O Parque Estadual do Desengano (PED) foi o primeiro a ser criado no Rio de Janeiro, em 1970. Obra de Geremias Fontes, último governador antes da fusão com o antigo Estado da Guanabara, ele possui cerca de 22.400 hectares, sendo, portanto, o terceiro maior parque estadual fluminense. O maciço que lhe emprestou o nome marca o limite norte da Serra do Mar, que ali se ergue de forma dramática, num rompante final, antes de mergulhar definitivamente na Baixada Campista. Montanhas de grande beleza despontam de uma floresta magnífica, a mais elevada delas sendo o Pico do Desengano, com 1.761 metros, e seus rios formam variados poços e cachoeiras convidativos.
Com tal topografia, é evidente que o parque oferece inúmeros atrativos para visitantes e moradores da região, e se os últimos já frequentavam com certa regularidade alguns pontos mais famosos e acessíveis, a falta de divulgação, aliada à distância dos grandes centros, fazia com que poucas pessoas de fora se aventurassem a desbravar suas trilhas, o que garantia a tranquilidade dos caçadores e outros criminosos ambientais, uma vez que a fiscalização era mínima.
Com o boom do turismo ecológico, muitos moradores da pequena Santa Maria Madalena, onde fica a sede do parque, vislumbraram a possibilidade de o PED vir a atrair um maior número de interessados em praticar caminhadas, observação de aves, banhos de rio e outras atividades recreativas ao ar livre, injetando algum dinheiro na deprimida economia local e gerando empregos e pequenos negócios voltados para recepcionar os visitantes. Com alguma estrutura, o parque poderia proporcionar isso e muito mais: chamar a atenção das pessoas para a sua existência e a importância daquele grande e exuberante fragmento florestal, angariando defensores de mais recursos e apoio humano e material à sua gestão. Para que o parque “saísse do papel”, enfim. Mas esse sonho não haveria de se concretizar, ao menos por um bom tempo, e o plano de manejo da unidade coroou toda uma política voltada a manter as pessoas de bem, moradores inclusive, completamente afastadas dela. “Por mim, nem os pesquisadores colocariam os pés no PED”, teria dito uma antiga chefe do parque, impregnada de boas e improfícuas intenções.
No início de 2002, quando assumi a presidência do Instituto Estadual de Florestas (IEF/RJ), o panorama das UCs fluminenses era desolador e, dentre muitas outras carências, destacava-se o fato de nenhuma possuir plano de manejo. Determinado a reverter esse quadro, achei conveniente começar pelo PED, o parque mais antigo, e foi selecionada para elaborar o seu plano de manejo uma veneranda instituição conservacionista carioca, que tudo sabia de unidades de conservação. Ou assim eu imaginava. Os ventos da política me sopraram para fora do IEF/RJ no final daquele ano, mas me reconduziram ao cargo no segundo semestre de 2007. Então, claro, quis ver o resultado da contratação, mas aí tomei um susto: foi entregue e aceito, na minha ausência, o produto errado!
Isso porque em um parque daquele tamanho só estava prevista a visitação em meia trilha, mais precisamente, na primeira metade do caminho normal do Pico do Desengano! Em todo o restante, as pessoas eram indesejadas para os técnicos que elaboraram a proposta e os dirigentes que a aceitaram.
O plano gerou uma compreensível revolta dos moradores da cidade, em parte porque perderam, num piscar de olhos, acesso (ao menos do ponto de vista legal) aos atrativos que costumavam frequentar com suas famílias, como o Poço Bonito, em Sossego do Imbé, e A Cascata, em Morumbeca dos Marreiros, para citar apenas dois. E em parte porque conheciam muito bem o potencial para a visitação não-predatória no Parque do Desengano e não compreendiam porque ali não podia ser como em outros parques que eles viam na televisão, em revistas ou na internet.
Meio de brincadeira, meio a sério, um deles, proprietário de duas RPPNs (portanto, não exatamente um inimigo da natureza) depois me confessou que pensou em fundar a “Associação dos Inimigos do Parque Estadual do Desengano”. Por um bom tempo o parque só se relacionou com o mundo ao seu redor por aquela meia trilha – por sinal, muito bem guardada, ainda, por uma estrada inacessível a veículos sem tração nas quatro rodas – ou pela sua modesta sede no centro de Santa Maria Madalena, situada ao lado dos famosos canteiros de rosas do Horto Florestal Santos Lima, que disputava com o Museu Dercy Gonçalves o posto de maior atração da cidade.
Em face disso, juntamente com o excelente corpo técnico que consegui arregimentar naquela oportunidade, e sempre com o decidido apoio e incentivo do então Secretário de Estado do Ambiente, Carlos Minc, tomei uma série de medidas saneadoras desse equívoco. Primeiro, pedi que fosse dado início à urgente revisão do plano de manejo para adaptá-lo à categoria “parque”, conforme definido na lei que criou o Sistema Nacional de Unidades de Conservação (Snuc). Ao mesmo tempo, solicitei que fossem levantados os dez principais atrativos frequentados pelos moradores locais desde sempre e assinei um ato normativo permitindo novamente a visitação neles.
Em seguida, dando início a uma série de guias impressos e em meio digital das trilhas existentes nos parques estaduais do Rio de Janeiro, promovemos um concorrido lançamento do volume relativo ao PED em Santa Maria Madalena. O conselho consultivo foi instalado após ampla chamada pública, para agregar o maior número de atores sociais locais em apoio à gestão da unidade, e foi valorizado junto à população em geral, e às crianças em particular, o muriqui do sul, símbolo do parque.
Com recursos de compensação ambiental foram reformadas as sedes do parque e do horto, construída uma guarita no acesso ao setor Morumbeca e, a pedido do conselho consultivo foi implantada a Trilha da Cascata – na verdade, meras melhorias na antiga trilha que conduz a esse atrativo consolidado (e, assim mesmo, relativamente pouco visitado até hoje). Foi elaborado o projeto de uma subsede no Imbé, incluindo alojamentos e estrutura de apoio aos pesquisadores em parceria com a Universidade Estadual do Norte Fluminense (Uenf), e foram abertos processos de desapropriação de glebas estratégicas para abrigá-la e para suporte à visitação, alguns já concluídos e com suas terras devidamente incorporadas ao patrimônio do estado.
Um contingente razoável de guarda-parques, bem treinado e equipado, foi lotado no parque, e seus integrantes passaram a exercer tarefas básicas como prevenir e combater incêndios florestais (o PED é quase todo cercado por fazendas), orientar e fiscalizar a visitação e promover a educação ambiental com foco nas crianças da região. Afinal, um único incêndio florestal de médio porte é muito mais danoso ao ambiente natural do que a soma de todas as atividades de uso público em décadas. Na mesma linha, foi implantada ali a primeira Unidade de Polícia Ambiental (UPAm) do estado, para reprimir os crimes cometidos no parque e em seu entorno.
Todas essas ações demonstram um cuidado com a natureza do Parque Estadual do Desengano que nunca houve antes, e que seriam inviáveis sem o interesse despertado pela perspectiva de visitação. Para reger todo esse processo, foi escolhida uma chefia que compreendesse a importância da interação com a sociedade para o sucesso da gestão dos parques, em vez de mantê-los fechados para o público, porém infestados de malfeitores que ameaçam de extinção local certas espécies comercialmente mais valiosas ou alvo do fetichismo ancestral do macho que anda e mata com sua espingarda.
É muito mais vantajoso ter a população admirando e de alguma forma se beneficiando com a presença de um parque do que enxergá-lo como um estorvo e fomentador de injustiças. Embora os defensores dos “parques-fortaleza” tenham, sem dúvida, as mais elevadas intenções, falham em entender que a realidade é muito mais complexa do que uma tese acadêmica, e que incluí-la no planejamento só fará bem a essas fortalezas de papel.
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André, mais uma excelente contribuição. Infelizmente, vemos o mal exemplo ganhar espaço, quando se ignora a história.
Bom dia Andre.
Otimo artigo e melhor ainda o que conseguiram fazer na pratica. Parabens. So lembraria que os Parques nao estao fechados somente por falta de vontade, ou por causa de planos de manejo muito extritos.
Muitos estao em maos de particulares.
Muitos nao tem Plano de Manejo
O SNUC deixa claro que um dos objetivos de Parques e a visitacao publica. Assim a lei faculta e nao impede.
Outros fatores que voce e eu conhecemos bem e o que impedem.
PARABENS.