Quando sai de casa para o trabalho, o biólogo Peter Crawshaw é capaz de rodar 4.500 quilômetros, às vezes por estradas que nem sempre estão mapa. Ele mora em Corumbá. E o seu é primeiro nome que vem à cabeça de quem lida com onça no Brasil inteiro, talvez no mundo. Como assunto de onça tende a ser urgente, ele viaja sem parar entre fazendas de gado no Pantanal matogrossense que se aliaram à conservação da espécie, o Parque Nacional do Iguaçu, no extremo oeste do Paraná, e o da Bocaina, na divisa de São Paulo com o Rio de Janeiro.
Para quem leva esse tipo de vida, os perigos nem sempre estão na selva. Crawshaw tem o rosto marcado por uma onça com que se atracou, para salvar uma turista estrangeira que invadira seu campo de pesquisa no Iguaçu. E puxa de uma perna, desde que esmagou uma vértebra em queda de ultraleve que, como funcionário do Ibama, pilotava a serviço do Centro Nacional de Predadores, em Sorocaba. O acidente custou-lhe dois anos de fisioterapia, para reaprender a andar. Fora isso, aos 58 anos , ele está em plena forma.
Acidentes de trabalho
Apesar das cicatrizes dos acidentes de trabalho, ele só achou que sua carreira tinha acabado mesmo no dia 5 de maio, quando o seqüestraram na Bolívia. Ele voltava de Puerto Suarez, a quinze quilômetros de Corumbá, onde finalmente achara um artesão para consertar sua pistola de dardos anestésicos, acessório indispensável à convivência com feras vivas. Há três anos ele vinha procurando um armeiro que fizesse o serviço no Brasil.
Na volta de Puerto Suarez o pegaram, a ponta de três revólveres calibre 38. Os assaltantes invadiram o carro, vendaram Crawshaw e, durante quatro horas e meia, sacolejaram em alta velocidade por estradas de terra. Ele acabou convencido de que estava a caminho a execução. Mas acabou solto, de noite, num ermo, sem o telefone celular e no escuro.
Mas estava em seu ambiente. Crawshaw caminhou até achar uma fogueira. Diante do fogo, um desconhecido cedeu-lhe um cobertor para passar a noite e, na manhã seguinte, indicou-lhe o rumo para cruzar com um ônibus. Estava a cem quilômetros da fronteira. E a um passo de ingressar no segundo capítulo do assalto, o mais longo.
Ele dura até hoje. Do lado de lá, sua picape Hilux, que um gentilíssimo Mayor Maldonado, da polícia boliviana, prometeu recuperar prontamente, desapareceu. E, do lado de cá, Crawshaw foi bater na porta da companhia de seguros. Seu carro de tração nas quatro rodas, modelo 1998, estava coberto em 35 mil reais, dizia a apólice da Sul América. O contrato só ressalvava que “a abrangência geográfica deste seguro no Mercosul não contempla a Venezuela”.
Em outras palavras, na Bolívia o seguro valia, certo? Errado. A frase queria dizer apenas que o freguês nunca tem razão. Sua história veio se enrolando numa interminável troca de mensagens pela internet, até Crawshaw receber por e-mail a resposta definitiva. Num jargão indevassável, ela anunciava “a manutenção do declínio ao atendimento do sinistro”.
Ou seja, era “não”. A seguradora alega que a Bolívia não é bem do Mercosul. Como estado associado, não chega a ser país membro, enquanto a Venezuela, que também não é membro, mas um dia vai ser, ainda não é nada. Tudo isso estava escondido naquela linha da apólice, verdadeiro curso de geopolítica sul americana em onze palavras. Como sabe tudo de onça, mas nada desse tipo de arapuca, Crawshaw ficou a pé. E o que tem isso a ver com meio ambiente? Ora, tudo que atrapalha o trabalho de Peter Crawshaw é um grande problema ambiental.
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