Carolina (MA) – Todo fim de ciclo na vida possui – e merece – um rito de passagem. Para a história dos seis povos da família lingüística Timbira, do Tocantins e Maranhão, um rito específico neste mês marcou um importante passo. Entre os dias 10 e 18 de junho foi formada a primeira turma de agentes ambientais Timbira, durante o XII Curso do Projeto Mentwajë Ambiental: Instrumentos de Gestão Territorial e Ambiental, realizado pelo Centro de Trabalho Indigenista em parceria com a Associação Wyty-Catë dos Povos Timbira, em Carolina (MA).
O curso, que teve como finalidade maior a elaboração de um Plano de Gestão Ambiental e Territorial de todas as seis Terras Indígenas (TI) Timbira, contou com a presença de cerca de 40 participantes, entre caciques e lideranças (chamados de “velhos” ou mekyré), que acompanham todos os cursos, e jovens aprendizes (mentwajë). Todos os povos – Apinayé, Canela Apãnjekra, Canela Ramkokamekra, Gavião Pykobjê, Krahô e Krikati – estavam representados no curso por seus mentwajë. A turma de agentes que se formaram, com 15 alunos, completava sua décima segunda participação na capacitação.
O curso abrangeu questões sobre a gestão do território pelos brancos (cupë) através dos tempos, e sobre a diferença em relação à gestão feita pelos próprios mehin (como os Timbira se autodenominam na língua) nas aldeias. Foi feita uma breve retrospectiva e depois atividades que incluíram conversas com os velhos de cada povo para saber sobre como cuidavam de seu território antigamente.
Os Timbira são povos que já possuem mais de 300 anos de contato e, apesar de utilizarem nomes e vestimentas dos brancos, ainda hoje mantêm vivas as suas tradições, com a realização de festas e rituais dos antigos, reafirmando a sua unidade lingüística e cultural. Dentro dessa cultura, conservam também o respeito pela natureza e seus recursos, dos quais depende a vida de todos.
“Os cupë entendem a natureza apenas como recurso e com valor de mercadoria. Para os mehin, a vida da natureza está relacionada diretamente com a da humanidade, e não em oposição a ela. O ambiente quer viver também. Nós dependemos dele, do peixe, da caça, das boas nascentes que ainda temos, das plantas; e é deles que tiramos nosso sustento, nossos remédios e nosso artesanato”, disse um dos mentwajë, Wesley Gavião. E essa relação de respeito e reverência se mostra clara, por exemplo, na medicina tradicional.
Gestão territorial
O Plano servirá para o controle do território, manejo dos recursos naturais e para as atividades produtivas e econômicas. Dentro das discussões para sua elaboração, muitas questões foram levantadas, como a identificação de problemas e necessidades atuais de cada povo, formas de planejar e entender o que acontece em cada TI, controle de conflitos nas áreas do entorno, conhecimentos tradicionais e formas de manejo dos recursos naturais.
Muitos dos tópicos já haviam sido tratados em cursos anteriores, em reuniões nas aldeias e nos etnomapeamentos das Terras Indígenas Timbira, realizados pelos agentes ambientais. Mas a diferença no trato, no jeito de trabalhar, lidar e se relacionar com a terra (pjë) e o meio ambiente entre os cupë e os mehin foi o ponto mais citado.
Ao longo de sua formação e do trabalho de elaboração dos etnomapeamentos, os jovens agentes ambientais indígenas identificaram os principais problemas ambientais que enfrentam atualmente em suas terras. Monoculturas de soja, carvoarias, plantações de eucalipto, extração ilegal de madeira, a influência e invasão de grandes empreendimentos como usinas hidrelétricas e linhas de transmissão, estradas e barragens são algumas das ameaças que têm comprometido a fauna, a flora e os recursos hídricos de toda a região.
Diante dessas mudanças, os mentwajë e suas comunidades têm elaborado estratégias de gestão ambiental, por meio do manejo da caça, pesca e extrativismo. Em alguns casos, optou-se por construir as aldeias próximas aos limites de demarcação, de modo a facilitar a fiscalização contra invasores e estabelecer uma área de refúgio para os animais no interior da Terra Indígena. Esta e outras medidas serão apresentadas no Plano de Gestão Territorial e Ambiental das Terras Indígenas Timbira, em fase final de elaboração.
Manejo tradicional
Um dos objetivos do plano é justamente sensibilizar o poder público para a questão, apoiando as práticas tradicionais de manejo do Cerrado dos povos Timbira, bem como novas práticas construídas ao longo do processo de formação dos Agentes Ambientais Indígenas. Dente outras questões, o Plano propõe a regularização desta categoria (os AAIs), contribuindo para a conservação da biodiversidade do Cerrado.
Com relação a isso, os etnomapeamentos trazem uma grande contribuição, não apenas por localizar as principais ameaças, mas também por mostrar o vasto conhecimento que os povos Timbira têm sobre o seu ambiente, expresso, por exemplo, em seu complexo sistema de classificação de ambientes, que identifica muitas feições além daquelas registradas na literatura acadêmica.
Algumas ações propostas por eles no curso par a recuperação de áreas degradadas são: o zoneamento das áreas de roça com plantio de espécies nativas, não fazer roça em mata de galeria, entre outras. Na tentativa de solucionar o problema do aumento na produção de lixo, devido ao crescente consumo de bens externos, as propostas são reuniões de conscientização e organização da comunidade para coleta; incentivo ao uso dos utensílios dos próprios mehin (cofos e cestos de palha de buriti, etc.); aproveitamento de embalagens nos artesanatos; e incentivo à produção de alimentos nas aldeias, evitando a compra na cidade.
Fim do curso
O curso, apoiado pelo Fundo de Direitos Difusos do Ministério da Justiça, teve duração de oito horas diárias. No fim do cada dia, a fadiga era recompensada com cantorias dos velhos no pátio do Centro de Ensino e Pesquisa Pënxwüj Hempejxà, batatas-doce e inhame assados na fogueira, e rodas regadas a muita conversa e tabaco.
Dentre os demais temas abordados no curso, foi apresentado um panorama histórico da questão ambiental e da questão indígena no Brasil, bem como o marco legal sobre estes temas. Foram proporcionadas reflexões sobre os questionamentos ao modelo de desenvolvimento e sobre como essas duas questões – meio ambiente e indigenismo – convergiram e convergem até hoje.
Segundo a fala do mekyré José Miguel Krahô, “naquele tempo [do surgimento do Serviço de Proteção ao Índio – SPI], não existia movimento indígena como hoje, e os povos eram tutelados, mesmo porque não entendiam nada de política. E o governo ainda tentava transformar os mehin em cup?, e não entendiam as diferenças de cultura. Hoje a gente luta pela demarcação das nossas terras e pelo reconhecimento dos nossos direitos. Por isso é importante o curso para capacitar nossos companheiros a lutar e levar ao governo nossas reivindicações”.
Em discurso de encerramento do curso, as lideranças e jovens indígenas frisaram a importância da continuidade do trabalho para o fortalecimento da unidade de seus povos e o reconhecimento, nas políticas públicas, da existência de um “país Timbira”. A expressão foi cunhada pelos primeiros viajantes que estabeleceram contato, quando o território destes grupos se estendia de forma contínua. Atualmente, apesar da fragmentação em seis TIs, esta unidade se mantém, dentro desse imenso e diverso território nacional, por meio do uso da língua, da realização de rituais, de visitas e casamentos.
Leia também
Fundo Nacional do Meio Ambiente pode apoiar resgate de animais em incêndios
E versão de plano nacional para recuperar a vegetação nativa lista a fauna silvestre como chave na restauração ecológica →
Supressão de área verde para construção de complexo viário gera conflito entre Prefeitura e sociedade civil em São Paulo
Obras levariam à derrubada de 172 árvores no canteiro central da avenida Sena Madureira; municipalidade recorreu de liminar do MP-SP que mantém operação paralisada →
Mato Grosso aprova norma que limita criação de Unidades de Conservação no estado
Pelo projeto, só poderão ser criadas novas áreas protegidas após a regularização fundiária de 80% das já existentes. Organizações criticam decisão →