Quando saíram os dados de agosto do Imazon e do ICV mostrando a retomada do desmatamento no Mato Grosso, divulgados em setembro, escrevi aqui em O Eco que o governo estava sendo reprovado no verdadeiro teste de seu programa contra o desmatamento. Todas as análises criteriosas da queda do desflorestamento, embora reconhecessem a importância da criação de unidades de conservação em áreas de grande pressão, como a Terra do Meio, no Pará, mostravam que eram insuficientes, até porque não saíram do papel, e alertavam para o fato de que o grande teste seria quando os mercados da soja e da pecuária recuperassem o ritmo perdido há três anos.
Escrevi o seguinte: “Não foram poucas as vozes que alertaram o governo e as ONGs que se deixaram levar pela fantasia de que a Amazônia estaria, pela primeira vez, sob controle. Os preços da carne e da soja estiveram deprimidos durante os anos de queda do desmatamento. O verdadeiro teste seria este ano, quando uma quebra quase generalizada de safras, projetou os preços dos grãos brasileiros e dos EUA para as alturas. É nessa temporada que se abre já sob enorme pressão de desmatamento e das queimadas associadas a ele que esse suposto controle seria testado.” Uma avaliação para lá de realista e moderada, de uma situação que é conversa franca, consenso unânime, entre os especialistas em Amazônia, entre os quais não me incluo, mas cujas análises levo sempre em consideração.
O quadro era evidente e minha experiência em análise política e sociológica de processos similares me indicava que ele já estava determinado: a recuperação dos preços dos grãos e da carne levaria a um novo surto de desmatamento. Como não há governança na Amazônia, não houve melhora no contexto político-institucional, nem ações que fortalecessem a convicção de que agora haveria melhores condições de impor a obediência à lei, o resultado esperado, a olho nu, sem recorrer aos satélites do INPE, era de retorno do desmatamento.
Na coluna, eu comentei que houve duas quebras seguidas da safra de grãos, nos principais países produtores do mundo, exceto no EUA e no Brasil, gerando uma pressão sobre o preço de todos os grãos, principalmente trigo, milho e soja, a qual não deverá ceder até o final de 2008. Mostrei que no EUA muitos produtores de soja preferiram plantar milho, o que explica a safra recorde deste ano. Em decorrência, a produção de soja caiu e os preços subiram. Iria faltar soja para ração. A soja brasileira supriria o que faltasse e os preços subiriam mais no mercado internacional e no doméstico. É o que está acontecendo. Os preços explodiram, já vivemos inflação de preços de alimentos de 2 dígitos, em alguns meses chegou a 20%; milho e soja comandam a alta dos preços de grãos entre nós.
Tudo isso se agrava com a demanda mundial por alimentos em alta, puxada pela expansão econômica continuada por vários anos. Dizia eu na coluna: “no Brasil, também a demanda doméstica por alimentos cresce fortemente, embalada pelos ganhos de renda proporcionados pelo aumento do nível de atividade, com inflação baixa. É nesse movimento que sobe, também, o preço da carne, por causa do consumo mundial e interno aquecido e do custo em elevação da ração”.
A conclusão se impunha: “esse contexto impele a produção sojeira e a pecuária, promovendo uma nova onda de ataque à floresta amazônica, ao Pantanal e ao Cerrado. Um quadro que se completa com o aumento da demanda por álcool brasileiro, tanto doméstica, quanto internacional. A cana avança sobre os pastos das regiões canavieiras, empurrando a pecuária para as regiões menos propícias ao seu cultivo com produtividade, contribuindo para pressionar o desmatamento”.
Essa não é uma surpresa do inesperado, argumentei. Seria o resultado previsível de processos econômicos, em geral, e no setor de combustíveis, em particular. “O aumento do desmatamento foi prenunciado por inúmeras análises e sistematicamente desdenhado pelas autoridades governamentais. Exatamente no momento em que fica claro que o governo não tem condições de proteger as reservas que criou no papel, não consegue impor um sistema mínimo de comando e controle na região amazônica, começará a licitar pedaços da floresta para suposto manejo florestal. Manejo já é um conceito com pouco fundamento científico para uma floresta tropical com as características da Amazônia. Para qualquer floresta, requer boa regulação, boa governança. E é isso que nos falta mais”.
Como ensinam os politólogos, quando as situações não geram decisões efetivas e as decisões não geram resultado real e positivo; quando só se obtém algum resultado positivo na base da coerção, se tem governo, mas não se tem governança. A governança se define por resultados efetivos, reais e satisfatórios. Quando há governo sem governança, ou seja, sem resultados, é sinal de que o governo é fraco ou sua presença na área-problema, fraca. É o caso do Brasil, em geral, da Amazônia, em particular.
Quando publiquei a coluna e fiz comentários na CBN, no mesmo sentido, recebi um telefonema muito gentil do secretário-executivo do Ministério do Meio Ambiente, João Paulo Cappobianco, dizendo que os dados do ministério não indicavam aumento do desmatamento, apenas desaceleração da queda e que esses dados não eram defasados, como eu havia presumido. Registrei em um “PS” na coluna e fiz um novo comentário na CBN contando aos ouvintes qual era a visão do MMA. O Diretor de Articulação de Ações da Amazônia do Ministério de Meio Ambiente, André Lima, enviou a O Eco um texto, também respondendo civilizadamente à minha coluna, que foi publicado no dia 27.09, na seção de “Colunistas Convidados” com o título “Desmatamento na Amazônia, muito dito e sendo feito, mas ainda muito a se fazer”. Nele, André Lima considera que o aumento de desmatamento seria apenas um “dado específico”, o que representa rebaixá-lo a um evento fora da curva, que não altera tendência. O que ele disse especificamente foi: “o governo não está fazendo festa, tão pouco sobre dados “velhos”, já que estamos falando em dados de julho de 2007. Estamos atentos ao dado específico de agosto de 2007 que indica um aumento em relação ao mesmo mês de 2006 em 53%, apesar de indicar uma queda de 27% relação a julho de 2007”.
A controvérsia e o debate são ingredientes essenciais da democracia e é um dado excelente que autoridades governamentais queiram debater as políticas publicas de forma civil, sem desqualificar os que pensam diferentemente. Isso contribui para construir uma cultura cívica que não temos e cuja ausência debilita a democracia. O debate é sempre bem vindo, foi por isso, e pela necessidade de discutir caminhos para a governança ambiental, que me animei a juntar-me a essa difícil empreitada de fazer O Eco.
Mas é preocupante que esse governo, como todos os governos recentes de que tenho memória no Brasil, despreze sinais de alerta, desmereça dados e análises de fontes respeitáveis, que apontam riscos de falhas graves nas políticas públicas em curso. A preocupação com a imagem, sobre o desempenho, pode ser fatal.
Acredito que o Ministério do Meio Ambiente estivesse, de fato, convicto, de que haveria mais controle sobre o desmatamento agora e que a pressão econômica seria inibida. Mas a implementação de políticas públicas não pode trabalhar com os cenários melhores, tem que trabalhar com o pior cenário. Aquele que aponta os maiores riscos. Políticas assentadas no pior cenário, têm mais chances de evitá-los e terminar obtendo resultados mais próximos dos melhores cenários.
O desmentido de análises apontando tendências mais negativas, que tinham maior probabilidade de estarem certas, do que a hipótese otimista com que trabalhava o governo, não ajuda a imagem do governo e leva ao descrédito suas políticas públicas.
A convicção de que as coisas estavam melhores do que de fato estavam, talvez tenha contribuído para reduzir o empenho e a força do governo federal como parceiro no “pacto” pelo desmatamento zero na Amazônia, que acaba de ser lançado e que, como estamos vendo, requer mecanismos de governança, que ainda não estão presentes, para dar certo. A meta de desmatamento zero é a única aceitável para a Amazônia, pelas razões que espero tenham ficado claras nos parágrafos acima e antecedem as próprias razões ambientais e climáticas.
Agora, estamos no quarto mês consecutivo de aumento do desmatamento em Mato Grosso, não dá mais para se falar em dado específico. Os dados do próprio Ministério do Meio Ambiente, agora registram avanço do desmatamento, também no Acre e em Rondônia, como mostra reportagem de Cristina Amorim, para o Estado de São Paulo. O iMazon detectou, também, fortíssima retomada no Pará, inclusive em áreas protegidas e reservas indígenas. As autoridades ambientais, inclusive Capobianco e André Lima, passaram a admitir a reversão da curva do desmatamento, que volta a subir, e falam de “ações emergenciais”. É o reconhecimento da falta de governança na Amazônia.
Ação emergencial não é resposta. Ela é necessária para coibir imediatamente esse avanço da destruição o quanto for possível. Mas a resposta necessária passa pela autocrítica do MMA, da ministra Marina Silva, e uma revisão de suas políticas. A ministra Marina, grande defensora da transversalidade, parece que não vê a transversal incoerência de seu governo, no qual o Ministério da Agricultura defende abertamente a expansão da cana na Amazônia; integrantes da base do governo, sob o silêncio dos líderes governistas, investem contra a reserva legal na Amazônia; o Gabinete Civil e o ministério das Minas e Energia só consideram como proposta energética hidrelétricas na Amazônia e sequer discutem qualquer alternativa que se tente por na mesa de negociações; propostas de criação de reservas, emboloram nas gavetas inacessíveis da ministra Dilma Roussef.
Isolado no governo, o grupo do Meio Ambiente faria melhor se realmente se tornasse parceiro real em um movimento trans-partidário, trans-governamental, estatal, público e privado, por um pacto eficaz de desmatamento zero, que permita estabelecer um novo regime econômico e ambiental para a Amazônia. Isso para que, a partir dele, se possa construir um sistema de governança da Amazônia que a proteja e a valorize econômica e socialmente. Políticas públicas exclusivistas e com um viés específico não levarão a resultado semelhante. Há um consenso hoje suspenso no ar, que pode ganhar consistência, antes que ele se dissolva.
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