Dos milhares de hectares de florestas postos abaixo na Amazônia brasileira, 75% viraram pasto, em especial no Mato Grosso, estado campeão em produção de carne e também em desmatamento acumulado. Apesar do estigma, há fazendas mato-grossenses buscando melhorar suas práticas, com as Fazendas São Marcelo, que conseguiram o selo da ONG Rainforest Alliance de pecuária sustentável, o que significa muita floresta, animais silvestres protegidos e caubóis gentis.
A preocupação com a expansão das pastagens sobre florestas tropicais motivou a organização a lançar padrões de certificação para fazendas de gado na América do Sul. A organização tem mais de 17 mil membros pelo mundo e lidera a Rede de Agricultura Sustentável, um conjunto de ONGs de países latino-americanos dedicadas a projetos de redução de impacto da agropecuária.
Sabrina Vigillante, diretora de iniciativas estratégicas da Rainforest Alliance, diz que o objetivo é estimular um modelo de produção de carne economicamente viável e compatível com a conservação da biodiversidade local. A aposta é que as fazendas certificadas inspirem o avanço do setor nesta direção.
O desafio para diminuir a pegada da pecuária, porém, não é lá tarefa simples no Brasil, país que tem o segundo maior rebanho bovino do mundo, atrás só da Índia, onde boi não vai para a panela por motivos religiosos.
O topo do ranking tem seus custos. Segundo o relatório “A farra do boi na Amazônia”, do Greenpeace, a cada 18 segundos, no Brasil, em média um hectare de Floresta Amazônica é desmatado e convertido em pasto. A ONU diz que a pecuária mundial gera 20% da emissão dos gases de efeito estufa no mundo. No Brasil, essa taxa sobe para mais de 60%. Além disso, o gado produz metano, um mal inevitável, já que o gás é produto do processo digestivo dos animais ruminantes. Outro ônus é o consumo de água. Para cada 1 kg de carne são necessários 15 mil litros, quantidade cinco vezes maior do que na produção de cereais, de acordo com a FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura).
Apesar dos conhecidos impactos, segundo projeções de janeiro deste ano feitas pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, o aumento do poder aquisitivo dos consumidores brasileiros irá gerar um crescimento de 42,8% na quantidade demandada de carne nos próximos 10 anos.
Para atender essa demanda, as Fazendas São Marcelo saíram na frente. Com unidades em Tangará da Serra e Juruena (Mato Grosso), em 2012, elas foram as primeiras do mundo a conquistar o selo da Rainforest Alliance de pecuária sustentável. Isso significa que oferecem um bife desvinculado do desmatamento ilegal na Amazônia, dos maus tratos de animais e do trabalho informal. Para o Grupo JD, que administra as fazendas, é possível transformar em bons negócios o reconhecimento internacional pela proteção das florestas brasileiras.
“A certificação já fez a diferença para um contrato de venda de 100% da produção das fazendas para o Frigorífico Marfrig, num período em que a disputa pelo mercado estava acirrada”, diz Arnaldo Eijsink, engenheiro agrônomo e diretor-geral da São Marcelo.
Mata ocupa o maior espaço
“A Sepotuba fica em Tangará da Serra (MT) e preserva 60% da vegetação nativa, o que significa 2.400 hectares de mata densa.”
|
O gado na fazenda Sepotuba, visitada pelo ((o))eco, é criado em sistema semiextensivo, o que significa ficar solto durante parte do ano e confinado nos meses de seca. A Sepotuba é uma das quatro unidades pertencentes às Fazendas São Marcelo – que abrangem no total 32 mil hectares incluindo áreas de Cerrado e Amazônia. Além de ao todo manterem 60 mil cabeças de gado, essas terras servem de lar para antas, veados-campeiros, macacos bugios, jaguatiricas, onças-pintadas e uma diversidade de aves provindas de comércio ilegal, reintroduzidas na reserva da fazenda depois de passarem por um centro de reabilitação do IBAMA.
Na unidade de Tangará, o horizonte é verde a perder de vista, os voos rasantes de araras e o reflexo de pinho cuiabano em uma represa quase nos fazem esquecer que estamos em uma propriedade que abriga cerca de 30 mil cabeças de gado entre as raças nelore (puro) e angus e hereford (cruzamento).
Clique nas imagens para ampliá-las e ler as legendas | |
A Sepotuba fica em Tangará da Serra (MT) e preserva 60% da vegetação nativa, o que significa 2.400 hectares de mata densa. A Reserva Legal ali é 10 pontos percentuais maior do que os 50% exigidos da propriedade pela lei na época em que ela foi adquirida. Em 2003, parte da fazenda se tornou uma Reserva do Patrimônio Natural (RPPN), a primeira do estado do Mato Grosso. “Hoje, a área é patrimônio da humanidade e jamais poderá ser derrubada”, diz Arnaldo.
Os métodos usados na sua criação de gado reduzem o impacto ambiental, embora a produção não seja orgânica. O gado se alimenta de soja e o milho transgênico, duas culturas controversas da perspectiva ambiental e o pasto é adubado com insumos químicos. Ainda assim, a propriedade mostra que é possível produzir carne de qualidade, cuidar do solo e da água e manter árvores em pé.
Mais do que manter uma porção de vegetação a salvo do motosserra, quem almeja receber o selo Rainforest precisa cumprir 136 critérios diferentes ligados a práticas socioambientais. Entre elas, o rastreamento de todo o gado da fazenda, a recuperação de áreas degradadas no entorno das nascentes, o bem estar dos funcionários com treinamento e salários justos, além da destinação adequada do lixo.
Clique nas imagens para ampliá-las e ler as legendas | |
Caubóis educados
“Quem trata o boi com educação, vê que ele entende o que a gente quer e se faz entender também. Isso deixa o rebanho menos assustado, evita acidentes e torna o trabalho mais leve.”
|
Com chapéu, lenço no pescoço e calça de couro, rústicos e capazes de dominar os animais no laço, os vaqueiros das fazendas São Marcelo são responsáveis por uma de suas transformações mais emblemáticas: eles tratam o gado com “gentileza”.
De voz tranquila e linguajar simples, o capataz Edmar Cruz explica que o vaqueiro não precisa ser um homem bruto para comandar os rebanhos. “Antes eu achava que trabalhar com o boi era pegar o bicho na unha, gritar, bater. Depois que a gente recebeu um treinamento aqui na fazenda, aos poucos, fui mudando o comportamento”.
Um exemplo de mudança citada por Edmar é o uso de bandeiras para conduzir o gado, no lugar das varas com que se costuma açoitar o boi em fazendas convencionais. “O gado só caminha para onde ele enxerga, então quando você coloca a bandeira ao lado do seu olho, ele naturalmente caminha para frente. Isso evita o uso da violência para conduzir o bicho”, explica Edmar.
A solução simples é símbolo de uma série de condutas mais respeitosas com o animal. Em meio às pastagens extensivas gigantescas, o papel dos vaqueiros é dos mais importantes. É ele que faz o rastreamento do gado (anotar suas informações de origem, peso, saúde), o conduz de uma fazenda para outra, identifica e cuida dos doentes, o protege de atoleiros e ataques de cobras e onças.
A premissa de boa relação com os animais influencia em todas as dinâmicas da propriedade. A sensação ao caminhar pela fazenda é de transitar por uma cidade de bois, com caminhos, estruturas cobertas, represas, tudo para os animais. O curral de touros nelore parece um mar de bois branquinhos. Ainda assim, há vaqueiros capazes de identificar alguns animais e chamá-los pelo nome em meio a milhares de cabeças de gado. Alguns bois têm personalidade mais forte. São mais reativos segundo os funcionários, e é preciso conduzi-los com mais calma.
“Quem trata o boi com educação, vê que ele entende o que a gente quer e se faz entender também. Isso deixa o rebanho menos assustado, evita acidentes e torna o trabalho mais leve”, ressalta Edmar, que recebeu um prêmio do portal Beefpoint de melhor vaqueiro de 2014. De acordo com ele, a regra é clara: gritos, choques e pancadas são vetados.
Clique nas imagens para ampliá-las e ler as legendas | |
Além do ganho ético, os bons tratos aumentam a produtividade e qualidade, explica Mateus Paranhos, zootecnista e um dos principais estudiosos em bem-estar animal do Brasil. Ele é responsável pelo treinamento dos profissionais da Fazenda São Marcelo.
Segundo o pesquisador, que também é professor na Unesp (Universidade Estadual Paulista), o treinamento passou pela adequação de instalações e procedimentos, por exemplo, durante a vacinação, o desmame ou o embarque dos animais nos caminhões. “As novas técnicas reduzem acidentes de trabalho e prejuízos, como hematomas nos bois, animais fraturados ou mortos”, diz.
Arnaldo Eijsink explica que o gado menos estressado, poupado de pancadas, produz uma carne mais sadia e macia, o que aumento o seu valor de mercado. “É o que a gente chama de melhor rendimento por carcaça”, diz.
Mais eficiência, menos desmatamento
“A boa nutrição do rebanho reduz o tempo de engorda e, em consequência, a emissão de gás metano.”
|
Já o gerente técnico da Fazenda, Leone Furlanetto, conta que o investimento em tecnologia é outra estratégia importante para manter o padrão de qualidade e sustentabilidade da fazenda.
“Um exemplo de ferramenta tecnológica que colabora com o bem estar animal é o tronco hidráulico, utilizado no curral para minimizar o uso de força física no manejo”, diz Leone. Quando o boi entra no tronco, a porta se fecha em volta do pescoço, através de um dispositivo que o imobiliza para os procedimentos necessários como vacinação, marcação e pesagem. A imobilização evita acidentes, baques e fraturas nos animais, que costumavam reagir a esses procedimentos.
Outra estratégia de redução de impacto ambiental, segundo Leonardo Mello, agrônomo e gerente de unidade, é o pasto adubado (em parte com composto orgânico produzido com esterco reutilizado do próprio gado da fazenda) e usado em rotação. Isso significa dividir a terra em piquetes, pequenos lotes usados alternadamente. A técnica evita a degradação do solo e permite que o gado se alimente de capim de ponta. “Quando todo gado é criado em grandes áreas não rotacionadas, algumas cabeças podem se alimentar do melhor capim, enquanto outras ficam prejudicadas”, afirma Mello.
A boa nutrição do rebanho reduz o tempo de engorda e, em consequência, a emissão de gás metano. Ao mesmo tempo, aumenta-se a produção de carne por hectare e reduz-se a necessidade de área desmatada.
Clique nas imagens para ampliá-las e ler as legendas | |
Selo e lei se somam
O agrônomo Rodrigo Cascalles é especialista em pecuária na ONG Imaflora, certificadora oficial da Rainforest no Brasil. É a Imaflora que faz a auditoria das fazendas que querem receber o selo de pecuária sustentável. Cascalles explica que “a legislação ambiental brasileira é uma das mais exigentes do mundo, então, quando um proprietário já cumpre a lei, em geral, ele não vai ter grandes problemas para conseguir o selo”.
Entretanto, ele defende que a certificação é importante para agregar valor ao produto final e para estimular uma competição saudável entre os pecuaristas. “Quando os consumidores começarem a priorizar produtos de grupos comprometidos com a sustentabilidade, mais empresas vão se interessar em repensar suas produções”.
*Essa reportagem é fruto de um parceria de ((o))eco com a Rainforest Alliance para divulgar práticas de redução de impacto.
Leia também
Dinheiro público financia avanço da pecuária na Amazônia
Pecuária continua líder de desmates na Amazônia
Frigoríficos na contramão da pecuária ilegal
Leia também
Entrando no Clima#39 – Lobistas da carne marcam presença na COP29
Diplomatas brasileiros se empenham em destravar as negociações e a presença de lobistas da indústria da carne nos últimos dias da COP 29. →
Pelo 2º ano, Brasil é o país com maior número de lobistas da carne na COP
Dados obtidos por ((o))eco sobre levantamento da DesMog mostram que 17,5% dos lobistas do agro presentes na COP29 são brasileiros →
G20: ato cobra defesa da Amazônia na pauta do encontro dos chefes de Estado
A Amazônia está de olho" reuniu mais de 100 ativistas neste domingo (17), no Rio de Janeiro, para pressionar líderes presentes no G20 a tomar ações concretas para conservação da maior floresta tropical do mundo →