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Samba do Avião, versão 2007

Nada como uma chegada ao Rio de Janeiro em pleno apagão aéreo para verificar que a descida no Galeão não é mais aquela que deu ao aeroporto o nome de Antônio Carlos Jobim.

27 de junho de 2007 · 18 anos atrás
  • Marcos Sá Corrêa

    Jornalista e fotógrafo. Formou-se em História e escreve na revista Piauí e no jornal O Estado de S. Paulo. Foi editor de Veja...

Como se não bastassem os controladores de tráfego, as companhias de aviação e o ministro Waldir Pires, esta semana os bandidos e os policiais resolveram engrossar o curto-circuito do espaço aéreo, fechando o aeroporto do Galeão com tiroteio em cabeceira de pista. É o que faltava ao brasileiro para usufruir como se deve o céu claro do inverno no Rio de Janeiro e as voltas cada vez mais pachorrentas das manobras de pouso, como recomenda o comandante. Da cabine, com a voz animada que se espera de um veterano das turbulências, ele anuncia mais um atraso na viagem, que vinha emperrada desde a primeira decolagem, não importa onde. E sugere que os passageiros aproveitem o contratempo extra para apreciar “a belíssima paisagem que temos abaixo”.

A “belíssima paisagem”, naquele momento, com o jato voando em curvas sobre as favelas sem fim dos subúrbios cariocas, não podia ser mais diferente daquele “Rio de sol, de céu, de mar”, que Tom Jobim avistou anos atrás na chegada ao Galeão. Até o “aperte o cinto, vamos chegar” perdeu o sentido que tinha na canção. Ultimamente, aperta-se o cinto para ficar lá por cima, girando a esmo, aguardando uma brecha no engarrafamento aéreo. Também não se leva mais ao pé da letra o verso que diz: “Dentro de um minuto estaremos no Galeão”. O comandante, pelo menos, acaba de estimar a demora em “quinze minutinhos”. Em seguida, rodou mais de vinte. “E vamos nós”, como dizia Tom Jobim.

Lugar ao sol

Para olhar “o que temos abaixo”, é bom avisar, atualmente as poltronas não ajudam. Com os espaldares das cadeiras quase fixos numa cota que varia entre os oitenta e muitos e os oitenta e poucos graus, as janelas batem no queixo dos passageiros de estatura mediana. Apreciar a paisagem é coisa que só se consegue com algum ranger de vértebras, principalmente depois de tantas horas passadas em treinamento para o vôo numa apinhada sala de embarque, em qualquer canto do país. Pelo menos, quando se consegue alinhar os olhos com a nesga na fuselagem, o mar parece azul, visto assim do alto. Quem anda cinzento e opaco é o horizonte, envolto numa névoa tingida pelos vapores da poluição urbana.

Em compensação, praia não falta. As nesgas de areia bordejam o litoral carioca a perder de vista. Pena que as praias se espremam entre o mar e a onda imobiliária, que não quer deixar ninguém sem um lugar ao sol. Como esse lugar ao sol, na sociedade brasileira, tende cada vez mais a ser privativo, não há litoral que agüente tanta gente que gosta de praia até não poder mais. Seja em condomínio, marina, hotel ou barraco, todos querem um naco de costa para chamar de seu. O resultado é uma competição por espaço que dá aos prédios e arruamentos o aspecto de que foram traçados por planos de ocupação, para garantir o máximo de espaço antes que o vizinho invada o terreno alheio.

Vêem-se poucos jardins. Os morros estão escalavrados por pedreiras, terraplenagens e ravinas. As várzeas foram escarificadas por crateras artificiais de origem suspeita, como se tivesse desabado sobre o Rio suburbano uma tempestade de meteoros sem que os jornais noticiassem o formidável bombardeio cósmico. Rios e estradas se esgueiram entre fundos de lotes e capinzais baldios. Árvores nas margens, nem pensar. É um território castigado, amarelecido e meio árido, onde só a luz guarda o fôlego dos trópicos. Até o que pareceu, de relance, uma avenida ajardinada no solo reticulado da Zona Oeste se revela, no sobrevôo seguinte, uma linha de alta tensão, serpenteando, com sua exclusiva faixa de capim verde, no chão cor de asfalto, tijolo e terra batida.

Como o Rio de Janeiro está ficando feio, visto da perspectiva do apagão aéreo. Por sorte, antes que se começasse a perguntar onde Tom Jobim andava com a cabeça, quando tirou da mesma rota as palavras que usou para compor seu Samba do Avião, o piloto faz uma curva à direita e a Floresta da Tijuca, com a baía de Guanabara à retaguarda, aparece providencialmente, para lembrar o que o Rio de Janeiro poderia ter sido, e que foi, antes de lhe subtraírem a maior parte de sua exuberância natural. Aí, sim, decifra-se a cidade. Espetada como foi entre penedos, manguezais, lagoas e enseadas, só podia crescer como cresceu, a golpes de picareta e dinamite, abrindo o caminho do progresso com túneis, aterros e desmontes. O que sobrou pode dar ainda de sobra para lhe garantir o título oficial de Cidade Maravilhosa e até, quem sabe, servir de palanque ao Cristo do Corcovado, como candidato a uma das sete maravilhas do mundo. Mas não custa aproveitar a bagunça da aviação comercial brasileira para olhar a cidade com os olhos de Deus – do alto e com piedade por tudo o que ela perdeu.

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