Minha primeira crônica em ((o))eco contou a incrível história de recuperação do black robin, um passeriforme neozelandês, o qual até seu resgate estava tão criticamente ameaçado que por um triz a espécie não foi perdida para sempre. Fábio Olmos já escreveu sobre um território próximo às ilhas e meus prezados colegas da UFRJ já deixaram suas aclamadas contribuições a respeito de outras espécies salvas no país ou infelizmente perdidas para sempre.
A Nova Zelândia parece ser um assunto volta e meia recorrente neste site. E isto eu apoio: fiz lá meu estágio do finado Ciências sem Fronteiras. Aprendi muito sobre conservação com renomados cientistas locais, e me apaixonei por aves, um amor que carreguei de volta ao Brasil. Mas não são apenas as paisagens exuberantes das montanhas de neve e os vales verdejantes que encantam moradores e visitantes do país. A Nova Zelândia é especial por ser um laboratório a céu aberto.
Neozelandeses e pesquisadores atraídos para suas terras de todos os cantos do mundo têm longo histórico de experimentos conservacionistas. A primeira translocação — retirada de indivíduos por humanos de um local para outro — foi registrada em 1863, com a soltura de um grupo de kiwis da Ilha Norte e buff wekas; aves estranhas que só podem ser bem descritas com uma foto.
A história do kakapo, maior psitacídeo (ave com cara de papagaio) do mundo não-voador, já foi bem relatada em ((o))eco. Mas o detalhe importante é que a situação do kakapo não era única no país. A Nova Zelândia apresenta menos de 200 espécies de aves, 71% endêmicas. Isso significa que elas não são encontradas em nenhum outro lugar do mundo senão ali. E entre os outros 30%, diversas são compartilhadas apenas com a Austrália e pequenas ilhas da região.
Poderia escrever uma crônica inteira sobre o fenômeno de endemismo e vulnerabilidade em ilhas, mas podemos resumir os acontecimentos desta forma: ilhas isoladas, como é o caso da Nova Zelândia, tendem a apresentar menos espécies do que ilhas de tamanho similar próximas aos continentes pelo simples fato de que é mais difícil uma ave, um réptil, um mamífero e em diante alcançarem os corpos terrestres tendo de cruzar longas faixas de água castigadas por correntes de vento.
Aves voadoras, no entanto, podem cruzar grandes distâncias oceânicas e isso explica porque muitas ilhas do Pacífico foram predominantemente ocupadas por elas, que começaram a ocupar nichos ecológicos comumente ocupados por mamíferos em outros locais do mundo. Tal fenômeno evoluiu para espécies de aves não-voadoras assumindo, por exemplo, papéis ecológicos similares aos de pequenos roedores.
Ao chegarem em territórios com ausência dos mamíferos predadores encontrados em continentes e ilhas menos isoladas, estas aves evoluíram para um comportamento que em ecologia chamamos de ‘ingenuidade insular’: elas deixaram de reconhecer predadores como gatos, cachorros, cabras, coelhos, ouriços e… humanos como um risco à sua sobrevivência.
Com a chegada de ratos, com os primeiros polinésios no século XIII, e uma miríade de demais predadores com os colonialistas britânicos no século XIX, a Nova Zelândia tornou-se palco de um massacre de espécies nativas (ou seja, espécies originárias da região).
A batalha contra a perda de espécies iniciou-se ainda cedo no país, mais bravamente com os esforços de Richard Henry, o ‘salvador dos kakapo’. De acordo com uma extensa revisão dos pesquisadores Colin Miskelly e Ralph Powlesland, feita em 2013, virtualmente todas as espécies endêmicas do país já tiveram uma ou mais populações translocadas para ilhas livres de predadores ou reservas cercadas no território principal.
Enquanto isso, no Brasil, sofremos uma dicotomia. Apesar de termos ótimas iniciativas de ciência cidadã no Brasil, também vemos um histórico antigo e corrente de governos desenvolvimentistas, com o discurso de que ‘a Natureza é um impedimento ao avanço do país’. Isso não torna o trabalho dos conservacionistas mais fácil. Ao mesmo tempo em que trabalhamos para gerar ciência e resultados, também temos de convencer o grande público que não somos apenas abraçadores de árvores e não queremos que o país retorne à miséria apenas para salvar os sapinhos dos brejos e as mariposas do alto das montanhas – uma falácia que precisa ser desmistificada.
Por isso, talvez, a Nova Zelândia nos encante tanto. A soltura de aves em parques costuma ser um evento extremamente midiático, com crianças sendo chamadas nas escolas para observarem e esperançosamente se inspirarem no trabalho dos cientistas. O investimento é a longo prazo, e intenso: a ideia é transformar essas crianças em futuras conservacionistas ou, pelo menos, em cidadãos que entendam a necessidade de preservar os bolsões de floresta em seus quintais. Voluntários representam um papel essencial dentro do processo de conservação neozelandesa; muitos deles, já na casa dos cinquenta/sessenta anos, foram crianças quando seus pais os levaram para subir as trilhas do Parque Ruahine para ajudar no resgate de whio (o ‘pato azul’, severamente ameaçado) e o kiwi. Essas crianças cresceram sabendo que podiam fazer algo e, hoje em dia, trazem seus próprios filhos e netos para ajudar nos projetos. O ciclo continua.
Não quero terminar minha crônica com um discurso de ‘os gringos fazem melhor’, mas é inegável que temos muito a aprender. Nosso país possui um quinto de todas as espécies de aves no mundo, porém 93% do território original da Mata Atlântica já foi perdido. Temos dentro de nossas fronteiras a floresta mais famosa do mundo, mas conservar a Amazônia – e demais áreas naturais do Brasil – torna-se difícil sob ataques à ciência na forma de cortes de verbas, ameaças políticas e o desenfreado desenvolvimento a ferro e fogo. Como em uma triagem de zona de guerra, temos de estabelecer prioridades, e assuntos importantes podem ficar de lado neste caos.
É uma batalha longa, difícil, desesperadora até, mas que não poderemos travar sozinhos, como cientistas e conservacionistas. Somos minoria, por mais triste que seja admitir isso. Mas existem esperanças e cenários de situações que podem ser revertidas. E se pudermos olhar para o outro lado do mundo e nos inspirarmos saudavelmente em um exemplo gringo, temos apenas a ganhar.
A própria autora, em Tiritiri Matangi, Janeiro de 2016. À época eu trabalhava faziam três meses na ilha, dormindo em uma casa que dividíamos os pesquisadores com cidadãos comuns que pagavam um pernoite para experienciar Tiri durante a noite, ‘caçando’ kiwi com lanternas adaptadas para não machucar os olhos dos animais noturnos com o facho da lanterna. O dinheiro pago pelos visitantes mantinha em parte pesquisadores como eu e minhas colegas na casa. Em minha mão, um filhote de toutouwai espera resignado que eu o marque com anilhas indolores em suas pernas e retorne-o ao ninho. Eu jamais esquecerei da importância do Ciências sem Fronteiras em minha formação e sempre defenderei a existência de programas de intercâmbio para a formação de cientistas brasileiros. Atualmente, utilizo minha experiência neozelandesa com passeriformes em meu mestrado em um fragmento de Mata Atlântica no Rio de Janeiro. |
NOTA GRAMATICAL: Os nomes das aves aqui comentadas, como kaka, whio, kiwi e hihi, são nomes tradicionais do povo Maori. Respeitando a gramática da língua Maori, em que não existe plural, não concordei o nome das aves em número durante o texto.
Bibliografia
Miskelly, C. & Powlesland, R. 2013. Conservation translocations of New Zealand birds, 1863-2012. Notornis 60: 3-28.
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Excelente matéria, parabéns. Realmente temos os brasileiros muito a aprender.
E já que estamos falando em conservação, justamente em um país símbolo com é a N. Z., tentemos fazer um pequeno paralelo com o Brasil, nesta quadra momentosa da invasão de javalis que sofremos em nosso país, e do comportamento ignorante e preconceituoso de nossos políticos e, infelizmente, da maioria de nossos ecologistas.
Acessem os links abaixo e aprendam alguma coisa.
https://www.newzealand.com/br/hunting/
https://noticias.uol.com.br/internacional/ultimas…
Parabéns Giuliana
Aprendam políticos brasileiros. Temos exemplos de como fazer certo aos montes por aí.