Astrogildo Machado de Araújo é um dos vários pequenos produtores rurais que vivem no entorno de Juína, no noroeste de Mato Grosso. Como os outros, já cansou de se surpreender com incêndios incontrolados em seus roçados e na floresta. Há três anos consecutivos, ele conta, o assentamento onde mora queima por inteiro por causa do fogo ateado sem cuidados na época mais seca do ano. “Tem gente que não aprende. Todo ano é assim”, diz ele. Nove anos atrás, na época em que o assentamento foi criado, esse drama sequer existia no local. “Quando tinha mais mata, não existia tanto fogo”, recorda-se. Mas conforme os roçados e pastos se abriam e o fogo sempre escapava, de exuberante, a floresta que restou ao redor ficou empobrecida. “A mata não tem mais nada, não tem madeira para explorar. É tudo ‘quiçassa’, como dizemos aqui”.
Astrogildo, da porta de sua casa, viu o que os pesquisadores Jos Barlow, da Universidade de Lancaster, e Carlos Peres, da Universidade de East Angila, na Inglaterra, comprovaram em um recente estudo com árvores em outro ponto da floresta amazônica. Próximo ao rio Arapiuns, no Pará, eles monitoraram por nove anos as mudanças na estrutura e na composição da floresta depois que ela sofreu com incêndios, uma, duas ou mais vezes.
Como lembra Astrogildo, nem sempre foi tão comum ver florestas densas e úmidas queimando. Segundo Barlow e Peres, é por causa de perigosas combinações que essa realidade tem tudo para se tornar mais freqüente. O estudo defende que a tendência de aquecimento do planeta e de eventos extremos nos oceanos (que provocam estiagens mais longas e severas na região amazônica) vão aumentar o risco de incêndio na floresta, principalmente onde a fração de areia no solo é mais alta. Quando esse ambiente mais propício ao fogo encontra pressões de desmatamento, a situação de fragilidade das matas fica ainda maior. E aí, se por algum motivo o fogo é ateado por perto, pode se propagar por quilômetros.
Muitas vezes, o fogo rasteiro nem consegue atingir a copa das árvores, mas muito abaixo faz um estrago de grandes proporções, mesmo que tenha sido esporádico. “Ao contrário do Cerrado brasileiro, grande parte da biota amazônica é extremamente sensível – do ponto de vista anatômico, fisiológico ou comportamental – ao contato com o fogo ou mesmo estresse térmico em áreas sujeitas a queimadas extensas, daí as taxas alarmantes que nós estamos documentando de perda de biodiversidade funcional e biomassa”, contou a O Eco o pesquisador brasileiro Carlos Peres. Segundo diz seu estudo, até mesmo queimadas de baixa intensidade podem levar à mortalidade de 40% das árvores de menor porte.
Todo fogo na Amazônia é ruim
Durante nove anos, os pesquisadores observaram florestas no Pará com diversos graus de pressão de fogo. Dependendo da área, avaliaram os trechos incendiados depois de um, três, cinco e nove anos. A primeira e mais assustadora queimada, que deu origem ao início dos trabalhos, atingiu a região entre outubro e dezembro de 1997.
As florestas que não tiveram nenhum tipo de perturbação provocada por fogo durante todo esse período apresentaram um padrão estável em relação ao número e aos tipos de árvores. Mas em áreas incendiadas, as mudanças foram muitas e aceleradas. “A taxa de regeneração [da floresta, após o fogo] pode até ser alta, mas o mais significativo é elevada taxa de substituição de espécies que passam a ser rapidamente dominadas por pioneiras de ciclo curto, mais típicas de capoeiras jovens, além da alta perda de biomassa”, descreve Peres.
Não foi difícil notar que o fogo recorrente leva a um rápido colapso na abundância de árvores maiores e mais antigas – o que afeta, consequentemente, uma cadeia de outras plantas e animais que dependem delas. A floresta se modifica significativamente cada vez que as áreas são invadidas por espécies pioneiras. Elas, por sua vez, são mais vulneráveis a qualquer incêndio, que pode tomar proporções ainda maiores porque vai encontrar mais combustível no solo. As conseqüências do fogo para biodiversidade na floresta amazônica são ainda mais graves na medida em que ele altera o sistema de dispersão de sementes nas matas – quantitativa e qualitativamente. As plantas morrem, os animais fogem. Sem comida, não retornam. E assim, fica mais complicado devolver à floresta suas características anteriores.
Com base nos resultados alcançados, Barlow e Peres discordaram de previsões para Amazônia envolvendo conceitos como savanização e desertificação. O monitoramento das mudanças nas áreas queimadas mostrou-lhes quais novas feições a floresta deve assumir em um futuro mais seco e quente, cenário que já começamos a observar. “A periodicidade de queimadas naturais na Amazônia em tempos históricos e pré-históricos pode ser medida em milênios”, lembra Peres. Ultimamente, no entanto, os intervalos entre queimadas consecutivas já podem ser medidos em anos ou décadas. Em vez de densas e com dossel elevado, a Amazônia tende a ter mais áreas de florestas abertas, parecidas com matas secundárias que se regeneram em áreas degradadas. Em função disso, também não é de se esperar que as florestas consigam seqüestrar tanto carbono ou equilibrar ciclos hidrológicos, como hoje.
Ação e interpretação
Se não é tão simples assim reverter a tendência de aquecimento e de maiores riscos de queimadas na Amazônia, Barlow e Peres são incisivos ao considerar fundamental evitar, a todo custo, o uso do fogo na região. “Embora a queima de biomassa seja uma prática de toda população rural na Amazônia, é uma das poucas formas sobre a qual é possível exercer algum controle”, destaca o estudo.
Como uma resposta bem vinda a esse drama, na semana passada começou nas cidades de Belém, Itaituba, Altamira (PA), São Félix do Araguaia, Alta Floresta, Juína (MT) e Rio Branco (AC) um programa de 10 meses, promovido pelo Ministério do Meio Ambiente em parceria com a Cooperação Italiana, para formação em alternativas ao uso do fogo na Amazônia. Seu Astrogildo estava lá, em Juína, como um dos participantes. E mostra que já sabe o caminho das pedras. “Faz quatro anos que eu deixei de usar o fogo para cuidar do meu roçado. Eu consegui uma roçadeira e planto feijão para segurar o mato”, conta o produtor.
O objetivo do curso, pensado durante todo ano de 2007, é dar ferramentas para que lideranças comunitárias, indígenas e representantes dos governos municipais, estaduais e federais consigam difundir e monitorar essas boas práticas.
Apesar da louvável iniciativa, que pode minimizar os impactos dos incêndios incidentais, o pesquisador Paulo Barreto, do Instituto do Homem e Meio Ambiente na Amazônia (Imazon), lembra que os esforços para banir o uso do fogo só serão uma realidade quando houver mudanças na lógica econômica. “Hoje se você desmata uma área para colocar pastagem ou plantar alguma cultura na Amazônia, não tem jeito. Vai ter que limpar com fogo”, opina Barreto. Ainda é a alternativa mais barata, eficaz e rápida a quem se propõe a abrir as matas. “Danificar a floresta com fogo seria menos incentivado se houvesse multas e punição”, lembra o pesquisador. “Isso tem tudo a ver com reduzir o desmatamento”.
E essa relação tão direta às vezes se torna uma questão interpretativa. “Há áreas que queimam tanto na Amazônia e a perda de biomassa é tamanha que sistemas de identificação como o SAD [Sistema de Alerta de Desmatamento] e o Deter [Sistema de Detecção do Desmatamento em Tempo Real] registram como desmatamento”, diz Carlos Souza, também do Imazon. Todo cuidado é pouco nesse monitoramento, que de acordo com ele, tem que ser no mínimo anual. “Às vezes achamos que uma área é intacta, mas por baixo da copa das árvores tem fogo rasteiro e isso não conseguimos enxergar do satélite. Por outro lado, uma área que queimou pode aparecer depois de um ou dois anos como intacta novamente por causa de uma pseudo-regeneração (com as espécies pioneiras). Como o sensor mede a quantidade de clorofila na área, é preciso cuidado para não achar que ali existe uma floresta realmente”, adverte Souza.
De acordo com Souza, ainda não existe no Brasil uma série histórica que mostre exatamente as mudanças na floresta amazônica em função das queimadas, mas sim análises integradas envolvendo exploração madeireira, fogo e corte seletivo. O estudo de Barlow e Peres é pioneiro no que se refere a esse tipo de monitoramento. Que, pelo visto, é importante em diversas outras áreas da Amazônia. “Todo mundo já está cansado de apagar incêndio grande na área dos outros para tentar salvar produção. Quando o fogo entra na floresta, ele vai embora, e ninguém se junta mais para tentar apagar”, conta, em suas francas palavras, o produtor rural Astrogildo, de Juína.
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