos Bela Joana, pertencente ao grupo MPE, fez obras em suas margens sem nenhum licenciamento ambiental. Já quase prontas as instalações, a FEEMA concedeu-lhe licença prévia, com a qual começou a operar. E o grupo, que tem ligações com amigos íntimos do casal, foi adiante, construindo outra fábrica de nome Brassumo. Pode-se afirmar, comprovadamente, que o Programa Frutificar foi lançado pelo governo Garotinho para atender a essa primeira unidade industrial.

Quando Sérgio Mendes – amigo eleito por Garotinho e depois seu desafeto – foi prefeito de Campos, a FEEMA, tendo à frente Adir Ben Kauss, aprovou o uso das ilhas do rio Paraíba do Sul que se situam dentro do município. A Justiça Federal, porém, graças ao Ministério Público Federal, que havia sido provocado por uma ONG ecologista, determinou que a prefeitura se abstivesse de continuar a ocupação. O caso acabou caindo no esquecimento.

Outros rios inteiramente situados no território do Estado do Rio de Janeiro, como o Guaxindiba, o Macaé, o São João, o Una e os que deságuam na Baía de Guanabara, estão abandonados pelo governo estadual. Entre 1935 e 1989, a Comissão de Saneamento da Baixada Fluminense e o Departamento Nacional de Obras e Saneamento abriram uma das mais extensas redes de canais do mundo no norte fluminense, perfazendo um total de 1.450 quilômetros. Este empreendimento, sem dúvida, foi por demais impactante para o meio ambiente, pois drenou muitas lagoas e reduziu drasticamente a superfície de tantas outras.

Extinto o DNOS pelo governo Collor, a rede ficou ao léu. Os canais e comportas acabaram deixados nas mãos de proprietário rurais, associações de classe e municípios, sempre em detrimento dos pescadores. A SERLA não soube ocupar o espaço, porque Garotinho e Rosinha não se preocuparam com a sorte dos canais e dos pescadores diante da sanha de latifundiários e usineiros, que os dois condenavam no início de sua carreira política.

  • Arthur Soffiati

    Arthur Soffiati é professor do Instituto de Ciências da Sociedade e Desenvolvimento Regional/UFF e Doutor em História.

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