Análises

Consciência neutralizada

Pagar para que os outros plantem mudas na tentativa de neutralizar emissões não vai resolver os problemas ambientais, ainda mais sem critérios e mudança nos padrões de consumo.

Carlos Augusto Krieck ·
12 de dezembro de 2007 · 17 anos atrás

Todos os dias recebo pelo menos um e-mail que aborda o tema aquecimento global. Neles, uma enxurrada de informações, números, dados e, por incrível que pareça, propostas de soluções em curto prazo. Esse bombardeio de informações, que também estão disponíveis na internet, fez com que a sociedade acordasse para o problema, que já bate à nossa porta, ampliando as discussões que inicialmente estavam restritas apenas a órgãos governamentais e entidades não-governamentais. Agora a sociedade como um todo (e as empresas não ficaram fora dessa) discute e procura formas de contribuir de alguma maneira para suavizar ou pelo menos diminuir o seu impacto ambiental nas suas atividades diárias.

Nessa moda de ser ambientalmente correto, me deparo com alguns equívocos e situações embaraçosas no que diz respeito às ações e projetos de neutralização de carbono através do plantio de mudas de árvores. Nada contra projetos dessa natureza. Pelo contrário, sou totalmente a favor desde que realizados e monitorados de uma maneira séria e comprometida com o meio ambiente. Mas será que tem sido assim?

As calculadoras mágicas

O primeiro absurdo que encontrei nas minhas “andanças” pela internet foram as calculadoras de emissão de dióxido de carbono. Você coloca alguns poucos itens como consumo de água, energia elétrica e combustível gastos no mês e pronto: lá está a quantidade EXATA de carbono que você e sua família emitiram no ano! Por favor, qualquer pessoa com o mínimo, mas realmente o mínimo de conhecimento sobre o tema sabe que nas nossas atividades diárias emitimos carbono de diversas maneiras, não apenas nessas que eu acabei de citar. Algumas calculadoras tentam ser um pouco mais sérias, incluindo itens como fraldas descartáveis, folhas de papel ofício e copos descartáveis gastos por mês. Foram boas tentativas, mas ainda estamos longe de um cálculo ideal. E você deve estar se perguntando: mas existe essa calculadora ideal? Bom, o que posso afirmar é que, de graça, não temos NENHUMA calculadora minimamente eficiente.

Um cálculo que se aproxime da real quantidade de carbono emitida por uma família ou empresa não é feito em uma calculadora “receita de bolo”, onde existem itens fixos e simplesmente vamos preenchendo a tabela para chegar a um número mágico no final. É claro que alguns itens são comuns e podem servir de base para o cálculo, mas cada família tem um padrão e itens de consumo diferente das outras. Cada empresa trabalha com um número de funcionários e fabrica seus produtos de formas diferentes e com matérias-primas diferentes. Tudo isso tem que ser levado em conta. Uma quantificação como essa pode levar semanas e, dependendo do tamanho da empresa, meses para ficar pronta, devendo ao final do processo ser construída uma metodologia adequada de neutralização de carbono resultando num projeto ético do ponto de vista ambiental.

Neutralização de carbono x captação de recursos

Muitos dos projetos com os quais me deparei não têm critérios estabelecidos de plantio e monitoramento, o que obviamente coloca em xeque a efetividade dos mesmos. Plantar árvores em uma área e depois abandoná-la, em vez de neutralizar carbono, pode acabar emitindo o gás, fazendo com que o “tiro” saia pela culatra. Raciocinem comigo: para a coleta de sementes na produção das mudas houve deslocamento e queima de combustível pela equipe ou pessoa que realizou essa atividade. Essa queima também ocorreu para o caminhão que levou os insumos necessários para o preparo do substrato; o saquinho plástico onde estão as mudas também teve emissão de carbono na sua produção (no caso de tubetes isso é amenizado). Para plantar as mudas as pessoas precisaram se deslocar até a área de plantio, o que também emitiu carbono para a atmosfera e, se eles foram de caminhonete ou veículo a diesel então, piorou a situação. Logo, se planto as mudas sem um monitoramento, no mínimo vou ter uma perda de 10 a 15% sendo que temos experiências que essa perda pode chegar a mais de 50% do plantio. Além disso, se não acompanho o crescimento das mesmas, como garanto que essas árvores chegarão a vida adulta? Como posso saber quanto de carbono essas árvores retiraram da atmosfera? Sem dúvida, esses questionamentos simples derrubam facilmente as “boas intenções” da maioria dos projetos que podemos encontrar pelo Brasil afora.

Dessa maneira, o que percebo nessas propostas de neutralização são simplesmente formas de muitas entidades arrecadarem dinheiro da sociedade civil e de empresas que estão desesperadamente querendo aproveitar a onda do carbono. A receita é simples: a empresa ou ONG finge que neutraliza as emissões recebendo uma boa verba para isso e as empresas fecham os olhos para a parte “prática” do projeto podendo agora vender seu produto dito ecologicamente correto. Infelizmente esse é o panorama atual. O pior é que muitas empresas e pessoas que querem de fato neutralizar suas emissões nem sabem disso, pois confiam nos que estão à frente dessas atividades.

Neutralização de carbono ou da consciência?

Do ponto de vista anterior, coloco a responsabilidade diretamente na mão daqueles que coordenam e realizam as atividades ditas de neutralização de carbono. Mas o contrário também acontece. Empresas que não querem investir o que realmente devem para neutralizar suas emissões pagam apenas uma pequena parcela para que o projeto de neutralização plante algumas mudinhas para seu nome sair no jornal ou quem sabe ganhar algum prêmio local tipo: empresa amiga da natureza. Se eles tiverem sorte, ganham até prêmio regional e com muita sorte um em nível nacional. E esse problema somente expõe a necessidade de termos critérios para esses projetos e da necessidade de existirem pessoas que entendam do assunto na avaliação de ações desse tipo.

Quando uma pessoa ou empresa fala que não quer contribuir para o aquecimento global, me perguntando o que deve ser feito, a primeira coisa que eu pergunto de volta é: você quer mudar seu padrão de consumo? Quer mudar seu padrão de produção? Quer realmente amenizar suas emissões? Se a resposta for sim, há muito trabalho a ser feito, pois acredito que a chave da questão não está apenas em neutralizarmos e sim, diminuirmos a quantidade de carbono que emitimos para a atmosfera. Se a pessoa ou empresa fala que não está disposta a colocar em prática essas mudanças, eu lanço um outra pergunta: você está disposto a neutralizar todas as suas emissões? E quando explico todo o processo de cálculo das emissões, indico entidades sérias que fazem esse trabalho e mostro que isso não custará o imaginado por eles inicialmente.

Cria-se aí uma barreira entre a intenção e a prática, pois a maioria da sociedade não quer neutralizar as suas emissões de carbono, mas neutralizar apenas sua consciência. Essa situação só expõe a fragilidade desses projetos e do pensamento da sociedade que no fundo quer fazer algo para ajudar a preservar o meio ambiente, mas que na prática não quer mudar seu padrão de consumo e sair da sua zona de conforto. Não quero com isso dizer que devemos retroceder, vivendo em casas sem energia elétrica e sem automóveis para nos locomover, mas penso e acredito que podemos mudar a forma como nos relacionamos com a natureza, deixando de tratá-la como uma mera fornecedora de matéria-prima para o nosso bem estar, para tratá-la como um patrimônio que deve e precisa ser cuidado não só pelos benefícios diretos e indiretos que nos garantem uma mínima qualidade de vida, mas pelo seu valor intrínseco, ou seja, simplesmente pelo fator dela existir.

Nessa jornada algumas grandes empresas iniciam sua neutralização por alguns processos e pequenas atividades, neutralizando parte de suas emissões. Isso é compreensível e, nos dias de hoje, necessário já que nos deparamos com tantas propostas com as mais diferentes metodologias por aí. O interessante é que mesmo neutralizando parcialmente suas emissões, muitas delas já possuem um planejamento de longo prazo para gradativamente aumentar seus investimentos em projetos de neutralização ou na área ambiental. Essas iniciativas reforçam a seriedade e comprometimento de ambas as partes, mostrando que hoje temos sim propostas de construção conjuntas sérias que trazem benefícios diretos e principalmente, mensuráveis para o meio ambiente.

Enfim…

Tudo gira em torno do padrão de consumo da nossa sociedade. Todos querem contribuir, ser amigos da natureza, mas ninguém quer mudar seus padrões de consumo. Ninguém quer ficar com um celular velho, com uma roupa usada e fora da moda, consumir menos plástico e isopor ao ir ao supermercado, utilizar embalagens de vidro e assim por diante. São pequenas coisas que nós em casa no dia-a-dia, podemos fazer para ajudar a reverter esse quadro que está cada vez pior. Antes de neutralizarmos carbono temos que diminuir nossas emissões, educar nossos filhos e amigos para que a neutralização venha como um complemento, algo que venha a reforçar nosso compromisso com o meio ambiente. É fácil jogarmos a responsabilidade para outros simplesmente pagando em dinheiro por algo errado que venho fazendo. Temos que ter o cuidado para não acabarmos comprando o direito de agredir o meio ambiente, pois assim estaríamos apenas tendo um “alvará” de poluição doméstica e mais uma vez estaríamos tratando a natureza como um recurso e não como um patrimônio natural que devemos proteger. E essa mudança de comportamento também deve atingir as empresas que necessitam rever seus processos de produção, matérias-primas utilizadas, emissões de carbono e gases para atmosfera, resíduos líquidos e sólidos, dentre outros, procurando amenizar e diminuir seus impactos ambientais.

Vivemos num mundo capitalista sim, mas o que poucos lembram é que não podemos comprar com cartões de crédito 1° C a menos na média de temperaturas mundiais, que não podemos comprar com débito automático em conta uma caixa térmica para colocarmos a Groenlândia dentro, que não podemos parcelar em 10 vezes sem juros o aumento do nível do mar, que não podemos pagar com código de barras o desmatamento na Amazônia. O que precisamos é de políticas públicas que estabeleçam critérios para esses projetos de neutralização e antes de tudo uma mudança de comportamento de toda a sociedade independente da faixa etária, nível social e poder aquisitivo.

  • Carlos Augusto Krieck

    Carlos Augusto Krieck é biólogo, mestre em Ecologia e Conservação pela UFPR, coordenador de Projetos – ACAPRENA e educador So...

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