Em novembro, o Outras Vias apresentou as primeiras impressões do ciclista brasileiro Fernando Carignani em Londres, na Inglaterra. Acostumado a pedalar no Brasil, ele narrou na ocasião sua surpresa com como os demais veículos tomam cuidado com quem está de bicicleta. “Por bem conhecer o que é pedalar pela cidade de São Paulo é surreal escrever isso, e talvez difícil de acreditar, mas aqui a bicicleta é respeitada de acordo com seu porte e desempenho”, escreveu. Cinco meses se passaram e nosso amigo se acostumou com a cidade, assim como com o respeito rotineiro dos motoristas por quem opta por se deslocar com as próprias pernas. Ele criou um blog, o Pedalando Reflexões, onde conta de tempos em tempos como tem sido pedalar na cidade. E cumpriu com a promessa de seguir enviando relatos para gente. Neste novo texto para o Outras Vias, ele dá mais um depoimento pessoal sobre como os londrinos se acostumaram a ver e conviver com bicicletas nas cidades. Um relato que enche de esperança quem sonha que, em um dia também seja banal ver gente pedalando nas metrópoles brasileiras.
A bicicleta em Londres: apenas mais um modal
Texto e fotos Fernando Carignani
Farol fechado. Todos os veículos parados com seus motores ligados. Luz vermelha acesa, bem à minha frente. Era o primeiro da fila de carros e, sem gerar fumaça, apoiava o pé esquerdo no chão, buscando equilíbrio. Estava de bicicleta em uma avenida qualquer no centro de Londres. Farol verde: “Os carros vão começar a buzinar e acelerar. Vão me pressionar”, pensava ansioso e preocupado. Meu pé escapou do pedal direito quando tentei colocar a bike em movimento, fazendo o pedivela girar em falso para trás. Esse tempo ‘desperdiçado’, logo após o farol abrir, costuma parecer uma eternidade para o motorista logo atrás de um ciclista. Enquanto puxava o pedal para cima, para a segunda tentativa de me equilibrar sobre a bicicleta, pensei: “Pronto, pela primeira vez vou ser xingado em inglês, porque errei a primeira pedalada”. Silêncio. Assustador silêncio. Olhei rapidamente por cima dos ombros e os motoristas estavam lá, aguardando, esperando pacientemente que o ciclista meio atrapalhado à frente de todos aqueles motores, que lembrava um albatroz em estabanada tentativa de levantar vôo, desse-lhes passagem. Atônito com a cortesia, consegui sair pedalando e me mantive à esquerda. Tive vontade de sorrir para os parachoques, pneus e escapamentos que, agora acelerando, finalmente me ultrapassavam e seguiam seus propósitos. Nenhum dos motoristas me encarou com olhar irritado ou de reprovação. Na realidade, motorista algum olhou para mim. Para eles, uma bicicleta é um modal. Com características próprias, lento. Apenas mais um modal.
Londres é ‘ciclável’. Apesar disso, também há acidentes, desentendimentos, discussões entre ciclistas e motoristas. Nunca presenciei, mas já assisti a alguns casos pelo YouTube. Onde houver modais consideravelmente ‘mais fortes’, provavelmente sempre haverá risco para os mais frágeis. Pedalando por aqui já levei algumas fechadas, raras, mas aconteceram. Ganhei algumas buzinadas nas orelhas, mas, confesso, mereci as broncas. Creio que nunca me sentirei seguro pedalando entre carros, mas, em Londres, sinto-me inserido, parte de um fluxo que me compreende como mais fraco, dando-me preferência de passagem.
Constantemente penso sobre como esta cidade evoluiu para este comportamento em relação aos ciclistas, principalmente considerando traços peculiares da personalidade do povo britânico, bastante apegados às regras, à importância da privacidade e à discrição. Conclui que o confronto entre carro e bicicleta, quando causa reflexão, pode ter como desfecho o respeito. Inicia-se, então, a fase prática. Respeito praticado conduz à espontaneidade, à naturalidade do ato. O motorista local já não pensa sobre a presença da bicicleta como um veículo lento e inconveniente à sua alta velocidade. Simplesmente a aceita na via, da mesma maneira como convive com outros modais. É, portanto, o fim da reflexão e o estágio seguinte à prática do respeito: o hábito. O exercício do respeito à opção alheia se torna um costume. O ciclista também evolui e não é mais suscetível a desentendimentos, deixa de pedalar com pedras nas mãos.
A relação entre ciclistas e motoristas deve ser simbiótica. Motoristas respeitam as bicicletas e seus condutores, beneficiados com mais espaço para trafegarem, menos engarrafamentos e mais fluidez de tráfego; ciclistas, percebendo-se aceitos, pedalam livremente, mas em traçado regular, seguro e previsível, sem o iminente temor de serem fechados ou derrubados, sem predisposição a discussões raivosas, exercendo o direito de se transportarem do modo que escolheram, enquanto aproveitam o trajeto para suar, sorrir e se fazerem mais saudáveis. Nessa relação harmoniosa, de cordial compartilhamento e compreensão das vias como espaço público, os pulmões de ambos são beneficiados. Os demais cidadãos locais também recebem vida extra em seu sistema respiratório.
Após 5 meses como ciclista por aqui e 1.200 km depois, percebo que relacionamentos conflitantes podem deixar de existir quando os envolvidos, tensos e rancorosos com o histórico de desentendimentos anteriores, asseguram-se que a mudança para o bom convívio irá lhes proporcionar benefícios e melhorias. Esse parece ser o caminho para o fim do pavio curto e da rivalidade, uma atmosfera amigável na qual todos venham a ter, de fato, melhores condições que as anteriores.
Enxergo o tratamento com os ciclistas de Londres neste estágio. Claro, da mesma maneira que, por exemplo, um presidente nunca é avaliado com total aprovação, há os que não estão satisfeitos, que não compreendem ou não concordam com o compartilhamento das ruas, com a presença de bicicletas entre carros ou com o tradicional domínio dos portadores de escapamentos. Mas, nunca é demais lembrar, as vias são publicas e devem servir a todos modais. E, acima de tudo, as cidades devem existir para as pessoas.”
Veja mais fotos de bicicletas e ciclistas em Londres:
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