Na Suécia, ela abastece mais de sete mil veículos e os planos oficiais querem que mova 80 mil. Na China, acende os bicos do fogão e dos aquecedores em 18 milhões de propriedades e o governo pretende levá-la a mais 50 milhões de cozinhas rurais. Na Alemanha, produz em casa a eletricidade consumida por três mil fazendas e até em Toledo, no oeste do Paraná, ilumina granjas com sobras dos chiqueiros. No Canadá, a Dynamotive está pronta para oferecê-la nos postos de gasolina e, na Inglaterra, pode substituir pelo menos 16% do combustível queimado nas estradas.
Trata-se, em todos esses casos, da biomassa, palavra que caiu no ridículo há quase trinta anos no Brasil, quando o ministro do Planejamento Mario Henrique Simonsen transformou em piada, no Palácio do Planalto, uma proposta de “diversificação de políticas energéticas” para o governo do general João Figueiredo. O ministro das Minas e Energia, coronel César Cals, acabava de advogar, em reunião do conselho, o aproveitamento do metano que nosso rebanho bovino espalha perdulariamente pelos pastos. E Simonsen atalhou-o para perguntar se, com essa conversa, sugeria a criação da Bostobrás, uma nova estatal no figurino dos monopólios que o regime militar inventava a torto e a direito para os recursos estratégicos.
Tempo e razão
A briga naquela mesa era desigual. Com orelhas de abano, nariz grande e pele cerzida por cicatrizes de acne, Cals parecia desenhado por um caricaturista. Chegara ao ministério de Figueiredo nos braços de uma derrota, como candidato ao governo do Ceará. Era senador biônico. Ganhara uma pasta esvaziada pela Comissão Nacional de Energia, que desviava as decisões mais importantes do setor para o gabinete do vice-presidente da República. Lambuzara-se nos jornais, ao cevar sob o cargo escritórios eleitorais no Rio de Janeiro, em Brasília e em Fortaleza, escândalo numa época em que os brasileiros ainda não tinham visto tudo o que o futuro lhes reservava em barganha política no Ministério das Minas e Energia.
Cals era em resumo, um ministro fraco, à sombra de um presidente destrambelhado. Levaria décadas para provar que o tempo lhe dava alguma razão, pelo menos quando falou em privatizar a Companhia Vale do Rio Doce e botar a Petrobras para furar poços, açulada por contratos de risco. Mas a biomassa, que era outra de suas idéias fixas, morreu ali mesmo, enterrada pela verve demolidora de Simonsen. Atravessara-lhe o caminho uma das melhores cabeças que já passaram pela vida pública no Brasil, capaz de digerir com a mesma leveza teorias econômicas, abstrações matemáticas, tratados filosóficos, partituras sinfônicas, equações financeiras e bobagens administrativas.
O ministro César Cals morreu em 1991, dois anos antes que a universidade de Walford and North Shropshire montasse, em seu Departamento de Horticultura, a primeira usina de biomassa, para tirar o atraso da Inglaterra na corrida dos países europeus rumo a um planeta sem petróleo ou carvão. Hoje, a fazenda experimental produz toda a eletricidade que consume, e ainda tem um saldo de fertilizantes orgânicos para usar na renovação do solo. Tudo à custa de uma fonte de energia que “tem má aparência e cheiro ruim, mas ainda pode acabar no seu carro”, como escreveu recentemente o jornalista William Knight em “Fecal Attraction” – ou seja, “Atração Fecal”. O trocadilho do título pode não ser digno das antologias do humor inglês. Mas é bem melhor do que discutir, sobre Minas e Energia, a reciclagem de afilhados políticos do ministro Edison Lobão.
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